O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa a segunda vaga do Covid-19, evidente nos números mas ainda não declarada oficialmente.
Não é oficial, mas é evidente. A Europa está a viver a segunda vaga de infeções da Covid-19. Um número dá conta disso: mais de 319 mil novos casos na Europa apenas na semana que acabou ontem, acima da pior semana da primeira vaga. Desde o início da pandemia, a Europa regista 2,7 milhões de casos e 185 mil mortes.
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As cifras globais ultrapassaram esta semana 30 milhões de pessoas infetadas, e 946 mil mortes. Os EUA continuam a ser o país com mais casos (6,6 milhões) e mais mortes (197 mil), superando toda a Europa. Seguem-se a Índia e o Brasil – em breve a Índia será provavelmente o país com pior situação no mundo; quanto ao Brasil, Bolsonaro faz o que pode para não sair do pódio, e ontem disse que “a conversinha mole de ficar em casa é para os fracos”.
Mas esta semana as atenções voltaram a focar-se na Europa, pela evidência da segunda vaga. Um desenho ajuda:
O gráfico do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) deixa clara a evolução da segunda vaga a partir da segunda quinzena de agosto, depois de uma primeira onda entre março e abril.
Em Portugal, a evolução é parecida, acompanhando, em ambas as vagas, a evolução dos nossos vizinhos europeus.
No primeiro gráfico tem a evolução de novos casos por dia, e no segundo essa evolução ajustada à média semanal, que permite uma linha mais percetível.
Depois do pico de março/abril a curva epidemiológica de Portugal nunca chegou a achatar, mas voltou a subir de forma sustentada após de uma fase de maior controlo entre julho e agosto. Desde 26 de agosto tivemos apenas três dias com menos de 300 novos casos, e a última semana foi sempre acima de 400 novas infeções. Na quinta-feira (último dia com dados conhecidos) foram 780 novos casos e seis mortos.
Se dúvidas houvesse sobre a evolução da situação, António Costa desfê-las ontem, ao admitir que “a manter-se esta tendência seguramente na próxima semana chegaremos a 1000 novos casos por dia”.
De acordo com os dados do ECDC, na última semana Portugal somou 4.270 novos casos – em números absolutos, fomos o 12º país em novas infeções na União Europeia (incluindo o Reino Unido), uma lista liderada pela França (mais de 61 mil novos casos) e pela Espanha (mais 59 mil). Na análise ajustada à população, Portugal somou nestes sete dias 41,55 novos casos por cada cem mil habitantes – nessa tabela, fomos o 12º país da UE (mais Reino Unido) com a situação mais preocupante.
A posição a “meio da tabela” pode verificar-se neste gráfico simplificado, com Portugal e outros seis países com que nos costumamos comparar – os três do sul da Europa (França e Espanha estão em modo de calamidade; Itália está menos mal), a Alemanha, que é sempre o referencial europeu, e o Reino Unido e a Suécia, dois países com abordagens mais heterodoxas. Os dados, neste gráfico, incluem todo o período da pandemia.
Note-se que em todos os países europeus (dentro e fora da UE) o número de infeções está a escalar. Outra tendência comum a toda a Europa: apesar de haver mais infeções, a evolução do número de mortes é, por regra, mais modesta. A evolução dos óbitos nos EUA tem sido mais preocupante do que deste lado do Atlântico, como se pode verificar nestes dois gráficos, o primeiro comparando infeções e o segundo comparando mortes.
Nos últimos sete dias, Portugal registou mais 33 óbitos, sendo o 9º país da UE com mais mortes por habitantes neste período.
No acumulado desde o início da pandemia, Portugal apresenta um registo pouco animador em número de infeções, na comparação com o universo UE+Reino Unido – desde março, somos o sexto país com mais casos por 100 mil habitantes (646, à frente de casos dramáticos como França e do Reino Unido). Analisando o número de contágios ajustado à população, à frente de Portugal só surgem Espanha, Luxemburgo, Suécia, Bélgica e Irlanda.
Em número de óbitos desde março, Portugal melhora o registo comparado: surge em 11º lugar, com 18,37 mortes por cada 100 mil habitantes (ao nível da Alemanha).
