A tragédia inglesa (e portuguesa) dos corredores turísticos

Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa a decisão do Reino Unido de deixar Portugal na lista negra dos países inseguros para as férias. E as suas consequências.

Uma tragédia. Sem eufemismos, a decisão do governo britânico de deixar Portugal na lista negra dos países inseguros para as férias dos turistas ingleses é isso mesmo: uma tragédia para o setor do turismo e, por arrastamento, para a economia portuguesa.

A decisão foi conhecida sexta-feira à tarde, depois de vários dias de expectativa. O Governo português, que a tentou travar até ao fim, considerou-a “absurda” e “injusta”. António Costa chamou a atenção para a diferença de casos entre os dois países. Os dados atuais são estes: o Reino Unidos tem 284.276 positivos, e Portugal 42.782; já morreram 44.131 britânicos e 1.587 portugueses. A tentativa de Boris Johnson impor regras aos britânicos não tem sido bem sucedida – ontem a notícia era que Stanley Johnson, o pai do primeiro-ministro, viajou de férias para a Grécia, apesar do Governo desaconselhar estas viagens. Antes, o principal conselheiro de Johnson já tinha desrespeitado as ordens de confinamento durante o lockdown.

O impacto da decisão inglesa será brutal, mesmo que ainda não seja garantido que todos os governos do Reino Unido subscrevam a lista divulgada ontem à tarde por Londres (os primeiro-ministros do País de Gales e da Escócia arrasaram os métodos e das conclusões do governo de Boris Johnson, considerando este processo “shambolic”, o que se pode traduzir como caótico, ou trapalhão).

Portugal não está na lista de 59 territórios com “corredores turísticos” aprovados por Londres, o que significa que os ingleses que optem por férias em Portugal são obrigados a cumprir 14 dias de quarentena no regresso a casa. Mesmo a Madeira e os Açores, apesar de terem escapado ao cartão vermelho mostrado a Portugal continental, continuam na lista de territórios que obrigam a quarentena para quem regressa ao Reino Unido (o que revela a confusão que este processo tem sido).

Como é bom de perceber, esta condicionante fará cair a pique as férias de ingleses em Portugal este ano. Tanto mais que todos os países do Sul da Europa que concorrem connosco pela captação de turistas britânicos – desde logo, Espanha, Grécia e Itália – receberam a luz verde que nos foi negada. A questão para um inglês é simples: porquê sujeitar-se a duas semanas de quarentena no regresso do Algarve, se evita essa maçada optando por férias na Costa del Sol, ou nas Baleares, ou nas ilhas gregas?

O impacto direto e imediato será enorme. Detalho mais à frente neste texto a importância do Reino Unido para o setor do turismo em Portugal, e no Algarve em particular, mas para já bastam este dois números: no ano passado, uma em cada cinco dormidas de um estrangeiro em Portugal foi responsabilidade de um turista britânico (19%); no Algarve, esse valor sobe para mais de um terço (37%). Ah!, mais três números para enquadramento: o turismo é diretamente responsável por 9% do emprego em Portugal e 9% do PIB nacional (noutra conta, feita pelo INE, juntando todo o consumo associado ao turismo, o peso no PIB chega aos 14,6%).

Bastidores: Portugal vira-se para Espanha, Alemanha e França… e para dentro

  • Ao longo das últimas semanas os responsáveis nacionais pelo turismo acreditaram que seria possível evitar o ban britânico às férias em Portugal, mas já estavam a preparar-se para o pior. Agora que os ingleses estão fora da equação, é hora de avançar com o plano B. Em breve arrancam ações de promoção do destino Portugal em mercados igualmente relevantes: Espanha, Alemanha e França estão no topo das prioridades, para além de estar em preparação uma forte campanha de apelo ao turismo interno.A ideia, para já, é não perder tempo com a questão inglesa – se daqui a 15 dias ou um mês a decisão for revertida, melhor. Em qualquer caso, depois da paragem forçada pela pandemia, este é o momento crucial para as decisões de férias de quem ainda tencione viajar este verão. The clock is ticking.Espanha é a primeira prioridade – pelo histórico de férias transfronteiriças, e pela proximidade, que este ano será um fator ainda mais relevante na hora de escolher férias no estrangeiro. Em tempo de medo e incerteza, a proximidade oferece segurança. Alemanha e França são outros dois mercados tradicionalmente importantes para Portugal, e este ano ainda mais. As atenções terão de se concentrar na Europa, até porque os mercados alternativos em que Portugal apostou nos últimos anos não são opção neste momento (sobretudo EUA e Brasil). Infelizmente, a situação da TAP também não garante grande capacidade de resposta imediata. Um azar nunca vem só.

