Já chegou ao Parlamento a proposta de lei do BE que quer taxar os gigantes da economia digital e apoiar a imprensa. O jornalista Diogo Queiroz de Andrade escreve um ensaio sobre este projeto.
Já foi entregue na Assembleia da República o projeto de lei do Bloco de Esquerda que visa taxar os serviços digitais prestados pelos gigantes tecnológicos (leia-se Facebook, Google, Microsoft, Amazon e Apple, entre outras). Com este projeto, o Bloco prevê recolher entre 60 a 100 milhões, dos quais quer alocar já cerca de 25 milhões para apoios à imprensa.
Os valores apresentados partem das estimativas feita pela União Europeia no ano passado e pela lógica orçamental proposta numa proposta de lei semelhante já introduzida no orçamento espanhol para este ano. Pedro Filipe Soares, um dos autores da proposta do Bloco de Esquerda, confirma que adaptaram o “projeto espanhol ao quadro legislativo nacional” e que, como as contas do imposto espanhol antecipam um valor para os cofres de Madrid na ordem dos quinhentos milhões de euros e a nossa economia equivale a um quinto, “apontou-se para o limite de cem milhões”. Ao mesmo tempo, estudos da Comissão Europeia para um imposto europeu atribuíam a Portugal um valor de 60 milhões na sua redistribuição, pelo que estes valores servem para enquadrar a expectativa do Bloco.
O deputado do BE explica o momento da apresentação desta proposta: “Há um impasse neste tema à escala mundial e europeia, mas ao mesmo tempo há vários países que estão a avançar com a ideia e isso facilita que um pequeno país como Portugal possa avançar com esta ideia. Este contexto força um novo equilíbrio de forças que ajuda à tributação destas empresas”.
Esta é uma ideia que já está em prática em vários países. O Bloco justifica o seu projeto com a pujança do digital, que trouxe “novas formas de negócio e novas atividades económicas, fazendo uso da desmaterialização da informação assumiu-se como uma presença transfronteiriça, tendo uma presença física quase nula nos Estados e baseada em ativos muitas vezes intangíveis.” E este é um facto genericamente reconhecido pelas entidades que analisam e intervêm na economia mundial, como a OCDE e a União Europeia. O exemplo da publicidade digital é claro: empresas como Google e Facebook lucram com a exibição da publicidade digital em Portugal, mas pagam impostos em países como a Irlanda ou o Luxemburgo, onde têm as sedes europeias precisamente porque possuem um regime contributo muito mais reduzido. É uma dupla perda: o dinheiro da publicidade deixa de ir para empresas portuguesas e o imposto também não vai para o Estado.
Há um outro aspeto que, por vezes, surge como justificação para este tipo de impostos e que costuma ser referido pelas entidades internacionais, embora não conste no projeto do BE: estas indústrias digitais têm uma capacidade de escalar serviço sem que isso tenha uma correspondente na empregabilidade, ou seja, é crescimento bruto que (quase) não se reflete nos postos de trabalho – ao contrário das indústrias tradicionais que vingaram até ao início do século XXI. Este é o racional que tem sido apresentado a nível internacional para justificar um imposto defendido por economistas como forma de redução da desigualdade.
Não temos qualquer intenção de determinar para onde vão estes fundos, não pode ser o Estado ou o Governo a dizer o que se deve ler. O que queremos é reduzir a separação entre os jovens e a imprensa.
Ao imposto tecnológico, o BE junta outro racional: que estas empresas tecnológicas trouxeram consequências graves ao nível da qualidade da democracia, principalmente porque prejudicaram a imprensa. Assim, na lógica de defender “uma comunicação social forte e independente, capaz de garantir essa cidadania informada”, a proposta de lei junta um facto a outro e pretende criar um fundo que possa ser redistribuído nos media. A forma como o faz é original: oferta a todos os estudantes do 12º ano e do ensino superior uma assinatura digital de um meio de comunicação, cujo título será escolhido pelo estudante e paga pelo Estado. Sobre o facto de isso poder servir apenas meios de entretenimento e não meios que produzem jornalismo de referência, Pedro Filipe Soares é taxativo: “Não temos qualquer intenção de determinar para onde vão estes fundos, não pode ser o Estado ou o Governo a dizer o que se deve ler. O que queremos é reduzir a separação entre os jovens e a imprensa.”