Europa soa alarmes mas não fecha
Espanha, França e República Checa são os países onde as campainhas de alarme soaram com mais força nos últimos dias. Ao invés, a Itália, que na primeira vaga foi o primeiro país europeu a apresentar um panorama apocalíptico, está agora com a situação relativamente controlada – na última semana, teve uma média de 16 novos casos por 100 mil habitantes (Portugal teve 41) e 0,12 mortos/100 mil (Portugal teve 0,35). Mas os números estão a subir (quase dois mil novos casos é a última cifra diária) sobretudo na massacrada região da Lombardia.
Eis a comparação entre Portugal e Itália desde a chegada do vírus.
Olhando para indicadores ajustados à população, Portugal tem piores resultados do que a Itália desde maio em relação a novas infeções, e desde finais de junho Portugal tem mais mortes por 100 mil do que a Itália. Só apresentamos melhor desempenho comparado na capacidade de testagem.
(Tendo em conta que Itália tem eleições para sete governos regionais este fim de semana, será interessante perceber em que medida os partidos do Governo serão afetados pelo desempenho no combate à pandemia nos últimos meses – as sondagens dizem que a direita e a extrema-direita preparam-se para o assalto ao poder…)
Portugal, que já foi o campeão europeu dos testes por habitantes, também nesse campeonato tem vindo a perder terreno. Não é que estejamos a testar menos – o governo falou esta semana numa média de 14.400 testes realizados por dia, e fixou o objetivo de chegar aos 22 mil/dia em outubro -, os outros é que estão a aumentar o número de testes mais do que nós.
“Pior do que ficção científica”
Já se adivinhava que setembro, com o regresso ao trabalho e a reabertura das escolas, seria um período crítico na Europa. “Momento decisivo”, tinha avisado a Organização Mundial de Saúde (OMS), antecipando que “a pressão da infeção vai aumentar”. Assim está a ser. A mesma OMS alertou na quinta-feira que a Europa está a assistir a “ritmos de contágio alarmantes”, segundo disse o diretor regional para a Europa, Hans Kluge, em conferência de imprensa.
Em ambiente mais recatado, David Nabarro, professor do Imperial College que faz parte da equipa de Covid-19 da OMS, avisou um grupo de deputados britânicos que o mundo ainda está no início de uma pandemia que “é pior do que qualquer pandemia na ficção científica”. A citação vinha no The Times.
Sem surpresa, a economista-chefe do Banco Mundial, Carmen Reihart, estimou esta semana que a economia mundial deverá demorar pelo menos cinco anos a recuperar da pandemia – e tudo depende, antes de mais, da existência de uma vacina ou de uma terapia (voltaremos a isso mais abaixo).
O epicentro da epidemia volta a estar aqui ao lado, em Espanha, em particular em Madrid. O país registou mais 71 mil casos na última semana, com dias acima de 11 mil novos casos (nas últimas 24 horas foram mais 14 mil). Como todos os países, Espanha quer evitar um novo lockdown generalizado. Ainda ontem António Costa disse o mesmo sobre Portugal: a opção dos governos será fugir até ao limite de novos confinamentos gerais, optando antes por medidas locais e pontuais, como limitação de deslocações e de algumas atividades sociais e económicas.
De resto, a OMS recomenda esse tipo de abordagem localizada, em alternativa a confinamentos nacionais, cujo custo social e económico pode tornar-se incomportável: “Em muitos casos, é possível conter os picos localmente”, validou Hans Kluge.
Espanha (outra vez) no precipício
Em Espanha, desde ontem, 13% da população da Comunidade de Madrid está sujeita a restrições específicas, com fortes limitações à mobilidade, limite de ajuntamentos a um máximo de seis pessoas, e encerramento dos parques públicos. As medidas afetam quase 900 mil pessoas que vivem em 37 áreas identificadas como as de maior risco – com mil contágios por 100 mil habitantes, “uma cifra gravíssima”, reconheceu a presidente da região, Díaz Ayuso.
A gravidade da situação mede-se, não só pela taxa de contágio, como pelo impacto sobre o sistema de saúde: 64% dos lugares nas unidades de cuidados intensivos de Madrid estão ocupados por doentes Covid. E as autoridades estão prontas para reativar o enorme hospital de campanha que foi construído em tempo recorde para dar resposta à primeira vaga.
Na última semana, Espanha registou mais 706 óbitos por Covid, e o valor oficial de mortes provocadas pela pandemia ultrapassa as 30 mil.
