Joaquim Miranda Sarmento analisa e explica como se calcula o défice e a dívida pública na ótica do reporte a Bruxelas, ou seja, na ótica das chamadas Contas Nacionais.
Desde há cerca de 20 anos que as Finanças Públicas entraram na discussão pública e política em Portugal. Desde 2001, quando Portugal foi o primeiro país a violar o limite de défice de 3% previsto no Pacto de Estabilidade e Crescimento, tendo a Comissão Europeia aberto um Procedimento por Défices Excessivos.
Dentro da temática das contas públicas, a questão do défice orçamental tornou-se, desde o início, a preocupação central do país. Nos últimos anos, a dívida pública, que até então era uma questão secundária na atenção dispensada, passou também para primeiro plano.
Frequentemente, tem surgido o confronto entre operações que contabilisticamente permitem reduzir o défice ou, em sentido contrário, que o fazem aumentar. Como se calcula o défice e a dívida pública na ótica do reporte a Bruxelas (ou seja, na ótica das Contas Nacionais – CN), tornou-se uma matéria de extrema relevância. Paradoxalmente, é uma matéria pouco estudada e ainda menos divulgada entre nós.
O reporte do défice e da dívida pública de cada Estado-Membro é um dos pilares da atual União Económica e Monetária (UEM). A evolução da União Europeia permitiu, em 1999, a criação da moeda única. Contudo, tal pressupõe uma harmonização orçamental dos países membros, face a objetivos comuns de política económica. Este reporte de informação orçamental por parte de cada país membro da zona euro é realizado numa base contabilística comum: as Contas Nacionais (CN).
O Eurostat estabelece o seu sistema de CN, o ESA 2010 – SEC 2010: Sistema Europeu de Contas 2010. O SEC 2010, implementado em setembro de 2014, resulta da revisão do SEC 95.
Para efeitos deste ensaio considera-se o termo ‘défice’ como sendo o ‘saldo global’. Evidentemente, o saldo global pode ser negativo (apresentando um défice orçamental), ou positivo (apresentando um excedente). Contudo, preferimos usar o termo défice ao de saldo global, por quatro motivos:
- O termo défice é de uso mais corrente.
- A discussão e a problemática atual e futura centram-se nos défices.
- O limite máximo estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento é um valor de défice.
- O manual do Eurostat que serve de referência também usa o termo défice. Assim, não consideramos que a utilização do termo défice para designar o saldo global, tire valor ou credibilidade, adicionando simplicidade e facilidade de compreensão.
Também para efeitos deste ensaio usarei a palavra ‘Estado’ para referir-me às Administrações Públicas no seu todo (embora as AP’s dividam-se entre Administração central – e esta divide-se entre Estado (serviços integrados), Serviços e Fundos Autónomos (grosso modo os institutos que têm autonomia financeira) e a Segurança Social; Administração Regional e Administração Local. Mas ao invés de estar sempre a usar o termo AP’s, prefiro usar o termo Estado para cobrir todo o setor público que conta para efeitos das CN.
Refira-se que entendo, a título pessoal, que sendo a participação de Portugal na União Europeia e em particular na zona euro, algo de bastante positivo para o país, a compreensão destas matérias é crucial por dois motivos: por um lado, o seu cumprimento afigura-se imprescindível para a permanência de Portugal na moeda única. Por outro, apenas uma compreensão destas matérias permite discuti-las de forma crítica. Não é objetivo deste ensaio pronunciar-se sobre a bondade das regras orçamentais Europeias, mas apenas servir para explicar e compreender um aspeto especifico das CN: O apuramento do défice.
Não será necessário reforçar que a temática das Finanças Públicas e, em particular, das regras e restrições europeias continuará a ser uma temática central nos próximos anos, não apenas em Portugal, mas em toda a União Europeia. Até porque a construção do processo orçamental está longe de estar terminada.
Este Ensaio procura, de uma forma simplificada e (espero eu) acessível a leitores menos versados nestes temas, explicar como se calcula o défice em Contas Nacionais.
As diferenças entre Contabilidade Pública (CP) e Contabilidade Nacional (CN)
Existem diferenças entre a ótica de CP e CN, que resultam da natureza de cada ótica. O referencial legal da CP é a Lei de Enquadramento Orçamental, a Lei de Bases da CP e o Regime administrativo e Financeiro do Estado, além do SNC-AP. Na ótica de CN, o referencial é o SEC 2010 e o manual da dívida e do défice do Eurostat.
