De ato solidário a facto tributário?

  • Manuel Faustino
  • 8 Julho 2019

Não parece que os donativos possam qualificar-se como “rendimento acréscimo” e, consequentemente, como constitutivos de “capacidade contributiva” suscetível de ser sujeita a qualquer tipo de imposto.

Acabou de colocar-se na sociedade portuguesa a interessante discussão sobre se os donativos que, fruto de uma generosidade extraordinária de entidades nacionais (e estrangeiras?), rapidamente atingiram a soma de dois milhões de euros necessários para que a Bebé Matilde pudesse obter, nos Estados Unidos, o medicamento que circunstâncias várias, lhe não disponibilizavam em Portugal, nem sequer na Europa, estariam sujeitos a imposto do selo, na medida em que fosse, por cada um, superiores a 500 euros. Medicamento, como foi noticiado, vital para a sua futura qualidade de vida. E que a capacidade aquisitiva dos pais lhe não podia proporcionar.

A questão foi suscitada pela pergunta feita por um jornalista a um reputado fiscalista que, respondendo, na primeira parte, de acordo com a literalidade da lei que temos, fez, na segunda, avisadas chamadas de atenção para as especificas circunstâncias, natureza e finalidade deste tipo de donativos, apelando a que prevalecesse o bom senso.

Passou, porém, a não questão quando uma oportuna e assertiva intervenção do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em entrevista conduzida por António Costa e Pedro Pinto (TVI), transcrita na edição de 5 de julho no ECO, a “matou” na resposta que deu quando lhe foi perguntado se os donativos efetuados iriam ser sujeitos a imposto. Começando por dizer que “de acordo com tudo aquilo que tenho visto e do que sei não me parece que esse caso em concreto justifique a aplicação da norma de incidência de Imposto do Selo sobre donativos acima de 500 euros”, acabou a sua resposta com a afirmação de que “a norma foi criada num contexto em que se acabou com o imposto sucessório e se fez uma norma para evitar que através de doações falsas pudesse existir fraude e evasão fiscal. Sendo este o propósito do legislador, não me parece que essa situação se enquadre neste ponto” (itálico meu).

Diria que esta resposta é, na primeira parte, a resposta do cidadão António Mendonça Mendes, a quem, como a todos os cidadãos deste País, perturbou a ideia de que um ato de generosidade solidária pudesse convolar-se num facto tributário. A segunda parte é a resposta do secretário de Estado de Estado dos Assuntos Fiscais, insigne jurista, que, publicamente, acendeu, se não o sinal vermelho, pelo menos o sinal amarelo à entidade que tutela e que tem nas suas competências e atribuições legais o poder de aplicar as normas tributárias: a Autoridade Tributária e Aduaneira.

É esta segunda parte, naturalmente, que aqui interessa. E a primeira interrogação que, a meu ver, se deve colocar, é esta: era preciso “sinalizar” à AT a “não aplicação” de uma norma tributária? Dir-se-á que estamos perante uma contradição. Ou seja, não deve a AT aplicar as normas tributárias, designadamente as normas de incidência tributária? Obviamente, a resposta tem de ser negativa: é dever indeclinável e indisponível da AT aplicar as normas tributárias, designada e principalmente as normas de incidência tributária.

Então, se nos termos da alínea d) do n.º 5 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo, apenas não são sujeitos a imposto do selo os “Donativos conforme os usos sociais, de bens ou valores não incluídos nas alíneas anteriores, até ao montante de (euro) 500”, o que pode justificar que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais tenha afirmado, e muito bem, adianto, que “não me parece que essa situação se enquadre nesse ponto”, sinalizando, deste modo, que um ato de solidariedade nunca por nunca pode constituir um facto tributário?

