Um primeiro passo Europeu?
Este é um primeiro passo, mas após a pandemia passar será preciso recuperar a capacidade instalada das empresas e o PIB potencial.
Na quinta-feira passada, o Eurogrupo chegou a um acordo para uma resposta económica e financeira imediata à crise do Covid-19. Este acordo chegou após algumas semanas de impasse e debate. Temos, em primeiro lugar, que ter sempre presente alguns princípios básicos sobre a União Europeia e a zona Euro. Já passaram quase 35 anos desde que aderimos à então CEE (1986). Já passaram quase 30 desde que assinamos o Tratado de Maastricht (1992). Já passaram mais de 20 desde que assinámos o Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997) e aderimos à moeda única (1999). Mas extraordinariamente, há 4 princípios basilares da Zona Euro (o primeiro também se aplica à União Europeia) que continuam a ser ignorados por muitos dos que participam no debate público e político:
Primeiro, as decisões mais relevantes da União Europeia e da zona Euro têm de ser tomadas por unanimidade dos países (28 Estados Membros no caso das decisões da União – em breve serão 27 – e 19 no caso das decisões da Zona Euro).
Depois, há mais 3 princípios basilares em que a Zona Euro assenta e que são, para muitos dos que fazem parte dela, “sagrados”. Podemos discutir se queremos estar ou não na zona Euro (embora, pessoalmente, entenda que seria calamitoso para Portugal não estar na Zona Euro). Mas estando na zona Euro, fingir que não se percebem estes 3 princípios, não só não ajuda ao debate como até, por regra, o inquina. Esses 3 princípios são:
- Estabilidade de preços e cambial e contas públicas equilibradas (sendo que o controlo orçamental visa garantir a sustentabilidade das contas públicas e o regular acesso ao mercado de dívida pública por parte de todos os países da zona euro).
- O não financiamento monetário dos défices (isto é, o Banco Central Europeu não emite moeda para financiar os défices de cada Estado Membro).
- A não transferência de recursos orçamentais de um Estado para outro Estado (isto é, no âmbito da zona Euro os contribuintes de um país não subsidiam contribuintes de outro país).
Goste-se ou não, estas são as regras do jogo. E se estamos na Zona Euro, convém perceber que é por estas regras que teremos de jogar.
Já o Professor Cavaco Silva referia no seu livro “União Monetária Europeia: Funcionamento e Implicações” (Lisboa: Ed. Verbo, 1999) que, com a moeda única, a política monetária e cambial únicas, a integração dos mercados financeiros e a coordenação de políticas económicas, sobrepostas ao mercado único, tendem a aumentar a diversificação industrial ao nível nacional, a aproximação das estruturas produtivas e a interdependência entre os estados membros. Vinte anos depois, ainda há muitos que ou não percebem, ou fingem não perceber.
Ora, o acordo obtido quinta-feira obedece, nem poderia deixar de ser dessa maneira, a esses princípios.
O acordo deve ser visto como um primeiro passo na resposta à crise. Mais uma vez importa lembrar que existe a necessidade de consenso entre 19 países, com culturas, objetivos e perspetivas diferentes (em alguns casos bastante diferentes).
Este acordo responde assim, embora ainda de forma muito mitigada, à necessidade de aumentar a despesa pública com o setor da saúde. Mas também, à necessidade, do ponto de vista económico, de responder à crise de liquidez e financiamento das empresas e à quebra de rendimento das famílias.
Mas é importante referir que dos 540 mil Milhões € anunciados, cerca de metade já tinham sido anunciados na semana anterior (o SURE – o mecanismo de apoio aos subsídios de desemprego e os empréstimos do BEI). Apenas a linha de financiamento do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) de 250 mil Milhões € é que é adicional ao que já existia.
Mas a simples criação do pacote SURE, sendo gerido e financiado pela Comissão, apesar do pequeno montante, abre caminho a uma maior centralização de receita, despesa, obrigações e decisões em Bruxelas. Isso será importante. Por outro lado, o acordo deixa em aberto a criação de um “recovery fund” em breve. Ambos podem ser uma mudança significativa na arquitetura da união orçamental da zona Euro.
No entanto, creio que o papel principal continuará a ser desempenhado pelo BCE e pelas medidas de política monetária. Até ao dia em que a própria bolha monetária rebentar. Mas disso trataremos mais tarde, agora poucas alternativas existem.
Porém, convém lembrar que a política monetária compra sobretudo tempo aos governos para tomarem medidas e fazerem reformas estruturais na economia. Draghi, com o “whatever it takes to save the euro” deu à Europa vários anos. Desperdiçados em grande medida. Esperemos que o mesmo não aconteça agora.
