Emídio Guerreiro foi presidente da Comissão de Inquérito à gestão da CGD. Ainda não leu o relatório da EY, mas não foi surpreendido. E quer que o Governo promova ações criminais contra os gestores.
Emídio Guerreiro foi presidente da Comissão de Inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos (CGD) no período entre 2000 e 2015 e continua a defender o mérito da sua realização, apesar de não ter tido acesso à auditoria da EY sobre o banco público. Em entrevista ao ECO24, o programa de economia na TVI24 em parceria com o ECO, exige que o Governo avance para processos na justiça contra os gestores responsáveis por eventuais crimes. A operação que mais o surpreendeu? O financiamento de Vale do Lobo.
Um relatório preliminar da EY sobre a gestão da CGD revela negócios ruinosos e perdas de 1200 milhões de euros. Afinal, o que é que se passou no banco público?
Isso foi o que tentamos perceber a partir do momento em que foi anunciado que seria necessário injetar cerca de cinco mil milhões de euros na Caixa Geral de Depósitos (CGD), para a pôr a zero, para poder operar no mercado de forma diferente. É a partir desse momento que o PSD propôs a realização de uma auditoria, semelhante a esta que agora sai às prestações e, assim, meia clandestina, que vai aparecendo aos portugueses. O PSD propôs uma auditoria independente superintendida pela Assembleia da República.
A verdade é que não foi isso que a maioria parlamentar de esquerda quis. Na altura, em 2016, o PS, BE e PCP chumbaram. Resolvemos avançar para uma Comissão Parlamentar de Inquérito. A Comissão decorreu durante muitos meses mas, infelizmente para todos, no momento chave, quando já tínhamos duas decisões favoráveis do Tribunal da Relação de Lisboa a intimar a CGD a entregar esta listagens, e termos acesso aos processos que estão por trás das decisões destes créditos, a Comissão de Inquérito foi suspensa.
Mas foi Mário Centeno que deu uma ordem expressa para que se fizesse a auditoria.
Mas estamos em 2019, estávamos em 2016 e eu continuo sem perceber porque é que a maioria parlamentar, na altura, decidiu parar com os trabalhos da Comissão de Inquérito. Também não deixa de ser verdade que o próprio Ministério das Finanças se opôs aos pedidos da Comissão Parlamentar de inquérito. Não foi só a CGD que recorreu para o tribunal, foi a CGD, o Banco de Portugal, a CMVM e o Ministério das Finanças.
Porque é que não tinham interesse que fosse do domínio público?
Se calhar, nos próximos tempos, todos vamos perceber melhor porque, finalmente, a informação fica disponível. Houve aqui claramente uma intenção de esconder alguma coisa. Foi isso, na minha opinião, que esteve nesse conjunto de decisões. Esconder o comportamento se calhar de algumas pessoas, dos próprios reguladores e do próprio banco, enfim, de toda uma cadeia de processos que neste momento criam surpresa nas pessoas.
Não limita as responsabilidades a quem dirigia a Caixa?
Eu envolvo todas as instituições que orbitavam em torno disto. Não é só os decisores da Caixa, mas também quem estava do lado de lá a promover este tipo de negócios.
Tendo em conta o que se sabe agora, para que serviu a Comissão de Inquérito?
A Comissão teve o condão de, no curso dos seus trabalhos, expor algumas destas situações, até porque todas as pessoas envolvidas foram sendo chamadas. Nós ouvimos os principais administradores, presidentes ao longo deste período, ouvimos o regulador, e ouvimos alguns daqueles que apareciam na imprensa como sendo beneficiários de empréstimos, o que permite que as pessoas façam algum juízo de valor sobre o comportamento e sobre esse processo… Acho que a Comissão teve esse mérito.
Mas foi-nos reprovada a possibilidade de fazer uma auditoria independente como esta. Se calhar, se tivesse sido feita na altura de forma independente, poderíamos estar agora a discutir a forma indicada para atuar sobre questões especificas e não sobre questões gerais como aconteceu.
Logo à partida, um dos erros da Comissão de Inquérito foi que não colheu o voto favorável dos outros partidos. Foi um agendamento potestativo, o direito das minorias assim o prevê não havendo um acordo entre todos os partidos, o PSD e CDS insistiram na Comissão. Na qualidade de presidente da Comissão, [considero que] Isso veio dificultar muito o processo, porque havia muitas ideias preconcebidas. Havia partidos que procuravam puxar os assuntos para cima e outros que procuravam desestabilizar.
O PSD não estava a politizar o assunto, num momento em que a Caixa estava a discutir a recapitalização com as autoridades europeias?
