Uma política europeia para os dados

Por decisão do tribunal europeu, a partilha comercial de dados com os Estados Unidos é ilegal e precisa de ser revista.

A urgência de revisão política é grande, porque vastos setores da economia dependem desta partilha de dados transatlântica. E vem reforçar a falta de uma visão de conjunto para os problemas do digital. Não faz qualquer sentido que entidades europeias recorram a serviços de armazenamento de dados estrangeiros, colocando os dados privados de cidadãos europeus a jeito de autoridades americanas. A questão aplica-se igualmente a entidades públicas – como os ficheiros policiais de toda a Alemanha, até recentemente alojados nos servidores AWS da Amazon – e a privados como as empresas industriais que recorrem a serviços Google para gestão dos seus sites. O tribunal europeu reabriu o problema, que agora precisa de uma solução europeia.

Este é o contexto: os Estados Unidos e a União discutiram durante anos uma forma de resolver os problemas relacionados com a transferência de dados privados entre os dois blocos. Chegaram a um acordo, chamado Privacy Shield, que deveria salvaguardar a transferência desses dados. No mês passado, o Tribunal de Justiça da UE determinou que o acordo é ilegal e impossível de ser validado, o que recolocou tudo na estaca zero.

Neste momento, qualquer transferência de dados entre a Europa e os EUA está tecnicamente num limbo legal, o que causa enormes problemas do ponto de vista comercial e tecnológico. Na prática, qualquer página web que utilize serviços como a Google Analytics ou o Facebook Connect está em risco de ser considerado ilegal, porque ambos exigem o envio dos dados para os EUA para processamento.

A raiz do problema está nas leis que obrigam empresas americanas a cumprir ordens de tribunais para ceder todos os dados relativos a utilizadores e que, no entendimento europeu, são excessivas e lesivas das liberdades civis. Isto tem pouco a ver com Trump. Tem a ver como hoje em dia duas sociedades ocidentais veem a questão da privacidade digital. Tal como em muitas outras opções políticas (porte de arma, migrações, acesso a saúde, etc.), americanos e europeus têm vindo a divergir na forma como querem agir sobre esta questão – e as revelações de Edward Snowden vieram deixar bem clara quão diferentes eram as opções que uns e outros usavam.

O enorme vazio agora criado pode ser coberto de duas formas: inventando um mecanismo legal que satisfaça as exigências do Tribunal, o que será difícil; ou arranjar maneira de que empresas sediadas na Europa sirvam as necessidades continentais, evitando que os dados cruzem o oceano. Na verdade, não faz muito sentido ter criado e implementado o GDPR para depois estar a enviar esses dados para outras jurisdições. E isso recolhe o apoio explícito de duas figuras essenciais: Thierry Breton, comissário europeu com a política digital a seu cargo, e Peter Altmeier, ministro da Economia que está a reformar a presença alemã no digital. Ambos querem reconverter o espaço europeu de dados e para isso já lançaram a iniciativa Gaia-X, que pode bem ser um passo para construir verdadeiros operadores de dados no espaço europeu.

Claro que quem mais sofre com esta reorganização dos dados serão as maiores empresas que processam dados e que os usam para ganhar dinheiro, nomeadamente a Google e o Facebook. O risco nem é tanto uma necessária reorganização empresarial que force ao processamento dos dados no local onde eles são recolhidos; o risco é que mais olhos regulatórios estejam em cima da forma como estas empresas trabalham os dados, especialmente olhos que não são sujeitos à influência dos lobistas de Washington. E, do outro lado, quem mais ganha serão as empresas europeias que atualmente gerem esses dados e que ficam protegidas de espionagem industrial, como por exemplo, os produtores de carros alemães que têm as maiores bases de dados sobre os condutores de veículos.

Ler mais: O texto do tribunal europeu é um bom explicador da forma como as mesmas questões são vistas de forma diferente do dois lados do Atlântico. Quem se interesse pelo tema fará bem em aceder ao documento.

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