Cristina, Goucha e o vale tudo na tv
Goucha e Cristina podem fazer muito mais para melhorar Portugal, que não sejam escravos dos frios números sem alma das audiências.
Há uma deterioração quase diária da indústria mediática. Nela cabem imprensa, diariamente a perder leitores, e televisão, com espectadores que cada vez mais se tornam auto-programadores de conteúdos que ocupam o seu lazer, passando por cima ou marimbando-se para a oferta dos canais generalistas. Essa perda de audiência ao minuto vai desaguar num rio de receitas publicitárias minguantes que ajudam a estrangular as empresas detentoras de licenças de emissão e no desaparecimento de um caudal de qualidade tanto na informação como no entretenimento. É um mal global, não só português, porque quem anda na arena mediática ainda não encontrou o antídoto para a fuga de públicos que correu para os braços das redes sociais e outras plataformas.
Em televisão, SIC e TVI entraram numa guerra total, isto porque a RTP se tem tornado irrelevante (sobrando apenas alguma boa oferta de séries e cultura na 2. Exemplos, a série “Sara”, com Beatriz Batarda, ou o magnífico “Super Diva – Ópera para todos”, com Catarina Molder a explicar com graça a história das grandes óperas em linguagem fácil e ao alcance de todos, um verdadeiro serviço público), com grelhas de manhã à noite praticamente iguais só variando os protagonistas. 2019 vai ser assim marcado pela bomba no mercado que foi o golpe de asa de Daniel Oliveira ter ido raptar uma das maiores estrelas de Queluz.
Já aqui no ECO elogiei o talento, a raça, a capacidade de trabalho de Cristina Ferreira. É uma força da natureza, tem talento, nunca rejeitou o seu passado e tem orgulho nas suas raízes, e vale cada cêntimo que se investiu nela pois traz retorno. É tempo de dizer que Manuel Luís Goucha é um enorme profissional de televisão, um homem que foi actor, cozinheiro e que se ergueu também com talento, inteligência e sensibilidade como um dos reis do pequeno ecrã. Logo, era natural o interesse da comunidade sobre este combate de dois amigos que cresceram juntos na força das suas marcas pessoais pelo horário das manhãs, que habitualmente tem por audiência o segmento da população de domésticas e reformados. A TVI liderava há longas semanas, a SIC apostou tudo na contratação da mulher mais conhecida da Malveira. Goucha trouxe uma nova colega de palco, a bonita Maria Cerqueira Gomes que ainda está a tactear o seu posicionamento, Cristina centrou tudo em si.
Agora, analisemos a batalha. Dei-me ao trabalho de ver os dois primeiros dias de ambos, vamos ao resumo. Na TVI convívio com os humoristas das manhãs da Comercial, namorado de MLG na cozinha, Marisa Cruz à frente do Majestic, no Porto, a perguntar sobre os Sete pecados mortais, acompanhamento de Roberto Leal à saída do hotel, um consultor de moda a invadir armários, um consultor a mudar o visual de alguém, passatempos que dão 5 mil euros e são dos maiores manás actuais de receitas televisivas, mulheres arrojadas aos 40 anos, uma rubrica que dá electrodomésticos no país real (dão televisores de luxo em casas que não têm casa de banho, um fabuloso sinal de civilização), um duelo entre duas cavalheiras sobre castração química e depois uma entrevista com o simpático Roberto Leal. Na SIC, uma conversa com um humorista sem graça sobre bidés, um passatempo de chamadas que dá 5 mil euros, cozinhados, entrevista a uma actriz que perdeu o filho recentemente, antevisão da entrevista à mãe do desaparecido Rui Pedro, depois uma boa ideia com Cristina a ir viver com as mulheres de Castro Laboreiro (algo que se continuar vai fomentar a proximidade com o país real, uma boa ideia, repito), revisitação do macabro crime de Carlos Castro e entrevista e jogo de cartas banhado a lágrimas com o presidente do Benfica. No dia seguinte, a dose é quase igual e tudo isto sobrecarregado com painéis sobre crimes hediondos. Somando a isto músicas de fundo e historietas para fazer chorar as pedras da calçada.
É um combate feroz pelas audiências onde vale tudo. Ninguém esperava cultura no meio de horas que são puro entretenimento, temos de reconhecer isso. Mas sem esquecer o momento caricato da entrevista de Mário Machado, acho que em tantas horas de emissão era tempo de se darem a conhecer mais histórias positivas, de sucesso, de empresários que ajudam a comunidade e criam emprego, de gente de talento que também dá boas e empolgantes narrativas. Não só a superação e luta contra o cancro de Roberto Leal ou as mudanças de vida de algumas pessoas que os programas, efectivamente, ajudam. Goucha e Cristina são pessoas de bem, sensíveis e se bem aconselhadas na construção dos respectivos programas têm capacidade de descobrir histórias e mais portugueses interessantes. Que não remetam os seus programas apenas para a baixaria e protagonistas que são engolidos rapidamente como a espuma das ondas. Goucha e Cristina podem fazer muito mais para melhorar Portugal, que não sejam escravos dos frios números sem alma das audiências.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
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