Julgo, mesmo que ainda se mantivesse em vigor o “velho” Imposto sobre as Sucessões e Doações, da reforma fiscal de Teixeira Ribeiro e que, segundo a doutrina, o respetivo Código, de seu nome originário completo Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, era a sua “obra-prima” e constituía um “monumento jurídico”, que a questão se poderia ter suscitado de igual modo. Ou seja, não atribuo “culpa” à transição para o Código do Imposto do Selo, operada em 2004, das regras que tributam as transmissões gratuitas, independentemente da sua natureza – “mortis causa” ou por atos “inter vivos” – para pessoas singulares. Sabido como é que, nessa mesma altura, as transmissões gratuitas a favor de pessoas coletivas, até então igualmente sujeitas ao Imposto sobre as Sucessões e Doações”, passaram a ser tributadas em IRC como “variações patrimoniais”, positivas ou negativas. E pode ter-se, nesta singular distinção, a primeira “estrela” a brilhar no firmamento da fundamentação interpretativa que conduz o intérprete, sem mácula, à conclusão pela inaplicabilidade da norma que sujeita, em Imposto do Selo, os donativos “conformes com os usos sociais” de valor superior a (euro) 500, a este caso e a outros similares – admiro-me por que razão o problema não foi levantado a propósito de todos os donativos que foram efetuados para as vítimas dos incêndios ocorridos o ano passado, por exemplo.

A culpa, se é que existe, tem de imputar-se ao legislador. Subsidiariamente, quiçá se possa dizer que, administrativamente, talvez pudessem ter-se já clarificado, sem ser para casos concretos, mas com caráter geral e abstrato, alguns dos aspetos mais nebulosos que a interpretação e aplicação desta e de outras normas do Código do Imposto do Selo e de normas de outros Códigos, encerram. A ausência ou a raridade da emissão de Circulares com essa finalidade parece fazer supor a inexistência de problemas de tal natureza. Mas isso não é verdade, como todos os que lidam com estas matérias sabem. Terão de ser outros os motivos de tal omissão, mas não me compete averiguá-los. Apenas constato.

Desde logo, a utilização do conceito indeterminado “conformes com os usos sociais”, técnica legislativa sempre condenável no plano fiscal, nomeadamente em matéria de incidência tributária, pode constituir uma mão cheia de nada. Na ausência de uma posição administrativa geral e abstrata que densifique este conceito, qualquer pessoa, nomeadamente se for funcionário da AT, tenderá a dizer que, talvez excetuada a moeda, geralmente cobreada, atirada para o chapéu do putativo cego na Rua Augusta quando se passa por ele bem-disposto, não são “donativos conforme com os usos sociais”. Incluindo a mesma moedinha atirada para o pote colocado em frente do “Homem Estátua” que, também na Rua Augusta, ali nos proporciona uns momentos de espetáculo que nos enche o espírito de beleza sobrenatural. Porque saber-se o que é uma doação remuneratória, cujo conceito tem de ir buscar-se ao artigo 941.º do Código Civil, e que expressamente qualifica como doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível porventura seja considerado inexigível a quem tem meras funções de atendimento ao público.

Porém, e ainda antes disso, um preâmbulo indicativo que inicie, em vez do carreiro de cabras, preferencialmente a autoestrada pela qual o intérprete possa iniciar o seu percurso interpretativo, com elementos seguros sobre aquilo que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, já nas suas vestes de Ilustre Jurista, designou como “o propósito”, e, mais tecnicamente, se pode designar como elemento teleológico ou finalista da interpretação normativa, do legislador é uma ferramenta indispensável. Ora, sobre a razão da tributação das transmissões gratuitas por atos entre vivos (porque é destas que aqui se cura) nem uma palavra se encontra no Preâmbulo do Código do Imposto do Selo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003. A mesma pecha se encontrava no Preâmbulo do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações.

Não obstante essa ausência de qualquer referência às razões que motivam a tributação, no beneficiário, das doações, a solução consagrada para o IRC e à luz da princípio da coerência do sistema, julgo que nos proporciona um argumento de peso: a tributação das doações (aliás, neste caso da totalidade das transmissões gratuitas) deve ser coordenada com a tributação do rendimento e ou do património (onde esta exista em sentido dinâmico). A ser assim, uma transmissão gratuita, e em particular uma doação, deve consistir, para o donatário, numa aquisição de capacidade contributiva suscetível de ser tributada. Esta, pois, em meu entender, a razão última para tributar as doações e fundamento para, não fosse a nossa solução “bipartida” e, por razões discutíveis, facilitar o atual e generoso regime das transmissões gratuitas entre nós vigente, as transmissões gratuitas, independentemente da sua natureza, serem, no âmbito das pessoas singulares, tributadas em IRS. O conceito de rendimento acréscimo integra, teoricamente, todo o acréscimo de capacidade contributiva, incluindo o adquirido por transmissões gratuitas, como variações patrimoniais positivas (para o ativo) e variações patrimoniais negativas (para o passivo).