Assim, o Bloco propõe-se enfrentar dois problemas decorrentes da revolução digital: os serviços globalizados que não são taxados em sede de consumo e a crise da imprensa. É certo que ambos têm uma relação direta com as plataformas digitais, mas não é habitual vê-los juntos – a não ser no Reino Unido, onde Jeremy Corbyn fez uma proposta bastante semelhante em 2018. Sendo essencialmente decorrências da globalização, vale a pena perceber como estas duas questões são entendidas a nível internacional.
O imposto tecnológico
A ideia já circula há alguns anos nos corredores do edifício Berlaymont, sede da Comissão Europeia: taxar os gigantes digitais de forma uniforme e consequente para garantir mais equidade na taxação dos serviços nos diversos países da União.
A ideia começou a ser veiculada ainda na Comissão Barroso, mas esbarrou sempre na resistência de alguns países: a Irlanda e o Luxemburgo nunca aceitaram a perda de receita que isso traria e o Reino Unido sempre contestou também essa possibilidade, porque ela equivaleria a uma forma de harmonização fiscal forçada.
Quando, já na era Trump, os alemães abandonaram a ideia por receio de represálias americanas na imposição de tarifas contra a sua indústria automóvel, vários países decidiram avançar de forma independente. Emmanuel Macron, que já tinha proposto a ideia várias vezes, aproveitou a crise dos coletes amarelos para argumentar com o momento propício para criar uma taxa sobre os gigantes digitais – e vai no mês que vem aprovar uma lei que terá efeitos retroativos ao início do ano.
Em Espanha, a taxa de 3% sobre os lucros destes serviços digitais está já prevista no orçamento de Estado deste ano. A Áustria foi pelo mesmo caminho. O Reino Unido anunciou em finais de outubro um plano para também taxar os serviços digitais num valor de 2%, embora preveja um período de consulta pública que só se torna realidade em 2020, podendo ainda atingir empresas como Airbnb ou Uber. Os alemães optam pela ideia de um imposto “global” que seja equitativamente distribuído. Vários outros países na América Latina e na Ásia ponderam criar impostos sobre estes serviços de difícil taxação.
Para além da pressão de alguns estados-membros, com a Alemanha à cabeça, há uma outra razão para a União Europeia ter deixado para trás a ideia de um imposto transversal. É que a pressão sobre as gigantes tecnológicas tem sido encabeçada em grande medida pela comissária da Concorrência, Margrethe Vestager – só neste mandato já foram aplicadas às gigantes americanas multas por abuso de posição dominante e por fuga aos impostos que batem todos os recordes a nível global. Aí a posição da União tem sido clara, com a promessa de endurecer ainda mais a legislação enquadrável – como é o caso do GDPR, que já motivou a abertura de novos processos de contra-ordenação, e a possível aprovação das novas leis de direitos de autor.
Com a Comissão Europeia prestes a mudar, fruto das próximas eleições para o Parlamento Europeu, alguns destes aspetos podem também sofrer alterações. Mas como um dos nomes de que mais se fala para liderar a nova Comissão é o da própria Vestager, a mudança pode mesmo ir contra aos interesses americanos. Em pano de fundo está a crescente preocupação com a preservação do ecossistema tecnológico europeu e com a ameaça que a tecnologia pode exercer sobre os valores do velho continente – um exemplo típico muito discutido em Bruxelas tem a ver com o risco da erosão de privacidade e independência motivada pelas crescentes capacidades dos algoritmos em manipular o acesso a informação dos cidadãos, o que só vai aumentar com a evolução da inteligência artificial e do big data. Por isso, o braço legislativo da União terá muito com que se entreter nos próximos tempos.