Por outro lado, a delimitação setorial em CP é uma classificação jurídico-institucional, enquanto que em CN é uma ótica económica – classificação segundo o princípio da substância sobre a forma. Como veremos mais à frente em detalhe, o momento de registo em CP é o momento do recebimento e pagamento (caixa), já em CN segue uma base de compromisso/acréscimo. A execução em CP é divulgada mensalmente (boletim da DGO), sendo que a execução em CN é trimestral (contas trimestrais do INE), semestral (no PDE – Procedimento dos Défices Excessivos), e naturalmente anual. Em CP a entidade responsável é a DGO, em CN é o INE.
Existem três motivos principais que justificam a diferença entre a CP e a CN, e que estão expressos no quadro 2 do PDE:
- O saldo global em CP (ponto de partida deste exercício de ajustamento) tem incluído, por convenção, o valor dos ativos financeiros líquidos de reembolsos (simplificando, a compra de ativos financeiros e os empréstimos entre o Estado e entidades públicas, como por exemplo as empresas públicas). Em CN, é necessário retirar esse efeito, considerando apenas os fluxos económicos. Assim, os fluxos de despesas em ativos financeiros são registados com sinal positivo (isto porque agravam o saldo em CP, mas não são considerados em CN), e os fluxos de receitas em ativos financeiros são registados com sinal negativo (porque melhoram o saldo em CP, mas não são considerados em CN).
- A CP é feita numa ótica de caixa (recebimentos e pagamentos), tendo a CN uma lógica de “compromisso”, embora parte da receita fiscal seja considerada em “caixa ajustado”.
- O saldo em CP não abrange a totalidade do universo de consolidação das AP’s em CN. Desta forma, torna-se necessário um ajustamento que passe a considerar estas entidades, assim como proceder aos acertos necessários às contas destes organismos.
O modelo base prevalecente é o da CP, pelo que a CN resulta de uma migração por ajustamentos.
O défice em contabilidade pública
O ponto de partida para o apuramento do défice em CN é o défice em contabilidade pública (CP). Mas em que é que consiste o défice em CP?
O défice em CP resulta da diferença para as entidades das Administrações Públicas entre as receitas e as despesas. Aqui impera a lógica de caixa. Ou seja, as receitas são os recebimentos (aquilo que o Estado cobrou em impostos, taxas, licenças, venda de ativos, etc.). E as despesas são os pagamentos (aquilo que o Estado pagou em despesas com pessoal, compra de bens e serviços, juros, investimentos, subsídios, prestações sociais, etc.). Ou seja, o défice em CP é a diferença dos fluxos financeiros, a diferença entre recebimentos e pagamentos ocorridos entre 1 de janeiro e 31 de dezembro.
As CN diferem da contabilidade pública, quer pelo facto de as mesmas apresentarem um sistema de “caixa ajustado”, enquanto a CP é um sistema de “caixa puro”, quer pelo perímetro de consolidação. Em CP, este respeita apenas à Administração Central, Segurança Social e Administração Regional e Local (embora em Portugal, em 2012, por via do programa da “troika”, a contabilidade pública tenha alargado o seu perímetro). De facto, com as alterações ocorridas em 2012, muitas das entidades que relevam para efeitos de CN, passaram a ter um acompanhamento em execução orçamental em CP, num regime mensal, através do Boletim da DGO. Estamos a referir-nos às designadas EPR – Entidade Públicas Reclassificadas.
Conforme refere o CFP (Apontamento do Conselho das Finanças Públicas N.º 1/2014), as diferenças entre a informação produzida pelos sistemas da CP e da CN refletem, essencialmente, os diferentes momentos em que foram criados e as diferentes finalidades que servem. Enquanto o sistema de CP tem estado mais vocacionado para os aspetos ligados à gestão e ao controlo de tesouraria, a CN é um sistema orientado para a análise e avaliação macroeconómica.
Assim, se o Estado num ano T recebe em “cash” de receitas 1.000 e paga 1.100 de despesas, terá um défice de 100. Se admitirmos um PIB de 3000, teríamos em CP um défice de 3.3%. Com base neste défice é necessário fazer um conjunto de ajustamentos da CP para a CN:
- Um ajustamento temporal na receita fiscal.
- Um ajustamento na receita não fiscal.
- Um ajustamento temporal na despesa.
- Um ajustamento na despesa com juros.
- Um ajustamento relacionado com os fundos comunitários.
- Um ajustamento de perímetro.
- Um ajustamento de operações específicas que impactam em CN mas não em CP ou vice-versa.
