Dívida Externa, Dívida Histórica

Não existe nenhuma narrativa de Bruxelas capaz de substituir e de unir a memória histórica de um Continente trágico.

Existe uma magia tóxica na ilusão de que a História é um País Distante. O eixo que liga Berlim a Atenas está mais vincado pela História do que pelas regras e regulamentos de Bruxelas. E se dúvidas persistem, eis a lei aprovada pelo Parlamento Grego que reclama da Alemanha o pagamento de reparações de guerra em virtude dos danos morais e materiais provocados pela ocupação. A lei não pode ser justificada por mais um surto radical com origem e propagação no Syriza, tanto mais que foi aprovada pela Nova Democracia e pelo Kinal (Movimento Social Democrata para a Mudança). Significativo é o facto do partido Aurora Dourada, nacionalista, populista, conotado com a extrema-direita, ter votado contra a Lei das Reparações de Guerra. Parece que uma certa ideologia pan-europeia se sobrepõe à mera evocação do espírito nacionalista. O argumento do Primeiro-Ministro Tsipras justifica a necessidade da lei pela imposição de um “dever moral histórico”, deposita no espírito da lei o “dever de comemorar os heróis do passado na resistência ao fascismo”, mas sobretudo entende o alcance da lei como uma mensagem política para um tempo em que a extrema-direita regressa com renovada força, impulsionada pelos novos nacionalismos em ascensão e pelo “discurso racista” do ódio contra o outro que cobre a superfície política da Europa.

Durante a ocupação Alemã morreram 300,000 gregos ao qual se adiciona a contabilidade macabra de uma comunidade judaica quase completamente obliterada em cinzas. As reservas de ouro do Banco Central da Grécia foram incorporadas no ReichsBank e serviram para pagar as campanhas Alemãs no Norte de África. O Banco Central da Grécia foi obrigado a conceder um denominado “Empréstimo de Ocupação”, livre de juros, no valor de 11 mil milhões de Euros. A destruição material e dos activos nacionais da Grécia ascendem ao valor de 288 mil milhões de Euros. Tudo somado, a Grécia exige o pagamento global de 300 mil milhões de Euros ao abrigo do dispositivo internacional das compensações de guerra. A resposta lacónica de Berlim sublinha que essa questão foi encerrada em 1960, ano no qual a Alemanha pagou à Grécia o montante de 115 milhões de DeutschMarks, o equivalente ao montante aproximado de 285.92 milhões de Euros.

Mas a questão das indemnizações pelo passado da Alemanha não são um epifenómeno Grego. Conhecida a aprovação da Lei na Grécia, logo na Polónia o Presidente da Comissão Parlamentar para as Reparações vem relembrar a obrigação moral e material que a Alemanha mantém para com o estado da Polónia. Durante a ocupação Alemã, Varsóvia foi reduzida a escombros, tendo sido reconstruída em 98% da sua extensão. Durante o levantamento de Varsóvia em 1944 morreram 200,000 civis, um número que é uma parcela incluída nos 6 milhões de Polacos mortos, 3 milhões dos quais Judeus de origem Polaca. Na contabilidade geral, a Polónia exige o valor de 800 mil milhões de Euros ao abrigo do dispositivo internacional das compensações de guerra. A resposta de Berlim sublinha que a cedência em 1953 de territórios pertencentes aos Länder situados na parte Oriental da Alemanha, sob insistente pressão Soviética, salda a dívida Alemã para com a Polónia.

Em ano de Eleições Europeias, quando pela Europa a Aliança dos Populistas dissemina a histórica mensagem da direita radical, a utilização do passado como factor de compensação moral e material é um facto perigoso na vida do Continente. A memória da Europa foi desenhada pela experiência de vagas sucessivas de invasões e episódios apocalípticos de destruição. Não existe nenhuma narrativa de Bruxelas capaz de substituir e de unir a memória histórica de um Continente trágico. A quantificação económica, a transformação da memória num activo económico, é um dispositivo político perigoso pela banalização, pelo despertar de velhos ódios, por alimentar todos os ressentimentos, por trazer à superfície os factores constitutivos de uma Europa pulverizada em unidades nacionais antagónicas. O espectro que se recorta no horizonte da Europa é também a questão do esquecimento, um esquecimento tão profundo que pode até incluir os mais gritantes erros e os mais abjectos crimes e talvez pela simples necessidade de se criar um qualquer espírito de unidade na Europa. A essência de um espírito de unidade na Europa exige certamente que as nações Europeias tenham um destino em comum, mas talvez imponha no reverso do Projecto que essas nações tenham no presente o esquecimento de um passado em comum. Se os crimes não prescrevem, se a dívida não prescreve, se a memória não prescreve, não se tornará o desejo de uma convivência pacífica a expressão política de uma vitalidade macabra transformada na ilusão de uma eloquência utópica? O ideal de uma justiça superior e perfeita tanto pode ser a solução para a paz como o motivo para a guerra. Ainda está por determinar o ponto de equilíbrio em que a memória e o esquecimento confluem numa identidade política possível, presente, pacífica. A Europa tem pois de enfrentar o seu passado antes de perceber o seu futuro.

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