Nós também não somos insensíveis a essas questões. Quando fomos confrontados com o anúncio de uma recapitalização de milhares de milhões, colocado em cima da mesa por este Governo, e com os partidos que apoiam este governo a apontarem o dedo antes de conhecermos os contornos do que se passou… quem é que tomou o primeiro passo no sentido de politizar a questão? Nós perguntamos porque é que é preciso tanto dinheiro. É o dinheiro de todos nos, são milhares de milhões que vêm dos nossos impostos.
Mas que deveria ter sido injetado capital na CGD durante o Governo PSD/CDS…
…Foi dinheiro que resultou do facto de se ter assumido um conjunto de compromissos que não foram cumpridos e que criaram um buraco. O Governo do PSD/CDS fez uma capitalização na altura, mas muito mais pequena. Eu também gosto de ser gestor com as contas todas a zero e sem desafios, é fácil qualquer um gerir essas grandes instituições. Agora, ter que esgadanhar para fazer face aos compromissos é mais difícil. Não podemos esquecer que em 2011/2012 não havia dinheiro e por isso o esforço de capitalização que se fez na altura já foi significativo e dando o sinal da importância da preservação de um banco público.
Na Assembleia, ouvimos o ministro Centeno dizer “o crime de privatizar a caixa”… se quiséssemos, tínhamo-lo feito. Isto são ruídos que se criam em torno do debate, para que as pessoas desviem a atenção daquilo que é essencial, que é perceber porque é que aquilo aconteceu e quem são os responsáveis.
Já leu a versão preliminar da EY? Que lições tira face à experiência que teve na comissão?
Não li, só o que foi publicado. Há uma série de empresas que estão na listagem que não conhecia, vejo lá outras que foram faladas na Comissão de Inquérito e que se confirma que estão ali.
Não foi uma surpresa para si?
Ter vindo a público desta forma foi uma surpresa. O conteúdo em si não, mas vou aguardar para ver o resto. Vai ao encontro do que fui ouvindo dos diversos interrogatórios aos diferentes players. Não me esqueço de algumas frases que foram ditas, por exemplo de Faria de Oliveira, como “a culpa de tudo isto foi a crise, as coisas não tinham esta gravidade”. Acho que isto é de uma gravidade enorme, porque há comissões de atribuição de crédito e de fiscalização, de risco. Nós nunca conseguimos perceber quem fazia os pareceres, quem sustentava tecnicamente esses pareceres, e quem decidia em cima disso.
Acabou a comissão sem perceber isso?
Sim, acabámos todos. Basta ver as audições, porque havia sempre uma teia complexa, envolvia sempre muita gente.
Houve casos de nepotismo político?
Fiquei com a convicção de que, em determinados momentos, houve de facto interferência politica junto de alguns decisores da Caixa. Nomeadamente quando se avança para um certo tipo de projetos, como os PIN (projetos de interesse nacional). Quando temos um projeto PIN, significa que é importante para o país, e se é importante para o país, também me parece plausível que o principal banco público se envolvesse no projeto. Agora, as coisas deveriam ter acontecido pela qualidade do negócio, e não por decisão politica de atribuir a um determinado negócio a classificação de PIN e ser financiado como tal junto dos decisores da Caixa. E isso ficou claro na Comissão, houve em determinados momentos essa interferência. Alguns foram dizendo que é normal terem reuniões com ministros da tutela, não acho tão normal os que dizem que nunca falaram com o Governo.
Qual foi o negócio da CGD que mais o surpreendeu?
O que mais me surpreendeu foi a questão de Vale do Lobo… foi muito bem pensada, tem várias nuances. A forma como foi comprada a empresa, como ficou para trás uma pequena parcela que foi comprada por alguns acionistas da empresa e que, depois, essa parcela — que não era importante — parou o complexo global — depois já era importante — e de repente aquilo que tinha custado umas centenas de milhares de euros foi vendida por 11 milhões. Essa impressionou-me, porque acho que havia ali, de facto, um sentimento de que aquilo era possível.
E essa avaliação não está potenciada pelo facto de ser uma operação que envolve Armando Vara e José Sócrates?
Eu recuso esse tipo de juízo de valores, não vou entrar por ai.
E não houve nenhum processo decidido em Governos do PSD que o tenha surpreendido?
Provavelmente sim. Ainda não tive oportunidade de estudar, mas não tenho dúvidas que possa ter acontecido.
Há uma lista enorme de empréstimos que aparecem como suspeitos, de favor ou com objetivos menos claros. Este retrato, desta forma, que mistura tudo, não fragiliza o banco público?
