Berardo pode perder a condecoração e Ronaldo não?

Parem de berrar contra Berardo. Os políticos estão a fazer um exercício de hipocrisia e catarse em relação a um passado do qual eles próprios fizeram parte.

Não vou fazer de advogado de diabo, nem de Joe Berardo. Primeiro porque não acredito nem no Diabo, nem em Joe Berardo. Segundo porque não merece. E, terceiro, porque o comendador já tem um advogado suficientemente competente que, através de manobras jurídicas esdrúxulas, passou um monumental atestado de incompetência à Caixa, ao BCP e ao Novo Banco e a todos os seus advogados. Basta ler esta história bem contada hoje pelo Alberto Teixeira aqui no ECO e esta da Cristina Ferreira no jornal Público.

O país ficou em choque com a ida de Joe Berardo ao Parlamento, porque o comendador representa aquilo que, hoje em dia, a sociedade olha com desprezo e desdém: um capitalista sem capital, um devedor que não paga o que deve, um self-made man que gosta de arte e tem tiques de sobranceria. Se a tudo isto juntarmos a forma leviana como falou de milhões, a dislexia e a forma atabalhoada e bilingue de comunicação, facilmente percebemos o impacto social negativo provocado pela audição do comendador.

Nem sempre foi assim. Nem sempre o país e os políticos desprezaram Joe Berardo e o que ele representa. O primeiro-ministro, que se mostrou chocado com o “desplante” do comendador no Parlamento, era o número 2 no governo de José Sócrates que tinha a tutela da Caixa Geral de Depósitos na altura em que o banco público abriu uma linha de crédito de 320 milhões para que Joe Berardo comprasse ações do BCP. Era uma espécie de bar aberto na banca, e Berardo apanhou uma bebedeira com a conivência do poder político, de banqueiros incompetentes e supervisores ausentes.

A diferença entre Joe Berardo da altura e Joe Berardo de agora é que o comendador tinha em 2006 ações do BCP que valiam 4 euros e agora valem 10 cêntimos. O mal que fez agora, já o tinha feito na altura. Antes com os aplausos do poder político, agora com os apupos desse mesmo poder.

Berardo tratava os políticos por “babe” e os banqueiros faziam fila para lhe oferecer dinheiro a troco de nada. Foi este estatuto de “tu cá, tu lá” com o poder que lhe permitiu ser agraciado com o grau de comendador e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

Em 2007, como lembrava o Observador, o comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa chegou a eleger Joe Berardo como a personalidade do ano na área da economia, pelo papel que teve na guerra do BCP e por ter aberto o museu de arte contemporânea. O mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que, agora Presidente, vem assumir que não vê com maus olhos que o Conselho das Ordens reavalie as condecorações a Berardo, tal como conta hoje o Jornal de Negócios.

Numa altura de berrarias contra Berardo não vale a pena berrar, nem a favor, nem contra Marcelo que tem uma obsessão por se colocar do lado certo da história, mesmo que nem sempre tenha estado desse lado. Vale a pena olhar para a lei, mas com serenidade.

Joe Berardo, tal como qualquer cidadão condecorado, pode perder esse privilégio por uma de duas razões.

Primeiro, se for condenado com uma pena superior a três anos. Basta ler o artigo 45.º da Lei das Ordens Honoríficas Portuguesas que refere que uma das competências dos Conselhos das Ordens é “Efetivar a irradiação automática dos membros das Ordens que, nos termos da alínea e), tenham sido irradiados de qualquer Ordem e dos que, por sentença judicial transitada em julgado, tenham sido condenados pela prática de crime doloso punido com pena de prisão superior a três anos”.

Foi o que aconteceu com Armando Vara, que perdeu a Ordem do Infante que recebeu em 2005 pelas mãos do então Presidente Jorge Sampaio. O mesmo Armando Vara que foi administrador da Caixa naqueles tempos de bar aberto. Aplicar este critério a Berardo não faz sentido, já que o ainda comendador, que se saiba, não é arguido e muito menos condenado. Se assim fosse, já teríamos de ter tirado as comendas e condecorações de José Sócrates, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Hélder Bataglia e outros mui nobres condecorados da República que estão a braços com a Justiça.

O segundo motivo que se poderia invocar para “descondecorar” Berardo são os artigo 54 e 55 da Lei das Ordens Honoríficas Portuguesas. Diz a lei que “sempre que haja conhecimento da violação de qualquer dos deveres enunciados no artigo anterior, deve ser instaurado processo disciplinar”. Os deveres enunciados no número anterior são:

  1. a) Defender e prestigiar Portugal em todas as circunstâncias; b) Regular o seu procedimento, público e privado, pelos ditames da virtude e da honra; c) Acatar as determinações e instruções do Conselho da respetiva Ordem; d) Dignificar a sua Ordem por todos os meios e em todas as circunstâncias.
  2. Os membros honorários têm o dever de não prejudicar, de modo algum, os interesses de Portugal.

Foi para estes dois artigos que Conselho das Ordens Honoríficas olhou e chegou à conclusão que Cristiano Ronaldo, apesar da condenação do jogador em Espanha por fraude fiscal a 23 meses de prisão com pena suspensa e uma multa de 18,8 milhões de euros, não deveria perder as condecorações que recebeu de Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa.

“A situação relativa a Cristiano Ronaldo não configura o enquadramento previsto no nº.1 do artigo 55.º da Lei 5/2011, de 2 de março”, lia-se no parecer do Conselho das Ordens Honoríficas, produzido na sequência de um pedido do Presidente da República.

Tenham santa paciência, mas não consigo encontrar uma balança, nem legal, nem moral, na qual ponha Cristiano Ronaldo e Joe Berardo e consiga chegar à conclusão, moral ou legal, que o empresário merece perder a comenda e o jogador não. Uma verdade dolorosa que nos é atirada à cara — Berardo disse que individualmente não tem dívidas — e uma gargalhada que nos provoca desconforto e náusea não podem ser usadas como catarse para fazer a higiene de um passado do qual muitos de nós, de jornalistas a políticos, fizemos parte.

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