As greves no país do “respeitinho”
A greve dos enfermeiros não está enquadrada nas organizações que detêm a tutela quase exclusiva da prática do sindicalismo. E isso incomoda os incumbentes. Ninguém gosta de perder o seu monopólio.
As estatísticas dizem que em Portugal se realizaram 106 greves em 2017, uma média de duas por semana. No ano passado, só entre Janeiro e Outubro houve pré-aviso para mais de 500 greves. A maior parte não terá acontecido – ainda não há dados oficiais fechados – mas o número final não deverá ser inferior ao do ano anterior. Nenhuma destas greves foi tão discutida e levantou tanta polémica como a que está em curso feita pelos enfermeiros. Porquê?
Porque põe em causa um dos direitos mais importantes dos cidadãos, o dos cuidados de saúde? Não, não será por isso. Se fosse, as greves feitas pelos médicos em Maio de 2017 e Maio de 2018 teriam gerado a mesma discussão, porque também elas levaram ao adiamento de muitas centenas de cirurgias e de consultas em cada um desses protestos. E dessa vez não se discutiu o tremendo impacto ou eventual falta de ética no adiamento de tratamentos em milhares de doentes.
Também não será pelo envolvimento da Ordem nestas matérias sindicais porque as greves dos médicos e de outras classes profissionais costumam ter, por regra, o apoio dessas estruturas, quando elas existem.
E muito menos é pelo seu caderno reivindicativo, idêntico ao que vemos na generalidade das greves: mais ordenados (neste caso de 1200 euros para 1600 euros na entrada na profissão), acesso à reforma mais cedo (57 anos), reorganização de carreiras. Independentemente da sua justiça, estas exigências são incomportáveis para os contribuintes, seriam catastróficas para a Segurança Social e desequilibradas face a outros profissionais. Tal como acontece, por exemplo, com a actual luta dos professores.
O Governo está a ter uma atitude responsável ao não satisfazer estas exigências. Mais: como noutras greves, este Governo fez bem em activar a requisição civil quando avaliou que os serviços mínimos não estavam a ser cumpridos. Se há dúvidas, os tribunais que decidam.
Portanto, até aqui, “no news”. O que distingue esta greve da generalidade de outras, e que tanto alvoroço está a provocar, são outras três características.
A primeira é que esta greve escapa ao controlo ou tutela indirecta das estruturas sindicais historicamente dominadoras das lutas laborais. Foi convocada por dois sindicatos recém criados, que não estão associados às “holdings” sindicais CGTP e UGT e que não foram ao “beija mão” dessas estruturas para avançar com o protesto. Quando se fala do suposto carácter “inorgânico” deste protesto é disto que se está a falar. Ele é liderado por organizações sindicais formalmente tão legítimas como as restantes. Não está é enquadrado nas organizações que detêm a tutela quase exclusiva da prática do sindicalismo. E isso, naturalmente, incomoda os incumbentes, que não gostam que venha alguém de fora intrometer-se na sua actividade. Ninguém gosta de perder o seu monopólio.
A segunda característica é a sua colagem à direita. Não faço ideia, ninguém fará, se a maioria dos enfermeiros que organizam a greve e a fazem são mais alinhados com o partido A ou B, se são de direita ou votam à esquerda. Mas a bastonária da Ordem, Ana Rita Cavaco, é assumidamente militante do PSD e um dos rostos da greve. E para as claques partidárias, sempre tão mergulhadas na sua bolha mediática, isso basta para virar ao contrário a “ordem natural das coisas”. A nossa “normalidade”, com a qual convivemos bem, diz-nos que os sindicatos são de esquerda, sobretudo ligados à CGTP e ao PCP. Mas se vem alguém conotado com a direita reivindicar como os de esquerda já nos baralha as gavetas onde, por conveniência, gostamos de arrumar tudo. E é ver a muita gente de esquerda indignada com um protesto sindical igual aos outros e muita gente de direita deliciada com ele. O fenómeno é muito semelhante ao que ocorre nas bancadas dos jogos de futebol na avaliação do trabalho do árbitro. E não é bonito de se ver.
Mas é a terceira, a questão do financiamento, o tormentoso “crowdfunding” que muita gente terá descoberto agora, que está a gerar mais discussão. A pergunta principal que deve ser feita é se deve ser permitido que trabalhadores em greve possam ser compensados “por fora” pelo salário que perdem pelo facto de a fazerem. A questão faz sentido e deve ser discutida.
Se não houver um custo, uma penalização, pode baixar o nível de responsabilidade quando se convoca e se decide fazer uma greve e tornar o seu exercício verdadeiramente selvagem.
Mas isso é permitido em Portugal. São vários os sindicatos que dispõem dos chamados “fundos de greve”, montantes de reserva que servem precisamente para pagar os salários que os trabalhadores em greve deixam de receber da entidade patronal.