É evidente que fragiliza e é por isso que chegámos a essa situação. Assim como também fragiliza o posicionamento do Governo neste momento. Por um lado, não tem nada a ver com isto (estou a falar do Governo), mas, por outro lado, quer esclarecer tudo, o que é uma coisa que me faz uma certa espécie. Nós não vemos o Governo preocupado quando fecham balcões em municípios que ficam sem balcões, quando vemos as taxas que são idênticas ou superiores aos bancos concorrenciais privados e que criam dificuldades aos pensionistas e às pessoas com rendimentos mais baixos. Aí, o Governo lava as mãos e diz que é um problema da administração da Caixa.
Agora, neste caso, também está a dizer que é um problema da administração da Caixa…
Mas não é, a não ser que o Governo não queira, de facto, responsabilizar os gestores que tomaram este tipo de decisões.
O Governo tem responsabilidades? É consequente investigar?
Eu penso que sim. E acho que sim, para começarmos, de uma vez por todas, a dar alguns sinais às pessoas de que os poderosos também são castigados, ou pelo menos são alvos de processos para se justificarem, havendo a possibilidade de haver um castigo no final. Eu quero acreditar nisso. Agora, isso só pode ser desencadeado, na minha opinião, pelo acionista. Neste caso, é o Governo.
Os gestores da CGD deveriam ser acusados de gestão danosa?
Nós temos a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal. O Governo está a pedir, no âmbito da responsabilidade civil, que a administração atue. Acho muito bem. Não se pode é fugir à outra, porque essa depende dele. Sendo o Estado acionista, é ele que tem o poder de desencadear essa parte. Acho que o deveria fazer, senão está a continuar a lavar as mãos. Mas não é assim, os cinco mil milhões [de euros] foram nossos, são nossos.
O Governo deveria agir criminalmente contra esses gestores?
Sim. Deveria ponderar e desencadear essa processo na justiça, havendo aqui dúvidas. É muito dinheiro e são muitos processos que falharam.
A Comissão de Inquérito à CGD já terminou. O relatório que saiu é público, desresponsabilizava as administrações da CGD pelos números que foram apresentados. Face a estas informações, seria de ponderar promover uma nova Comissão de Inquérito?
Isso é um debate interessante, mas ainda é prematuro tê-lo. Ainda temos de esperar mais algum tempo para perceber realmente o que é que ali está. Nós temos alguns dados em cima da mesa, que são preliminares, e que merecem a atenção de toda a gente. Merecem ser estudados e refletidos. Acho que é muito prematuro estarmos a dizer às pessoas ‘vamos reabrir ou apoiar uma nova comissão de inquérito’. Porque, senão, também as banalizamos. Nos últimos anos, temos tido comissões umas atrás das outras, que as pessoas já não valorizam. Há uns anos, quando aparecia uma comissão de inquérito, todas as pessoas valorizavam.
Então, o que o Parlamento pode fazer com essa auditoria?
No âmbito das suas responsabilidades e das suas competências, o Governo pode questionar o Governo, pode fazer um inquérito parlamentar sobre isso, pode fazer um conjunto de instrumentos que estão à sua disposição na constituição, incluindo a comissão de inquérito, como já aconteceu. Agora, há uma coisa que se pode já fazer, que é perguntar porquê tudo isto. O período de tempo mais crítico está muito bem identificado, e houve uma tomada de poder de um banco privado, houve muitas coisas estranhas. Isto pode ter sido tudo de forma tranquila, coincidência, mas tem de ser apurado e estudado.
Não acredita em coincidências, pelo que se percebe…
… algumas são um bocado difíceis, mas tenho de ter esperança que a justiça e as evidências que possam surgir destes relatórios, que andaram escondidos e que nós pedimos há anos, tragam, de facto, evidências para demonstrar se há coincidências ou não há. Até lá, sou cético, tenho que ser.
E hoje, olha para a atual administração da Caixa e vê algum indício de gestão próxima do que estes relatórios mostram?
A perceção que tenho é que a gestão [de Paulo Macedo] é significativamente diferente. Mas, por outro lado, também me incomoda que um banco público tenha um comportamento com os cidadãos, nalguns aspetos, em tudo igual aos bancos privados e até mais penalizador para o cidadão. Estou a falar das taxas, estou a falar do encerramento de balcões…
A CGD tem de se pagar, não é?
Não pode é dar esse tipo de prejuízo e tem de ser capaz de, dentro dos seus lucros, colocar este tipo de serviços às populações. É para isso também que a CGD serve, senão, parece que atua exatamente como um banco privado.
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Emídio Guerreiro: “Fiquei com a convicção de que houve interferência política junto de alguns decisores da CGD”
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