“Valor oficial” é uma expressão, neste caso, com valor reforçado, pois as dúvidas sobre os dados fornecidos pelo executivo de Pedro Sánchez já vêm de trás e são cada vez maiores. O conflito com autoridades regionais (como no caso de Madrid) só agrava as dúvidas. Ao ponto de o jornal ABC, de centro-direita, ter feito manchete no fim de semana passado com um valor muito mais alto, que desafia os números do Ministério da Saúde.
Não é só Espanha que está a endurecer algumas medidas restritivas, e localizadas. Em França, cidades como Paris, Nice, Lyon e Toulouse anunciaram limitações, que vão desde ajuntamentos públicos à venda de álcool e ao horário de funcionamento de bares, estabelecimentos de diversão e algum comércio. A regra fixada por Emmanuel Macron é “ser lúcido, exigente e proporcional”.
Foram detetados oito casos de Covid na Assembleia Nacional, afetando deputados, pessoal de gabinetes e funcionários. O poderoso ministro das Finanças, Bruno Le Maire, testou positivo. Para além das infeções, as mortes relacionadas com Covid estão a subir em França mais do que noutros países europeus (123 mortes em 24 horas).
As notícias de novas restrições surgem de todo o lado, da Grécia à República Checa, da Alemanha à Irlanda, de países com governos de esquerda, de centro e de direita – apesar das manifestações que vão surgindo pelo continente, de correntes de direita, a protestar contra a “limitação de liberdades individuais”. O húngaro Viktor Orban e o austríaco Sebastian Kurz, ambos – e cada um à sua maneira – representantes de governos bastante à direita, anunciaram esta semana novas medidas restritivas dessas liberdades, como mais imposições de uso de máscaras e limitação a deslocações e atividades económicas (no caso de Órban, em registo bastante musculado).
No Reino Unido, circulam cada vez mais rumores de um eventual novo lockdown generalizado, que Boris Johnson recusa terminantemente. Mas o seu ministro da Saúde não é assim tão definitivo, e o mayor de Londres admite que o encerramento total possa ser necessário. Em alternativa, estão a apertar outras medidas, quase todas de caráter local, como restrições ao convívio social, encerramento de bares e restaurantes e versões mais ou menos suaves de recolher obrigatório nalguns condados.
Johnson tem outro problema em mãos: para além do aumento de infetados, voltaram a subir as mortes relacionadas com a Covid-19. Com uma novidade preocupante – um surto num hospital. Dezoito pessoas morreram depois de contrair Covid-19 num hospital da área de Manchester, onde estavam para tratamento de patologias não relacionadas com o coronavirus. Os procedimentos de testagem e de controlo de infeções dentro dos hospitais tornaram-se uma das questões quentes no Reino Unido.
Apesar deste caso, a evidência científica (como este estudo) indica que os riscos de contaminação por este vírus em ambiente hospitalar é baixo… desde que sejam cumpridos os protocolos de controlo de infeções.
Escassez de testes
A maior preocupação dos britânicos, neste momento, são os testes. O ministro da saúde admitiu a possibilidade de racionamento de testes de Covid, precisamente quando estes são mais necessários. O Reino Unido tem aumentado muito a capacidade de testagem, mas o governo de Johnson não assegurou testes suficientes, e os laboratórios também mostram dificuldades em responder a um novo pico de procura, pelo que será dada prioridade a doentes internados e ao pessoal de saúde, seguindo-se os utentes e trabalhadores dos lares. Não há sequer garantia de que casos suspeitos sintomáticos consigam ser testados em tempo útil, escreve o The Times.
Boa notícia para Boris Johnson, e não só: a Nature dá conta de que estão disponíveis novos testes rápidos, prontos a chegar ao mercado, bastante mais baratos do que os que têm sido utilizados em todo o mundo. Os kits têm o tamanho de um cartão de crédito, cada teste custa 5 dólares, e os resultados demoram cerca de 15 minutos, sem precisar de recurso a um laboratório ou a qualquer tipo de maquinaria.
Segundo a manchete do Expresso deste fim de semana, a Cruz Vermelha Portuguesa recebeu um financiamento internacional para comprar meio milhão de testes destes, e propõe disponibilizar essa remessa a custo zero para utilização nas escolas e lares. O Governo português ainda não terá respondido à oferta, pois há bastantes dúvidas sobre a fiabilidade destes testes.