O SEAL, poderoso sindicato dos estivadores, é um desses casos. Os seus filiados descontam 4% do salário, “talvez a quotização mais alta dos sindicatos portugueses”, como diz o seu presidente.
O SMAQ, um dos sindicatos de maquinistas da CP, também tem um fundo de greve. Tal como o Sindicato dos Quadros Bancários: “Temos um fundo de greve canhão, com oito milhões de euros”.
Mas ainda assim é diferente o que está a ser feito pelos enfermeiros. A compensação desta greve não decorre de um fundo de greve formal, constituído ao longo de anos com as contribuições dos filiados (até porque os sindicatos promotores desta greve são recentes). Em vez disso foi lançada uma acção de angariação de fundos através de uma plataforma electrónica de “crowdfunding” – a PPL deve estar muito satisfeita com toda a notoriedade que conseguiu nos últimos dias – e aí levanta-se a questão da transparência: afinal, quem está a compensar os enfermeiros em greve?
Quem quiser pode começar a ter respostas na própria plataforma, onde aparecem nomes de uma larga maioria dos doadores.
Aliás, esta forma “ad hoc” de peditório para uma greve nem é nova. Em 2013, os professores recorreram ao mesmo sistema informal na greve às avaliações. De acordo com este relato, foi feita a recolha directa de dinheiro nas escolas. Mas não sabemos quem contribuiu com quanto. Isto é mais ou menos transparente do que o processo de uma plataforma electrónica que tem registados os dados bancários e transferências de cada um dos doadores?
Se o processo é o mesmo e a diferença está no método, então os enfermeiros só foram mais profissionais, porque recorrerem a instrumentos mais eficazes para atingir os seus objectivos.
A questão da identificação das fontes de financiamento é importante mas também a que mais se presta à hipocrisia. Numa democracia liberal que se quer transparente, seguir o rasto do dinheiro de acções públicas e políticas é importante para detectar sinais de eventuais capturas do interesse público por interesses particulares.
No caso concreto dos enfermeiros, a suspeita que está ser levantada é que pode haver grupos de saúde privados a financiar a greve – João Paulo Correia, deputado do PS, já deu voz a essa suspeita: “Essa é uma interrogação que está na cabeça de todos os portugueses”.
Não nos é difícil adivinhar que, se esta greve fosse promovida por sindicatos afectos à CGTP ou à UGT, nunca se colocaria essa suspeita. Como não se colocou, por exemplo, nas greves de médicos. Como não se coloca nas greves de maquinistas, não passando pela cabeça de ninguém que possam ser os fabricantes de automóveis e empresas de combustíveis a querer degradar os transportes públicos a favor da utilização individual do carro.
Mas, de novo, a transparência dos financiamentos é importante. No sindicalismo como na vida política. E não deixa de ser hipócrita que os partidos que se permitem fazer acções de angariação de fundos sem identificação de cada um dos contributos – festivais, festas, eventos, almoços e jantares – e que mantêm em conveniente asfixia de meios a Entidade das Contas que tem como função verificar a proveniência dos financiamentos para campanhas eleitorais e para o seu funcionamento, estejam muito preocupados com uma angariação de fundos para uma greve.
Não são nada bons a dar o exemplo. Eles, que gerem um Orçamento do Estado de 91 mil milhões e fazem as leis para 10 milhões de cidadãos, estão disponíveis a tornar pública a origem de cada euro que entra nas suas contas? A eliminar todo o dinheiro vivo que circula nas suas actividades? Se sim, devem fazê-lo e logo a seguir estabelecer as mesmas regras para a generalidade das entidades que participam na vida pública e política.
O país só tem a ganhar com isso.
Deixo para o fim o facto mais preocupante deste caso: a ASAE, que vai investigar os fundos da greve dos enfermeiros. A lei que regula o crowdfunding está pronta há um ano mas ainda não está em vigor porque não foi regulamentada. Repare-se: o mesmo Estado que demora um ano a regulamentar uma lei que, pelos vistos, é importante para a transparência da vida pública, decide agora, numa diligência e zelo raramente vistos, ir verificar o cumprimento dessa lei que não está em vigor.
O presidente da ASAE invoca o “clamor social” para o fazer. Não nos passa pela cabeça que um órgão de polícia criminal do Estado possa estar a ser usado numa disputa política e sindical em nome de um “clamor social”, o que nos recordaria outros tempos e outros regimes.
Com tanto zelo e proactividade, talvez a ASAE possa dar uma ajudinha à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que está com declarada falta de meios. Nunca se sabe se há interesses privados ou internacionais a financiar partidos políticos que depois contaminam a sua actuação no Parlamento e nos Governos.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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