- O ajustamento temporal na receita fiscal
Do lado da receita fiscal e contributiva existe um ajustamento em sede da receita do IVA e dos IEC (Impostos Especiais sobre o Consumo). A receita fiscal e contributiva em CN é igual à receita cobrada em CP, com estes dois ajustamentos.
A razão para fazer um ajustamento no IVA e nos IEC prende-se com o ‘delay’ entre a “criação económica” do imposto e o seu pagamento ao Estado. Por exemplo, no IVA, as empresas que estão no regime mensal entregam o IVA no 10º dia do 2º mês seguinte (cerca de 40 dias depois do mês). As que estão no regime trimestral entregam o IVA no 15º dia do 2º mês seguinte ao trimestre (cerca de 45 dias depois do trimestre terminar).
Assim, as CN estabelecem, quanto ao IVA, a necessidade de ajustar o imposto apurado numa base de caixa para uma base de “caixa ajustado”, porque, em CN, o que releva é o momento em que o valor económico, direito ou obrigações são criados/transferidos/extintos; o momento de pagamento ou recebimento é irrelevante. Desta forma, o IVA é receita em CN, no momento em que se realiza a atividade económica que gerou o imposto. Decorre disso a necessidade de ajustamentos temporais, de modo a que a receita seja afeta ao período da atividade geradora do mesmo.
Assim, a receita fiscal em CN tem dois ajustamentos:
- Do lado do IVA, 75% da receita de IVA de janeiro e fevereiro do ano T+1 é ainda contabilizada no ano T (naturalmente no ano T, 75% da receita de janeiro e fevereiro foi contabilizada como receita do ano T-1, e assim sucessivamente).Na prática:Receita de IVA do ano T = Receita IVA Ano T em CP – 75% receita IVA em CP de Janeiro e Fevereiro do ano T + 75% receita IVA em CP de Janeiro e Fevereiro do ano T+1.
- Já nos IEC, o ajustamento é do mês de janeiro. Isto é: Receita de IEC do ano T = Receita IEC Ano T em CP – Receita IEC Janeiro Ano T + Receita IEC Janeiro T+1.
Ajustamento na receita não fiscal
Na receita não fiscal os ajustamentos prendem-se com operações específicas que possam ter impacto num ano em CN e noutro ano em CP. Essas operações podem ser de diverso tipo. As receitas de fundos de pensões reduzem o défice em CP, mas não têm efeito em CN. As receitas de venda de ativos financeiros (por exemplo, privatizações), reduz o défice em CP, mas não tem impacto em CN. A venda de Concessões é registada como receita em CP mas como despesa de capital negativa em CN.
Assim, em CN a regra para a receita não fiscal é que: Receitas não fiscais no Ano T= Receitas não fiscais em CP no ano T + Receitas do exercício e não recebidas – Receitas recebidas de exercícios anteriores.
Um ajustamento temporal na despesa (exceto juros e subsídios da UE)
Outro ajustamento necessário prende-se com a despesa, exceto os juros e os subsídios da UE, que têm regras especificas que veremos mais à frente.
Na CP existem diferentes fases da despesa: o cabimento (ou seja, a autorização de despesa no orçamento de cada serviço – só é possível realizar despesa que esteja cabimentada), o compromisso (o momento em que se regista a despesa como efetuada), a liquidação (ou seja a autorização para o pagamento) e o pagamento. Em CP a despesa é contabilizada no momento do pagamento. Em CN o que releva para efeitos do défice é o compromisso e não o pagamento.
Desta forma, é necessário fazer o seguinte ajustamento: partindo da despesa paga, soma-se toda a despesa de compromissos não paga (e que diz respeito ao ano T) e subtrai-se a despesa paga no ano T relativa a anos anteriores. Assim, para efeitos de CN teremos apenas a despesa que foi objeto de compromisso.
Na prática: Despesa em CN do ano T = Despesa em CP do ano T+ Despesa com compromisso no exercício e não paga – Despesa paga de anos anteriores.
Ajustamento na despesa com juros
Ao nível dos juros da dívida pública, é necessário realizar ajustamentos entre as duas óticas, em virtude das diferenças metodológicas na ótica da CP e na ótica da CN. Na ótica das CN, e seguindo o princípio da especificação do exercício (regra das operações no momento em que efetivamente ocorrem as transferências económicas), os juros a pagar são registados na despesa à medida que se vencem, ou seja, são registados ao longo do período de maturidade do empréstimo (sendo independente o momento de pagamento).
Desta forma, apura-se trimestralmente (e anualmente), o valor do juro desse período de especialização, mesmo que não tenha sido pago. Um juro pago uma vez por ano é, para efeitos das Contas Nacionais, imputado a cada trimestre do exercício económico, para efeitos de apuramento do défice trimestral. Contudo, na Contabilidade Pública, em ótica de caixa, a despesa com juros é registada no momento do pagamento.