A técnica é diferente da tradicional: o teste deteta proteínas específicas (antígenos), que denunciam a presença do vírus. O senão: são menos sensíveis, e portanto menos fiáveis, sobretudo nos casos em que a carga viral seja baixa. Ou seja, eis um caso claro em que se pode gerar uma “falsa sensação de segurança”.
Vai correr? Antes, leia isto
Lembra-se da foto do assassino, lá em cima? Não é a única frente em que sabemos sobre este virus muito mais do que sabíamos. Fizemos um longo caminho desde os tempos (não tão) longínquos em que esta era vista como uma doença que afetava apenas o sistema respiratório. É hoje evidente que quase todos os sistemas do corpo humano são afetados, sobretudo em casos graves, e as sequelas a médio e longo prazo estão ainda longe de ser completamente compreendidas. Mas há informação que vai ficando cada vez mais clara.
Por exemplo, do impacto da Covid-19 sobre o cérebro. “Os sintomas neurológicos estão a tornar-se cada vez mais assustadores”, diz um neurocientista da Universidade da Califórnia, neste texto publicado esta semana pela Nature. Para além de delírio, confusão e desorientação, a lista inclui AVC isquémico, AVC hemorrágico e perda de memória.
Também na Nature, este texto dá conta de que o impacto da Covid no sistema renal pode ser bem maior do que se julgava. O virus tem apetência pelos rins, pode replicar-se nas células renais, e a transdução renal por SARS-COV-2 está associada a aumento de incidência de lesão renal aguda e a menor tempo de sobrevida dos pacientes.
Para terminar, um aviso aos desportistas, mesmo que de ocasião. O impacto da Covid-19 no sistema cardiovascular ainda está a ser estudado, e há muito por perceber sobretudo no longo prazo. Por um lado, há a questão da correlação entre patologias cardíacas pré-existentes e a Covid-19, por outro, há evidência de que 20% a 30% dos pacientes hospitalizados com o novo coronavirus apresentaram complicações cardíacas – ou seja, em casos em que a infeção por Covid teve gravidade suficiente para haver internamento.
Mas há outra preocupação, e é aqui que entra a sua eventual rotina de exercício físico: de acordo com este artigo da Wired, há evidências de que o vírus pode causar lesões cardíacas mesmo a quem tem sintomas ligeiros de Covid ou é assintomático. Sobretudo quando essas pessoas praticam exercício cardiovascular enquanto estão doentes – mesmo que não saibam, sequer, que estão doentes. A suspeita resulta de um conjunto de casos envolvendo atletas a quem, depois da Covid, foi diagnosticada miocardite (uma inflamação da paredes do coração).
A rota do virus
Esta semana ficámos a conhecer melhor o passado do vírus – não, ainda, a explicação definitiva da sua origem, mas o trajeto que fez para a Europa e os Estados Unidos, os primeiros passos para a conquista do mundo.
Até prova em contrário, o novo coronavírus surgiu mesmo na China, mas como e quando chegou ao resto do mundo? Segundo um artigo publicado na Science, foi assim:
A primeira vaga chegou à Europa através da Alemanha, em janeiro, e de Itália, entre finais de janeiro e fevereiro. Até hoje havia a suspeita de que o primeiro surto italiano, na Lombardia, podia resultar da propagação do surto de Munique, onde foi detetada a primeira infeção da Europa. Porém, a análise genética indica que não terá sido assim, e que os dois surtos resultam de “linhagens” diferentes. Outra diferença: esse primeiro surto alemão foi rapidamente resolvido – testagem e internamento asseguraram a interrupção da cadeia de transmissão; no surto italiano, não…
O mesmo estudo indica que, nos Estados Unidos, o vírus teve duas portas de entrada, de duas origens distintas: chegou primeiro à costa Oeste (ao estado de Washington), oriundo da China, e poucas semanas depois aterrou em Nova Iorque num voo com origem na Europa.
Anti-gripe
Em tempo de más notícias, também as há boas. Ainda a primeira vaga estava a crescer, e já as autoridades portuguesas olhavam com receio para os meses de outono – o momento mais temido era o que estamos agora a viver. Pelo regresso ao trabalho, e às aulas, mas sobretudo pela chegada do tempo frio… e da gripe. A campanha de vacinação contra a gripe começa em Portugal a 28 de setembro.
A coincidência da Covid e do vírus da gripe parecia a tempestade perfeita. Para nossa sorte, o inverno chega primeiro ao Hemisfério Sul, pelo que podemos antecipar muitos cenários monitorizando o que se passa em países como a Austrália, conforme fizemos num Novo Normal em julho.