Por outro lado, a componente do MEE acaba por ser escassa. Apenas 2% do PIB por país. Para Portugal, estamos a falar de cerca de 4 mil Milhões €. Fica a impressão que, por este montante, nenhum país estará muito disposto a recorrer ao MEE.
O estigma da ajuda, mesmo que sem condicionalidades (isto é, não exigirá um MoU com medidas de ajustamento orçamental, tipo “troika”), é muito grande e pode afetar a imagem do país nos mercados financeiros. Ora, só para 2020, no OE, o governo português já prevê de necessidades brutas de financiamento um valor de cerca de 46 mil Milhões (cerca de 36 mil milhões para reembolso de dívida e 10 mil milhões para necessidades líquidas de financiamento). Ora, este número vai subir substancialmente, para 60 mil Milhões ou mais. Vale a pena arriscar o risco reputacional de ir ao MEE por 4 mil Milhões €?
Contudo, o acordo tem ainda, à data de 12 de abril em que termino este artigo, alguns aspetos que precisam de ser clarificados: sabemos que o dinheiro disponível do MEE para despesas com saúde, diretas e indiretas, não terá condicionalidade. Mas o que quer dizer despesa de saúde indiretas? Por outro lado, verbas do MEE que sejam usadas para medidas económicas terão condicionalidade, embora não se conheça em que medida isso será feito.
Ainda assim, como referi, este é um primeiro passo que, dados os constrangimentos políticos que as decisões na União Europeia e na Zona Euro têm sempre, é importante. Foi também importante que o comunicado do Eurogrupo tenha referido que os países da zona Euro estão a trabalhar num programa mais abrangente e completo, com um volume de financiamento muito superior, de relançamento da economia. Após a pandemia passar, como tenho referido aqui no ECO, será preciso recuperar a capacidade instalada das empresas e o PIB potencial. Esperemos que a “pancada estrutural” na economia não seja muito severa.
Post-scriptum 1: Parece que finalmente o primeiro-ministro reconhece que governou em “vacas gordas”. Talvez a seguir reconheça, junto com o ministro das Finanças, outras coisas que tenho demonstrado aqui no ECO e noutros fóruns: que o crescimento assentou sobretudo no turismo e imobiliário, sendo conjuntural e resultando de medidas tomadas no governo PSD/CDS; que a consolidação orçamental entre 2016 e 2019 foi meramente conjuntural, assente na redução da despesa com juros e no aumento dos dividendos do Banco de Portugal (resultado da política monetária do BCE), bem como da redução do investimento público e do aumento da carga fiscal; que essa consolidação orçamental nominal se espelha num indicador inequívoco: o saldo primário estrutural (que é o saldo estrutural – isto é, o saldo orçamental retirando os efeitos cíclicos da economia e as medidas pontuais – sem os juros) passou de um excedente de 2,5% em 2015 para um valor de 2,8% em 2019. Por fim, talvez admitam que os 4 anos que governaram não têm comparação, quer em termos de conjuntura internacional, quer em termos de condições internas, com os 4 anos anteriores, e que por isso não faz sentido nem é sério comparar dois períodos tão distintos, conforme expliquei neste artigo.
Mas o primeiro-ministro também já veio dizer que não haverá “austeridade” como há 10 anos. Ainda bem que recorda que a austeridade começou em 2010 e não em 2011. E que o governo PS de então, liderado por José Sócrates, fez quase tanta austeridade num único ano como o governo seguinte, com um MoU assinado com a Troika por José Sócrates, fez em 3 anos. As contas estão neste artigo.
Mas, ao contrário do que muitos vendem como ilusão, a “austeridade” não é uma escolha ou uma opção política. Achar que alguém que quer ganhar eleições (desejo principal de qualquer político) vai maltratar a maior parte dos eleitores é evidentemente infantil e roça a indigência intelectual, além de ignorar por completo o período 2008-2015, e sobretudo o pedido de resgate financeiro de 2011. Mas esta narrativa é, contudo, popular e muita gente acredita mesmo nela.
Só que se a economia cair de uma forma significativa e a retoma for muito demorada, isso implicará, juntamente com este período de crise de saúde pública, um brutal agravamento do défice e da dívida pública. Afinal de contas, além destes três meses de paragem súbita, que implicam uma quebra de receita fiscal muito significativa e um aumento de despesa pública (em saúde, no lay-off, nos programas de apoio, etc.), uma retoma lenta implicará uma receita fiscal abaixo do cobrado em 2019 e despesas sociais a aumentar. Tudo isso terá de ser financiado por dívida pública. E será necessário corrigir o efeito nas contas públicas da “quebra estrutural” da economia.
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