Trump e o Trágico Poeta da América

Sucesso de Trump é uma aventura da Marvel, o super-herói que encarna o grande sonho americano, milionário, excêntrico, vaidoso e paranóico.

Discurso da Nação, Destituição, Vitória. Trump parece uma personagem retirada de um romance típico do “realismo sujo”, um misto genuíno entre o amor-próprio incontrolado e o ódio impróprio descontrolado. O discurso de Trump após o Processo de Destituição é uma sequência de frases autobiográficas em que o Presidente se celebra a si próprio até atingir a existência e o significado de um Imperador. Na terra dos homens livres, o Império domina sobre todas as dissidências transformadas em erro e escravidão.

O sucesso de Trump é uma aventura da Marvel, o super-herói que encarna o grande sonho americano, milionário, excêntrico, vaidoso, paranóico, tudo transformado num fato especial que reflecte a imagem e a causa de um defensor dos desfavorecidos e dos desafortunados. Trump é a América miserável e genuína no centro do poder venal e corrupto de Washington. A inépcia do Presidente é a prova de que Trump é um homem normal, mesmo quando projecta a figura de um viciado no “crack” do poder. A vulgaridade do Presidente é natural, instrumental e pouco estudada, sobretudo quando suborna todas as regras da civilidade política até ao limiar da ruptura da própria coesão nacional.

O que é fantástico na política da América é esta permanente contemplação da ruptura, do abismo, do colapso iminente resgatado no último instante pelo espírito sagrado da Constituição. Existe uma tensão, um paradoxo, uma fluidez fatal que em certos momentos da História traz à superfície uma prática política sublinhada pela acrimónia, reforçada pela implacável lógica das facções. O efeito global é um discurso político que se multiplica em fragmentos identitários não conciliáveis. Republicanos e Democratas, Poder Federal e Poder dos Estados, um circuito interminável marcado por momentos de união e ciclos de divisão, tudo concentrado na herança política da Constituição.

Trump não entende a dupla vertente da eficiência e da dignidade. Dito de outro modo, o Presidente não distingue a dimensão política da componente cerimonial, por esse motivo não processa a distinção entre o Partido e a Nação. O Presidente não compreende a dialéctica de uma arquitectura constitucional que pretende o equilíbrio entre os Ritos da Tribo e a Unidade do Povo. Ironicamente, a eleição de Trump é o resultado deste trapézio político voador – um Colégio Eleitoral pensado em prol dos votos da América profunda e distante dos leds da cidade. Do mesmo modo, a absolvição do Presidente no Processo de Destituição é o reflexo político de uma concepção do Senado em que o Poder dos pequenos Estados é colocado em igualdade de circunstâncias com o Poder dos grandes Estados, eliminando deste modo o efeito de escala e a regra dos grandes números. A absolvição do Presidente é um resultado político, não uma sentença judicial. O resultado político de uma Constituição desenhada para promover precisamente o poder da América profunda e o poder daqueles que não têm Poder. A banalização do Procedimento da Destituição representa a desvalorização do Processo Democrático – a regra da normalidade deve ser a da transferência pacífica do Poder para um Presidente democraticamente eleito pela vasta e complexa diversidade da América. Tudo o resto são sombras de uma conspiração na terra da fantasia.

Observando os movimentos de Trump é perceptível um padrão político e cultural que é a vocação para a figura de um “showman”. Nesta tradição da América o essencial é a permanente permutação entre a realidade e a ficção – veja-se o Super Bowl, os Óscares, Las Vegas, Kobe Bryant, o Puritanismo, a Pornografia, um guião de Quentin Tarantino.

Não é possível entender o caos da Administração Trump sem se perceber que a realidade e a ficção complementam a identidade da nação americana. A política na América é um show à escala Global, uma versão real da fantasia sangrenta de Pulp Fiction. Nos gestos do Presidente também está a cultura da América – hipnótica, positiva, perigosa, aventureira, entre a sanidade e a loucura, entre a crueldade e a bondade, entre a civilização e a utopia.

Neste contexto, Trump é uma personagem previsível na imprevisibilidade, tanto mais que personifica a ideia do Herói da América, o cruzamento entre o cérebro racional e o coração irracional, o homem de negócios que se mantém sóbrio, sério, seguindo sempre a consciência em busca da verdade e da justiça. O Espírito da América é a realidade da América filtrada pela Razão que assimila o Coração. Tudo nas páginas coloridas de uma “graphic novel”.

No Verão de 1835 uma mulher negra, cega, paraplégica, captou a atenção de um jovem empresário à procura de fortuna. A mulher tinha revelado a um repórter de jornal que era a verdadeira mãe de George Washington e que tinha 161 anos de idade. O jovem empresário encontrou-a, levou-a com ele e percorreu a Nação numa magnífica Tour exibindo o mais esplêndido prodígio da História viva da América. O empresário ganhou uma fortuna e encontrou uma nova vocação, precisamente a de “showman”. Nos dias de hoje, esta vocação seria a rampa de lançamento ideal para um político de sucesso a caminho da Presidência. O seu nome só poderia ser Donald Trump.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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