Ajustamento nos fundos comunitários.
Quanto à neutralidade dos Fundos Comunitários, esta tem como objetivo anular o eventual impacto no défice do reconhecimento da receita e despesa. Ou seja, se os fundos comunitários são para entidades fora do Estado, a entrada dos fundos nas entidades públicas que os atribuem aos privados é feita através de contas financeiras (não são receita nem despesa em CP), pelo que o impacto nulo em CN está garantido.
Se os fundos comunitários financiam despesa de entidades do Estado, então a receita e a despesa em CN têm de ser contabilizadas no mesmo momento. Caso em CP tenham sido contabilizadas a receita e despesa no Ano T, não há lugar a qualquer ajustamento. Caso haja algum desfasamento entre a contabilização da receita e da despesa em CP, então é necessário ajustar para CN.
A Figura 1 sintetiza os ajustamentos necessários à passagem da Contabilidade Pública para a Contabilidade Nacional, no que diz respeito à especialização do exercício.
Ajustamentos relativos à especialização económica
Fonte: CFP (Apontamento do Conselho das Finanças Públicas N.º 1/2014).
Ajustamento por alargamento do perímetro
Em 2008, o Eurostat começou a obrigar o Estado Português a colocar dentro do perímetro das CN um conjunto de empresas bastante deficitárias e que estavam fora do perímetro (não contando para o défice e a dívida pública, tendo contribuído para muito da desorçamentação efetuada nos anos anteriores).
Assim, entre 2008 e 2012, o Eurostat passou a incluir no défice em CN empresas como a CP, Refer, Estradas de Portugal, Metro de Lisboa e do Porto, RTP, etc.
Até 2012 havia todos os anos um ajustamento significativo entre CP e CN por via do perímetro de consolidação das contas nacionais. Isto, porque estas empresas passaram a contar para o défice em CN, mas não em CP. A partir de 2012, a execução em CP mensal da DGO passou a incluir estas empresas, designadas como “EPR – Empresas Públicas Reclassificadas”.
Em 2014 foi a vez de os hospitais EPE também passarem para o perímetro das CN, passando também em CP a terem a execução mensal controlada, via EPR.
Sempre que uma empresa (ou entidade) pertence ao perímetro das CN, mas não da CP (neste momento são residuais as situações em que tal ocorra), então na passagem de CP para CN, é necessário somar as receitas e as despesas dessa entidade ao total de receitas e despesas do Estado. Naturalmente, como a maior parte das empresas atrás referidas tinham na altura prejuízos avultados, o alargamento do perímetro significava um agravamento do défice (porque a receita era inferior à despesa).
Outros ajustamentos
Os outros ajustamentos consistem na reclassificação de Operações Financeiras versus Não Financeiras, com impacto no saldo (classificação das operações nalguns casos dependentes de situação económica de setor contrapartida ou do tipo de contrato), tais como: receitas não financeiras; exclusão de “superdividendos” [1]; impostos ligados a reprivatizações; despesas não financeiras; inclusão de Garantias exercidas; Injeções de capitais não remuneráveis; empréstimos não reembolsáveis; assunções de dívidas; regularizações por OET relativas a compromissos não financeiros ainda não registados em Contabilidade Nacional (Tabela 1).
Fonte: CFP (Apontamento do Conselho das Finanças Públicas N.º 1/2014).
Síntese
Neste ensaio procurou-se especificar o cálculo do défice orçamental em Contas Nacionais. Partindo do défice em Contabilidade Pública existe um conjunto de ajustamento, quer relacionados com a especialização do exercício e com o perímetro de consolidação. Desta forma, procurou-se explicar por um lado as razoes que levam a que o défice em CP e em CN tenham valores diferentes (e por vezes bastante dispares) e por outro, expor o tipo de operações que podem aumentar o défice em CN mesma não tendo impacto em CP ou o inverso.
[1] Os pagamentos de montantes elevados e irregulares ou os pagamentos que excedam o rendimento empresarial do ano são designados “superdividendos”. São financiados pelas provisões acumuladas ou pela venda de ativos, e são registados como um levantamento de capital próprio igual à diferença entre o pagamento e o rendimento empresarial do período contabilístico pertinente. Na ausência de uma medida do rendimento empresarial, o lucro de exploração na contabilidade das empresas é utilizado em substituição.
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Afinal, como se calcula o défice em contas nacionais
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