Portugal, a Holanda fiscal dos reformados europeus

À nossa dimensão, com a nossa proverbial falta de planeamento e incapacidade de praticar políticas consistentes e estáveis, podemos dizer que fiscalmente somos hoje a Holanda dos reformados da Europa.

Pierre e Nicole são um casal de franceses, reformados, que há meia dúzia de anos se mudaram para Portugal. Ambos na casa dos 70, ele professor e ela médica, compraram uma casa no Algarve onde passam a maior parte do ano. Bom tempo, boa comida, segurança, acesso a bons cuidados de saúde, a terra natal a menos de três horas de voo e os filhos já “despachados”, foram algumas das razões que os fizeram fazer as malas. Mas o motivo decisivo foi outro: o regime fiscal mais favorável que, desde 2009, Portugal tem para “Residentes não Habituais” e que permite que reformados estrangeiros que sejam tributados noutro país ou tenham a pensão paga por outro Estado fiquem isentos de pagar IRS por dez anos.

A intenção do regime português — criado por um governo socialista, desenvolvido por um governo de centro direita e mantido agora por outro governo socialista – é óbvia. Os que chegam não viriam de outra forma. E quando aterram podem não pagar impostos sobre o rendimento de pensões que estão a receber de outro país mas investem em imobiliário, fazem compras todos os dias, recebem cá amigos e familiares e ainda fazem boa publicidade ao país. Ajudam a dinamizar a economia e a criar empregos.

Pierre e Nicole merecem censura moral pela opção que tomaram? Aos olhos dos franceses devem ser vistos como maus cidadãos por se terem mudado? Amam menos o seu país onde, aliás, continuam a ter negócios que lá pagam impostos? São sabotadores da economia francesa?

Penso que ninguém, no seu perfeito juízo, achará que este casal de franceses merece tal tratamento ou crítica por terem acedido, dentro das leis, a um benefício que os regimes fiscais decidiram conceder-lhe.

Pierre e Nicole são uma invenção para este artigo. Mas eles existem, como outros nomes e outras profissões, nos mais de 10 mil estrangeiros que na última década vieram morar para Portugal ao abrigo deste benefício fiscal. Podiam ser o sueco Dan Wikstrom ou os compatriotas Jean Luc e Catherine. Isto vem a propósito da questão da competitividade e concorrência fiscal que volta a ser recuperada a propósito da morte de Alexandre Soares dos Santos.

O líder do Grupo Jerónimo Martins morreu na sexta-feira, deixando obra feita num dos maiores grupos empresariais do país, que emprega cerca de 110 mil pessoas e factura mais de 17 mil milhões de euros (o equivalente a 8% do PIB português). O Grupo criou e financia a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que, directamente ou através da Pordata, oferece ao país um bem escasso e valioso: estudo, conhecimento e estatísticas apresentadas e discutidas de uma forma acessível à generalidade dos cidadãos. Mais recentemente, criou e começou a financiar a Oceano Azul Foundation que desenvolve o mesmo trabalho numa área que é consensualmente considerada estratégica mas constantemente adiada em Portugal: os oceanos, a sua importância para a economia e para a preservação do ambiente e das espécies.

Frontal, independente e desassombrado como poucos, Soares dos Santos é daqueles que fazem falta a qualquer país. Sobre o homem, o seu legado e a sua forma de estar já o António Costa aqui escreveu. Qualquer coisa que escrevesse sobre isso seria redundante.

Mas nestes dias voltou a falar-se, naturalmente, da transferência, em 2012, da holding do grupo para a Holanda, país que tem um regime fiscal mais favorável para empresas. Para algumas pessoas e partidos isso é quase um “crime de lesa pátria”, uma decisão que deve eclipsar qualquer coisa positiva que o homem possa ter feito.

Há um surrealismo populista neste tipo de polémicas. Umas vezes fruto de desconhecimento, outras por negação sobre o mundo em que vivemos e noutras ainda apenas por motivações ideológicas e de agendas partidárias. Legítimas, claro, mas se não for pedir muito que haja uma boa sustentação em factos e coerência sobre o tema.

Este caso não é diferente. E quem fala da Jerónimo Martins pode falar de muitas empresas portuguesas com alguma dimensão e da quase totalidade das que estão cotadas na bolsa de Lisboa: têm holdings sediadas na Holanda.

O desconhecimento está no facto de se tratar da deslocalização de holdings onde são consolidadas as contas de operações que os grupos empresariais têm em vários países. As operações nacionais continuam a pagar os impostos dos negócios locais, estejam onde estiverem. No caso concreto da JM, “só” 20% dos negócios do grupo são feitos em Portugal, sobretudo na cadeia Pingo Doce. A maior fatia, cerca de 70%, são feitos na Polónia, onde o grupo tem uma das mais importantes redes de retalho, a Biedronka.