Em “Throwing Rocks at the Google Bus”, Douglas Rushkoff faz a crítica económica dos gigantes da economia digital, inflacionando números sem expressão na economia real. A crítica a estas empresas tem sido feita por economistas, filósofos (como Michel Peuch, que ainda esta semana deu uma conferência em Lisboa) e até por financeiros como George Soros, que na cimeira de Davos18 fez um ataque fortíssimo ao Facebook e aos seus “comparsas na economia digital”. Os populistas não se queixam: não só Trump adora as redes sociais como Mateo Salvini, o líder populista que venceu as eleições em Itália, fez questão de agradecer a deus e ao Facebook.
O apoio ao jornalismo
A relativa originalidade do projeto do Bloco consiste em ligar diretamente este imposto ao apoio à comunicação social. Pedro Filipe Soares reforça que “o imposto vale por si só, mas quisemos assinalar uma valorização da cidadania e a defesa da democracia e por isso propomos o apoio aos média como um bom destino a dar a parte desta receita.” Em termos europeus, só no Reino Unido é que os trabalhistas propuseram uma ideia semelhante, que alocava o dinheiro recolhido pelo imposto a um fundo destinado a promover o jornalismo de investigação e o apoio ao jornalismo local e à BBC.
Aqui a questão é muito mais complexa – e polémica. Em primeiro lugar porque a decadência financeira dos media tem uma explicação complexa e que não se resume à emergência das plataformas digitais, embora estas tenham desempenhado um papel determinante.
Mais importante do que isso, os apoios públicos ao jornalismo são um anátema perigoso por causa dos riscos que isso comporta para a independência dos meios e para a criação de uma cultura de dependência. Mas também é um facto que a economia digital colocou hoje a nu o risco de insustentabilidade do jornalismo de qualidade, que pura e simplesmente não tem revelado maneira de sobreviver a longo prazo sem o apoio de mecenas públicos ou privados.
O bom jornalismo é “caro na produção e barato na distribuição”, tendo um valor inestimável na coesão social. Excetuando os títulos globais como o New York Times ou o Guardian e os de nicho como o Wall Street Journal ou o Financial Times, são muito poucos os casos de sucesso financeiro nos media. E, quando se trata de países ou línguas com menor expressão e com consumidores menos abonados, o cenário é ainda mais dramático. Isso tem consequências na qualidade do debate público e da democracia, questão agravada com a maior circulação de notícias falsas e com um discurso populista que simplifica as opiniões ao nível do preto ou do branco, sem margem para cambiantes de cinzento.
Corinne Schweizer, professora de comunicação em Zurique, fez em 2014 um estudo para a London School of Economics sobre a forma como os fundos públicos eram usados para apoiar os media privados na Europa. Tipificou os apoios em diretos e indiretos e, dentro de ambos, em gerais e seletivos. Um apoio direto seria dinheiro dado diretamente a um meio de comunicação, os indiretos seriam redução de impostos ou tarifas, e o diferencial geral ou seletivo dependeria da abrangência dos apoios. Nesta lógica, o projeto do BE contempla apoios indiretos gerais (redução do porte pago, uma medida reclamada há muito tempo pelo impacto nos jornais regionais) e seletivos (visto que a escolha dos títulos seria feita pelos consumidores).
A proposta do Bloco de Esquerda é mais uma chamada de atenção para a situação complexa em que vivem as empresas que fazem jornalismo, entre os cliques que valem cada vez menos e um público que ainda resiste a pagar pelo jornalismo de que usufrui – como leitor e também como cidadão.
Na Europa os apoios mais habituais são mesmo os indiretos, com a redução de IVA à cabeça. Em países como a Bélgica ou a Dinamarca os media não pagam IVA e em Itália ou em França pagam uma taxa muito reduzida (4% e 2%, respetivamente). Outras medidas incluíram ao longo dos anos o apoio na compra de papel para impressão e de descontos nas telecomunicações. Os apoios diretos ficam normalmente reservados para serviços noticiosos em línguas minoritárias (como na Finlândia) ou o apoio à formação de jornalistas (como em França e na Holanda).