Uma decisão tipo Eurovisão

A decisão de ontem do Governo de Boris Johnson, que o The Guardian considerou ser mais parecida “uma decisão da Eurovisão do que com cruciais decisões de políticas”, surgiu poucas horas depois do Centro Europeu para o Controlo de Doenças ter desaconselhado esse tipo de atitude. Não faz sentido impor restrições de viagens quando “a transmissão comunitária está em curso” em todo espaço europeu disse o CECD. Segundo o European Surveillance System, em junho “apenas 3% dos casos confirmados” terão sido infectados noutro país.

Este é um enorme revês para Portugal que, durante o confinamento, via boas perspetivas para que o turismo por cá fosse menos penalizado do que noutros destinos. “Temos uma possibilidade, combinando boa promoção e boa capacidade de captação de operações aéreas, e aproveitando a imagem muito positiva que Portugal projetou nestas últimas semanas, para ter um ano menos mau”, dizia-me Pedro Siza Vieira há dois meses. Essa perspetiva manteve-se até meados de junho…

Não está só em causa o impacto direto dos ingleses que já não chegarão cá. Isso seria um revés suficiente – mas há mais. Nas últimas semanas, desde que os surtos da região de Lisboa começaram a ensombrar o desempenho português, e em particular desde que Londres começou a mostrar dúvidas sobre a concretização de um “corredor turístico” com Portugal, essas dúvidas têm sido empoladas por destinos concorrentes. E têm impacto reputacional para além do mercado britânico. “De cada vez que houve notícias sobre as dúvidas dos ingleses houve cancelamentos de reservas de holandeses ou de alemães”, disse-me esta semana uma fonte bem informada sobre o setor.

A viragem de meio de junho

Quer uma prova do impacto imediato da evolução dos dados da Covid em Portugal, e das notícias sobre esses dados, na procura do país como destino de férias? Na primeira quinzena de junho, depois do país reabrir, pronto para começar a receber turistas, quando havia a perceção geral de que Portugal era um caso de sucesso no combate à pandemia, Lisboa foi a cidade europeia para onde foram vendidos mais bilhetes de avião.

Sim, Lisboa foi a cidade mais procurada, à frente de mega-destinos turísticos como Paris (2º), Roma (5º), Madrid (6º), Barcelona (9º) ou Londres (10º). É o que dizem os dados da ForwardKeys, empresa que faz a compilação global de vendas de passagens aéreas. O primeiro lugar de Lisboa compara com o nono lugar que a capital portuguesa ocupava neste mesmo ranking, nas mesmas duas semanas do ano passado.

Portugal cavalgava, então, a narrativa do “milagre” proclamado pelo Presidente da República e noticiado pela comunicação social de diversos países. Numa quinzena tudo mudou. O surto de contágios na região de Lisboa e Vale do Tejo que se prolongou pelo mês de junho (e ainda persiste) lançou a suspeita. E, com ela, veio a travagem de novas reservas para Portugal, e o cancelamento de muitas que já estavam feitas.

Nos dados atualizados esta semana pela ForwardKeys, relativos à segunda quinzena de junho, Lisboa cai do primeiro para o quarto lugar no mesmo ranking das cidades europeias com mais reservas de avião entre 15 e 26 de junho. Como cantaria a Dinah Washington, what a diference two weeks make. Nestas duas semanas, a capital portuguesa foi ultrapassada por Amesterdão, Paris e Atenas, e é seguida de perto por Palma de Maiorca.

