A justiça e o ‘pós-verdade’
Em 2017, deveria impor-se uma agenda decidida e firme de modernização da justiça, para acabar com a imprevisibilidade e desconfiança que tanto prejudicam a economia do país.
Portugal convive há décadas com uma justiça que não responde aos seus cidadãos em tempo útil e, no entanto, não se vislumbra na sociedade portuguesa a indignação que a situação justifica. Seja porque já se habituaram à sua lentidão, ou porque a ela nunca recorreram – nem admitem recorrer –, os cidadãos, de forma quase acrítica, lá vão aceitando o maldito “statu quo”.
Vive-se, creio eu, num estado de torpor, paradoxalmente inflamado, sempre que se toca no assunto. Assim, quando se fala ou se escreve dos atrasos da justiça, em particular dos vários anos que em média (!) demoram os processos findos em primeira instância – fora o tempo despendido em recursos processuais e, hoje em dia, cada vez mais, também em recursos financeiros – os portugueses, depois da exclamação ou do impropério, como que encolhem os ombros, ora esboçando um sorriso piedoso ora um esgar de desespero. Raramente de revolta.
Não tenhamos dúvidas: a justiça, não obstante a separação de poderes, é administração pública. É aliás dos clássicos. Trata-se de um dos pilares fundamentais que o Estado, enquanto tal, tem de assegurar aos seus cidadãos, seja no estado mínimo ou no estado máximo. Não há aqui, nestes facciosos tempos de “pós-verdade”, nem meios-termos nem meias verdades (nem “inverdades”, esse neologismo tão popular entre os nossos políticos).
A falta de resposta da justiça, na substância ou na forma, é assim uma grosseira falha de Estado, que no campo da economia representa o portão aberto à falta de confiança, à informalidade, à conflitualidade, à chantagem, ao chamado “free riding”, enfim, a todo o tipo de abusos chancelados pela omissão governamental. Pudera!
O próprio Estado, constituindo-se como o maior caloteiro da economia nacional, ele próprio um grandíssimo Peres, é o primeiro a impor os seus abusos ao resto da sociedade. Se não sabe, experimente litigar contra qualquer ministério ou administração pública e logo verá. Não é, pois, por acaso que neste país os contratos entre o Estado e alguns investidores se fazem tendo como foro jurídico outras praças (internacionais) que não Lisboa. Assim se faz, seguramente no caso português, “to provide legal certainty”.
Nunca é de mais repeti-lo e, por isso, aqui vai: o último relatório de competitividade do “World Economic Forum” qualifica Portugal no 126º lugar entre 138 países em matéria de eficiência da justiça; no nosso país, as decisões judiciais nos processos administrativos, cíveis e fiscais findos em primeira instância (excluindo, portanto, os recursos para segundas instâncias) demoram em média 3 anos.
Desta forma, nestas circunstâncias de insegurança e imprevisibilidade contratuais, de arbitrariedade e morosidade jurídicas, deveria impor-se neste ano de 2017 uma agenda decidida e firme de modernização do aparato judicial – tornando-o transparente e inteligível ao comum dos mortais, resgatando-o dos passos perdidos dos tribunais e das agendas corporativas dos seus agentes –, e não uma atitude de distanciamento político que frequentemente se refugia no cobarde e vazio ditame do “da justiça ao que é da justiça”.
Bem sei que num país onde se diz que a corrupção grassa em cada esquina governamental, a inoperância da justiça poderá até convir a muitos. Mas certamente não convirá a muitos outros, muitos mais aliás, que na economia real e no dia-a-dia gostariam de sentir confiança nas instituições portuguesas. E de ter num contrato a salvaguarda formal do valor da palavra, ou do tradicional aperto de mão, na prática, de ter uma defesa contra a falta de palavra, contra a cultura de “pós-verdade” que hoje, alegremente e sem veemente repúdio, faz escola, mestres e discípulos, neste país. A começar na alta esfera do Estado
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