Em nome do combate à epidemia, o ataque à democracia

O corona virus está a ser usado como desculpa para experimentar una serie de soluções que tornarão efetivo um estado totalitário em várias partes do mundo.

É a tempestade perfeita: com a circulação limitada, os cidadãos estão mais dependentes da tecnologia para trabalhar e para manter relações sociais. Ao mesmo tempo, o Estado usa o argumento da epidemia para exercitar os músculos autoritários e abusar dos seus poderes. Quando a epidemia terminar, algumas democracias contar-se-ão entre as suas vítimas.

As declarações de estado de emergência e a limitações a direitos básicos impostos pelo combate ao Covid-19 estão ser usadas para atacar a democracia. O Departamento de Justiça americano acabou de pedir ao Congresso a ampliação dos seus poderes para que, em estado de emergência, possa deter cidadãos sem julgamento nem acusação por tempo indeterminado, para além de uma série de alterações a estatutos legais relacionados com o direito de asilo e os prazos processais. É a subversão do estado de direito, é a supressão dos direitos democráticos feita a partir de dentro do próprio Estado.

Noutras partes do mundo, há esforços variados para utilizar a digitalização forçada pela doença que desmoralizou o trabalho e as relações sociais para a esfera digital. As operadoras e as tecnológicas que controlam os dados e o seu fluxo estão a ser chamadas pelos governos para “cooperar” no combate à epidemia – o mesmo é dizer que estão a ser chamadas para construir um imenso mecanismo de vigilância que poderá não voltar a ser desligado.

O argumento é sempre o do controlo da doença. Mas os riscos vão muito para lá disso. Por exemplo, detetar padrões de movimentos pode dar muito jeito agora. Mas também é uma excelente ferramenta para controlar ajuntamentos de caráter político e antecipar confrontos. O passo seguinte é individualizar os dados e perceber quem está onde, com quem contactou, o que transmitiu. Emails, mensagens de texto e de voz, chamadas, tudo passa a ser facilmente acessível por autoridades cada vez mais escondidas no antro da burocracia estatal. Junte-se a isto o controlo das câmaras de segurança e temos a receita do estado totalitário que está em vigor na China.

Aliás, nada disto é particularmente novo: Edward Snowden abdicou da sua liberdade para prevenir precisamente este cenário mais pessimista, porque era esta a máquina que estava a ser montada pelos serviços secretos americanos com mais ou menos cooperação por parte das tecnológicas.

Quem não se compadece com éticas ou direitos humanos é Pequim. O governo chinês tem feito uso de todo o arsenal tecnológico à sua disposição para tentar esmagar os democratas em Hong-Kong, e isso inclui abusar de toda a vigilância dos serviços de estado e também das empresas “privadas” como a Huawei. Em Israel, que também é cada vez mais um estado policial, os infetados com o Covid-19 vão ter os seus aparelhos rastreados e os que estão próximos serão alertados individualmente. A ação vai ser gerida pelos serviços secretos israelitas, a coberto da lei da segurança do Estado, sem controlo democrático ativo.

Estes cenários não são compatíveis com os valores europeus. Se os mecanismos de defesa dos cidadãos funcionarem devidamente, nem sequer as câmaras de vigilância que muitas cidades tentam generalizar serão aceites. A liberdade individual e o direito à privacidade têm de se manter como as ideias de base do contrato social estabelecido com o Estado. Se, na Europa, abdicarmos destes princípios basilares, estamos a arriscar um bem maior. As vidas salvas a curto prazo no combate ao Covid estarão em risco a médio prazo.

Ver mais: Ainda é um dos melhores documentos em prol da liberdade nos tempos modernos. O filme Citizenfour, da autoria da jornalista e realizadora Laura Poitras, é um registo rigoroso do que está em risco com a invasão da privacidade com recurso à tecnologia. E basta pensar que o filme tem seis anos e que muito se regrediu neste período de tempo.

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