Por muito que Portugal argumente que a evolução do número de novos casos não pode ser o único critério para abrir ou fechar portas – puxando pelo bom desempenho noutros indicadores, como número de testes, mortalidade ou doentes internados e em cuidados intensivos – internacionalmente o primeiro valor utilizado para medir a evolução de cada país é o dos novos contágios. Já nos habituámos às notícias de sucessivos recordes de novos casos no Brasil e nos EUA, certo? (Por falar nisso, os dados de ontem voltam a bater recordes.) Por que razão havia de ser diferente quando os outros vêm Portugal, nas últimas semanas, como o segundo país da Europa com maior taxa de incidência, a seguir à Suécia?

Este é o mapa-mundo divulgado ontem à tarde pelo CECD. Portugal continua acima da fasquia de 20 novos casos diários por milhão habitantes. No acumulado de casos reportados, Portugal está em 9º lugar na Europa, com 42.782 casos. O Reino Unido lidera a tabela, com mais de 283 mil. Todos os países da UE que têm mais casos do que Portugal receberam luz verde para os corredores turísticos com o Reino Unido, à exceção da Suécia…

O mistério do mapa amarelo

Que as coisas estavam a correr mal para Portugal não é novidade. Ainda no início desta semana, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Holanda divulgou o mapa reproduzido abaixo, que sinaliza como regiões a evitar – ou a visitar apenas em caso de estrita necessidade – Lisboa e Vale do Tejo… e a Área Metropolitana do Porto.

A situação na AMP, recorde-se, está controlada há semanas, depois de um primeiro embate complicado. Na quarta-feira foi confirmado um novo foco em Vila do Conde, mas o mapa holandês foi divulgado antes disso. Mas não olhe só para as duas zona a laranja. Repare que todo o país está a amarelo – ou seja, todo o território português merece da Holanda a classificação “atenção, riscos de segurança” (é o que me diz o Tradutor do Google). Até a Madeira, um dos principais destinos turísticos de Portugal, onde até hoje não se registou uma única vítima de Covid e houve só 92 infectados.

Que dados terá a embaixada dos Países Baixos em Lisboa para chegar a esta conclusão? É um mistério. O que têm feito o MNE e as embaixadas de Portugal nessas capitais para divulgar informação credível? Não sei – espero que muito, mas constato que não o suficiente.

E qual o impacto de informações como esta, difundidas por entidades oficiais? Imediato e arrasador. Segundo me disse um operador, após a divulgação deste mapa, sucederam-se cancelamentos de reservas e pré-reservas de viagens de holandeses para Portugal. Assim, sem pestanejar.

Este é um caso interessante. A Holanda não é um grande player na emissão de turistas para Portugal, mas está longe de ser irrelevante: ocupa o sétimo lugar no ranking de procura externa para Portugal, com um quota de 4,8% do total de estrangeiros que nos procuram. Em 2019 Portugal recebeu 595 mil hóspedes holandeses, responsáveis por 2,4 milhões de dormidas e 708 milhões de euros de receitas. O Algarve é o principal destino dos holandeses que visitam Portugal (51,8%), seguido da região de Lisboa (19,2%) e da Madeira (11,9%). A Holanda é o 4.º mercado no conjunto da procura externa para o Algarve e para a Madeira, e o 5.º para os Açores. Ou seja, mesmo estando em causa um país de média dimensão, que não tem o peso dos espanhóis, ingleses, ou franceses, nesta altura qualquer espirro pode ter um impacto enorme.

O peso inglês

Vamos, então, ao caso mais dramático. O Reino Unido mantém-se há anos como o primeiro ou segundo principal mercado emissor de turistas para Portugal, tanto ao nível de número de viajantes, quer pelo critério da receita que deixam por cá. Em 2019 o Reino Unido foi o principal mercado da procura externa para Portugal em número de dormidas e receitas turísticas, e segundo em número de hóspedes (neste indicador, Espanha ganhou, com mais 130 mil hóspedes).

Segundo os dados do Turismo de Portugal, em 2019 o país recebeu:

  • 2,1 milhões de hóspedes britânicos, que geraram
  • 9,4 milhões de dormidas
  • 3.286 milhões de euros de receitas turísticas

A tendência tem sido ascendente e as previsões feitas antes da pandemia estimavam que estes números crescessem até 2021, com subida de 2,3% na procura turística britânica e de 3,7% nos gastos feitos por esses visitantes em Portugal.