O “só” aparece assim mesmo, entre aspas, porque devia ser mais um motivo para elogiar um grupo que, a partir de uma pequena economia como a portuguesa, consegue impôr-se num país com uma cultura muito diferente e num mercado altamente competitivo. Mas andamos nisto. Às segundas, quartas e sextas defendemos que a internacionalização das empresas é a única saída para a prosperidade de um mercado escasso como o nosso. Mas às terças, quintas e sábados achamos que quem o faz com sucesso deve ser criticado ou escorraçado.

A negação sobre o mundo em que vivemos começa pelo comportamento de qualquer cidadão ou contribuinte. Se há um benefício fiscal ou um regime tributário mais vantajoso não deve qualquer contribuinte aproveitá-lo? Não é para isso que eles são feitos?

Quando os PPR proporcionavam um bom benefício fiscal no IRS centenas de milhares de contribuintes subscreveram esses produtos apenas para abater a factura de IRS. Quando o benefício acabou, deixaram de o fazer. São maus portugueses? São oportunistas anti-patriotas porque aproveitaram o regime legal para pagar menos imposto?

Quando, em 2006, os municípios portugueses passaram a poder abdicar de 3% do IRS aí cobrado para atrair ou fixar residentes não se fez outra coisa senão permitir a competitividade fiscal a quem a quisesse utilizar. É de mau tom utilizar esta lei? E se, hipoteticamente, um concelho vizinho do seu pudesse e fizesse uma redução de 50% no IRS que paga? Mudava-se para lá ou não?

No ano passado o governo criou um regime fiscal especial para o regresso de emigrantes. Pagam menos metade ou um terço do IRS do que os restantes contribuintes, que nunca saíram do país. Os que regressarem serão oportunistas?

A competitividade fiscal não se fica por aqui. Acham que investimentos estrangeiros como a Autoeuropa, que todos aplaudem e cuja atracção é um objectivo permanente do país, se conseguem ganhar sem fortes pacotes de incentivos fiscais e outros apoios públicos? Aceitamos ter cá uma empresa, a Volkswagen, que instala uma fábrica porque lhe oferecem um melhor enquadramento fiscal?

Claro que é sempre melhor estar deste lado, da economia que utiliza os instrumentos fiscais para atrair pessoas, investimentos e empresas do que do lado do país que os vê sair por manifesta falta de competitividade e capacidade para os manter ou atrair.

Mas, à nossa dimensão, com a nossa proverbial falta de planeamento e incapacidade de praticar políticas consistentes e estáveis podemos dizer que somos a Holanda dos reformados da Europa. Conseguimos garantir-lhes dez anos de isenção fiscal, que é um horizonte temporal de estabilidade de que nenhum português goza, num país que muda as regras tributárias dezenas de vezes por ano e tem um sistema com mais de 500 benefícios fiscais, um quarto dos quais de utilidade desconhecida. E perante essa promessa de estabilidade e um regime competitivo não é que está a resultar e os Pierre e Nicole estão a vir para cá?

O surrealismo destes debates e acusações é que, perante este enquadramento e este contexto, com as medidas que vão sendo tomadas por muitos países europeus – de que Portugal não é excepção, como se vê – a única conclusão que algumas pessoas conseguem tirar é esta: malandros dos contribuintes que, dentro da lei, tomam medidas que lhes permitam pagar menos impostos.

No caso das empresas isso não só é uma normalidade como até uma obrigação de competitividade. A concorrência é global e faz-se com multinacionais de muitas origens. Uma empresa portuguesa que opere em vários países e pague a totalidade dos seus impostos às taxas portuguesas estará, logo à partida, em desvantagem perante concorrentes que pagam impostos pelas taxas holandesas ou irlandesas.

Claro que podemos e devemos discutir os limites da concorrência fiscal dentro da União Europeia. É tão legítimo querer obrigar a Holanda e a Irlanda, por exemplo, a aumentar os impostos como estes países fazerem o desafio inverso: baixem os vossos, se quiserem.

Em vez de atirarmos a quem utiliza as leis fiscais da forma mais eficiente possível devíamos era perguntar o que devemos fazer para atrair as empresas que transferiram holdings para a Holanda ou que preferiram instalar-se na Irlanda, criando aí empregos ou pagando impostos que podiam ser pagos aqui.

É isso que se passa com todos, quando escolhemos o produto ou serviço mais barato ou utilizamos os benefícios fiscais em vigor. E com as empresas não pode nem deve ser diferente. Negar isto é defender que da boa cidadania faz parte o pagamento de impostos acima do que a lei exige.

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