No caso que está na base deste texto, não parece que os donativos efetuados possam, em rigor, qualificar-se como “rendimento acréscimo” e, consequentemente, como constitutivos de “capacidade contributiva” suscetível de ser sujeita a qualquer tipo de imposto. Este é um caso claro e limpo de como, até para efeitos de IRS, num ano em que um sujeito passivo, aufere rendimentos tributáveis de 2 milhões de euros e gasta 2 milhões de euros em despesas com doença não comparticipadas, tem, ou devia ter, a sua capacidade contributiva reduzida a zero. Convém ter algum cuidado quando se afirma, despudoradamente, que os abatimentos ao rendimento são regressivos. Aceito, como sempre aceite, esse argumento, para os benefícios fiscais. Reputo-o de puramente ideológico, e não técnico, quando se refere às despesas que o legislador elege como pessoalizantes, isto é, que elege como elementos de personalização do imposto. Essas, por natureza, deveriam sempre e em todos os casos, contribuir para a determinação da capacidade contributiva (medida pelo rendimento líquido subjetivo) e, consequentemente, para a determinação do imposto a pagar no ano.

Em Espanha, a questão jamais chegaria às páginas dos jornais ou às aberturas dos telejornais. Vigora no País vizinho o Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pela Ley 29/1987, de 19 de Dezembro, entrado em vigor em 1 de janeiro de 1988, de cujo preâmbulo traduzo o primeiro parágrafo: O Imposto sobre as Sucessões e Doações fecha o ciclo de reforma da tributação direta, com a caráter de imposto complementar sobre o Rendimento das Pessoas Singulares; tributa as aquisições gratuitas das pessoas singulares e a sua natureza direta, que já procedia do até agora vigente Imposto Geral sobre as Sucessões, emerge da configuração da lei, ao ficar determinado o imposto no momento do incremento da capacidade contributiva do contribuinte (sublinhados meus).

No artigo 1.º do referido Código, que tem, no total, 40 artigos, para além de mais 10 normas, entre adicionais e finais, dispõe-se, sob a epígrafe “Natureza e objeto” que “O imposto sobre as sucessões e doações, de natureza direta e subjetiva, tributa os incrementos patrimoniais obtidos a título lucrativo por pessoas singulares nos termos previstos na presente lei”. Depois, na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, consagra-se o facto tributário como sendo “a aquisição de bens ou direitos por doação ou qualquer outro negócio jurídico a título gratuito “intervivos””. Duas características da doação tributada em Espanha são, pois, a gratuitidade, isto é, a total ausência de contraprestação por parte do beneficiário, e o intuito lucrativo, ou seja, a intenção de alguém (doador) querer tornar outro ou de alguém (donatário) se querer tornar “mais rico”.

Por último, na alínea c) do artigo 3.º do Regulamento do Imposto, aprovado pelo Real Decreto n.º 1629/1991, de 8 de novembro, que tem 100 artigos, sob a epígrafe “Casos de não sujeição”, prescreve-se que, “Não estão sujeitos a Imposto sobre as Sucessões e Doações as subvenções, bolsas de estudo, prémios, recompensas, gratificações e auxílios ou ajudas que sejam concedidos por entidades públicas ou privadas com fins de beneficência, ensino, culturais, desportivos ou de ação social”.

No quadro legislativo acabado de descrever, jamais alguém se atreveria sequer a levantar a dúvida, com o mínimo de fundamento, sobre se qualquer dos donativos feitos para que a Bebé Matilde pudesse ter o seu medicamento estaria sujeito a imposto. Entre nós, o que se pede é que se legisle menos, mas se legisle melhor, com mais coerência, compreensibilidade e clareza.

  • Manuel Faustino
  • Jurista e Docente Universitário. Ex-Diretor de Serviços do IRS

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