Os britânicos têm presença relevante em todas as regiões de turismo do país, mas são um mercado especialmente crítico para Algarve e Madeira. Eis o peso dos turistas do Reino Unido nas várias regiões do país:

A dependência do Algarve em relação ao turismo do Reino Unido é evidente. Trata-se, aliás, da região do país com maior dependência em relação a um único mercado. Mais de um terço dos turistas estrangeiros que visitam o Algarve vêm das ilhas britânicas; como já referi, representam uma quota de 33% dos hóspedes, e 37% das dormidas.

Analisando a dependência em relação a um único mercado, o mais próximo que encontramos da situação do Algarve é a relação entre a região Centro e os turistas espanhóis (quota de 26,4% de dormidas). Curiosamente, o Centro é a região de turismo portuguesa onde os britânicos pesam menos (só 4,1%). A seguir aos espanhóis, quem mais visita o Centro são franceses (10,8%) e brasileiros (10,1%).

Já a Madeira, regista uma enorme dependência não de um, mas de dois mercados emissores, que têm quase o mesmo peso e representam metade dos visitantes estrangeiros: em 2019, os alemães asseguraram 26,8% das dormidas, e os britânicos ficaram logo atrás, com uma quota de 26,6%.

Dito isto, convém notar que não é só Portugal que precisa muito de conquistar turistas britânicos. O reino de sua majestade é um grande emissor de turistas, e tem reforçado esse estatuto, tendo sobretudo os países do Sul da Europa como destino de férias. Nos quadros abaixo pode ver a evolução dos gastos dos turistas britânicos, as principais regiões para onde viajam e os seus principais destino de férias.

Portugal não está no top 5 dos destinos de férias dos ingleses, mas no ano passado surgia em sétimo lugar. Não é coisa pouca.

E o resto do mundo? Esqueça

Nos últimos anos Portugal tentou diversificar os países de origem dos seus turistas, apostando noutros mercados, sobretudo fora da Europa: América do Norte, América do Sul e Ásia. Países como Estados Unidos, Brasil, China ou Coreia do Sul cresceram bastante nas contas do Turismo de Portugal. São turistas em regra com mais poder de compra, o suficiente para fazerem uma viagem intercontinental, e que apresentam outra vantagem – permitem contrariar a sazonalidade europeia, trazendo turistas fora da época alta dos três meses de verão.

Podem ser uma alternativa agora? Não. A pandemia está descontrolada nos EUA e no Brasil, e os países asiáticos estão a reabrir com enormes cautelas. Quando muito, o Canadá pode trazer boas surpresas, ou a Coreia do Sul (sabe uma das razões para as visitas dos sul-coreanos a Portugal? O santuário de Fátima).

As perspetivas portuguesas para os turistas em voos de longo curso são muito baixas. O quadro abaixo mostra, para oito países não europeus, como estão as reservas de voos para os próximos três meses, em comparação com os bilhetes emitidos há um ano no mesmo trimestre. O Brasil cai 67,8%, e os EUA 57,4%. Os turistas chineses, que eram cada vez mais, praticamente desaparecem do mapa (-95,6%).

O trambolhão será colossal, isso não há dúvidas. Abaixo tem o campeonato do Sul da Europa, na corrida a visitantes de longo curso. Compara Portugal, Espanha e Grécia, tendo em conta os visitantes de longo curso do ano passado em julho, agosto e setembro, com as reservas de bilhetes de avião de longo curso para este ano nos mesmos três meses. Com mais altos ou baixos, estamos a falar de quebras de negócio à volta de dois terços.

Ainda olhando para o campeonato do Sul da Europa, as reservas de longo curso para Portugal nos próximos três meses, em comparação com o período homólogo de 2019, caem menos do que acontece em Espanha, e aguentam melhor do que o conjunto da UE (só a Grécia tem perspectivas um pouco menos pessimistas).

Porém, estes eram os dados de ontem. Ou seja, ainda não refletem a nossa inclusão na lista negra dos ingleses. Vai piorar.

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