Schweizer reforça que a abertura da União Europeia a varias modalidades de IVA para os media é algo que pode ser implementado pelos estados membros – mas afirma que “apoios diretos são também essenciais porque podem promover pluralismo e diversidade”. E ao mesmo tempo recorda que iniciativas privadas “como crowdfunding ou apoio de fundações” também joga um papel determinante na sobrevivência dos meios de comunicação, algo que é difícil em países com a dimensão de Portugal. Há aqui um aspeto importante que tem a ver com “a mentalidade do próprio profissional de informação, habituado a ver-se como livre e independente do governo e do Estado” – até porque ao contrário da televisão (cuja radiofrequência é atribuída por uma licença pública e renovável), a imprensa tem uma regulação muito mais ligeira.
Uma outra solução passa por apoios concretos à inovação das empresas de média. Essa ideia tem sido posta em prática por governos como o francês, que tem desde 2013 um fundo que apoia os jornais, mas também pelos próprios gigantes tecnológicos: a Google lançou em 2016 o Digital News Initiative que em três anos entregou 300 milhões de euros aos media europeus para que estes exerçam inovação. A última ronda de financiamento está agora a decorrer e o fundo acaba de ser transformado num projeto global em que se dilui o montante por muitos mais participantes e se afasta de uma lógica de apoio à imprensa europeia. Também o Facebook anunciou em dezembro um mecanismo de apoio de 300 milhões de dólares ao jornalismo local nos EUA, embora não tenha ainda concretizado a proposta.
Já Dora Santos Silva, professora de comunicação da Universidade Nova/FCSH e diretora do novo Observatório de Inovação dos Media e Indústrias Criativas, elogia a proposta do Bloco, mas com críticas: “A essência da proposta é boa, porque temos de proteger cada vez mais a qualidade dos conteúdos jornalísticos. Mas creio que terá de ser muito mais bem pensada porque neste momento a forma do apoio não faz sentido nenhum”. Relativamente à proposta de dar aos jovens a escolha sobre o título, é taxativa: “eles não podem escolher de um leque totalmente alargado. A disponibilizar algo ao aluno, terá de ser no âmbito do jornalismo de referência – senão estamos a contribuir para o falhanço da literacia mediática.”
Sobre a inclusão do serviço público neste pacote, a professora responde que “pode fazer sentido, desde que enquadrado num plano estratégico. Por exemplo, a RTP praticamente não existe no digital e isso poderia ser colmatado com uma medida deste género.” Em termos de modelo de negócio, Dora Santos Silva vê futuro nas fundações jornalísticas, que têm vingado em alguns países e estados dos EUA: “as associações sem fins lucrativos têm benefícios fiscais e a obrigação de reinvestir o que ganham em mais e melhor serviço às populações, o que faz sentido em termos gerais.”
Outro aspeto que fica por abordar nesta proposta do Bloco é que a assinatura digital dá aos seus titulares acesso ao jornalismo de qualidade, mas não contribui para maior acesso ao jornalismo na sociedade. E, num momento em que quase todos os meios de comunicação optam por erguer paywalls que limitam o acesso aos conteúdos, quem não tem dinheiro para pagar acaba por não ter acesso ao jornalismo.
Catarina Carvalho, diretora executiva do Diário de Notícias, refere a importância da manutenção deste debate: “A proposta do Bloco de Esquerda é mais uma chamada de atenção para a situação complexa em que vivem as empresas que fazem jornalismo, entre os cliques que valem cada vez menos e um público que ainda resiste a pagar pelo jornalismo de que usufrui – como leitor e também como cidadão. O bom jornalismo custa caro, e não parece haver modelo de negócio para ele.” Afirmando que há várias medidas alternativas e que se podem pensar noutros mecanismos, reforça que o “que é mesmo urgente é um debate aberto e sem preconceitos sobre o tema, antes que, como dizia alguém esta semana, a internet, que acabou com o jornalismo em papel, acabe com o jornalismo digital.” A discussão fica agora do lado dos parlamentares.
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