Com o inverno do Hemisfério Sul a acabar, as notícias não podiam ser melhores. São a notícia de como a Covid inadvertidamente quase fez desaparecer outra doença mortal.
Nestes quatro gráficos vê a comparação entre os casos de gripe nos últimos cinco anos, e em 2020. Sim, a linha de 2020 é aquela vermelho escura, a linha reta que não sai do zero na imagem da Nova Zelândia.
Como todos os anos, a OMS conduziu testes de rastreio de influenza, para perceber a quantidade e o tipo de virus deste inverno. Nas duas primeiras semanas de agosto, nos 200 mil testes que fez em países do Hemisfério Sul, detetou apenas 46 casos positivos. Num ano normal, seriam uns 3.500, conforme conta a Economist neste texto.
Este artigo do Centre for Disease Control (CDC) dos EUA dá algum detalhe: em 60 mil testes feitos na Austrália, apenas 33 positivos; em 21 mil no Chile, 12 positivos; etc. Na Nova Zelândia, a linha que marca a evolução de casos de gripe nem mexeu este ano – entre junho e a semana passada, nem um caso de gripe foi detetado nos hospitais da Nova Zelândia, relata o Guardian. “O nosso pico de excesso de mortalidade de inverno praticamente desapareceu”, constata um professor de saúde pública. O cenário tem sido este na Oceanía, em vários países da América do Sul e na África do Sul.
Será cedo para conclusões definitivas, mas, como escreve o CDC, “é difícil separar o efeito das medidas de mitigação” tomadas para travar a Covid da queda de casos de gripe: maiores cuidados de higiene, mais tempo em isolamento em casa, etiqueta respiratória, utilização de máscaras, distanciamento social, restrição dos convívios em locais fechados.
Perante estes dados, é ainda mais estranho que em Portugal o acréscimo de mortalidade verificado desde março seja explicado, em parte, pela gripe. Entre março e agosto morreram em Portugal mais 6312 pessoas do que a média dos últimos cinco anos – se os dados oficiais estiveram corretos, a Covid justifica 1822 dessas mortes. E as restantes? O Ministério da Saúde e o Instituto Ricardo Jorge atribuem ao calor do verão e à gripe do início do ano, mesmo tendo em conta que a partir de meados de março os portugueses cumpriram regras de distanciamento rigorosas, em estado de emergência… A Ordem dos Médicos dá outra explicação, que parece mais intuitiva: o acesso à saúde tornou-se mais difícil, e milhões de consultas e exames e milhares de cirurgias ficaram por fazer.
O Público deste sábado tem um bom trabalho sobre isto, cuja leitura recomendo e de onde retirei esta infografia.
E a vacina? Pois…
A vacina tornou-se uma arma política, para além de uma competição científica global. Nos Estados Unidos, é o trunfo que Donald Trump sonha poder exibir a tempo das eleições de 3 de novembro, e está a pressionar as farmacêuticas tanto quanto pode para que acelerem o processo e tenham boas notícias a tempo das eleições. Esta semana, Trump não hesitou em desautorizar o diretor do Centro para Controlo de Doenças dos EUA, que desmontou as fantasias presidenciais sobre o calendário da vacina. E nesta sexta-feira à noite, Trump prometeu que até abril haverá vacinas para todos os americanos…
O principal especialista em emergências da OMS, Mike Ryan, reagiu ao bate-boca entre Trump e o director do CDC pedindo aos responsáveis nacionais que não transformem “tudo isto numa espécie de futebol político”. O mesmo responsável da OMS adiantou que, no melhor dos cenários, uma vacina começaria a ser administrada no início de 2021. No melhor dos cenários.
Há um caso dos últimos dias que não pode ser desligado da pressão política de Trump. Esta foi uma semana histórica para a ciência, quando duas das principais farmacêuticas na corrida à vacina divulgaram os seus protocolos de testagem, numa atitude de transparência e abertura que visa aumentar a confiança da população no trabalho que está a ser feito – ainda mais importante depois da suspensão dos testes da vacina que está a ser desenvolvida pela AstraZeneca.
Uma das companhias que divulgaram os protocolos foi a Moderna. A companhia norte-americana divulgou também um novo calendário de procedimentos, mais longo do que o de alguns concorrentes – segundo essa timeline, só no final de dezembro a Moderna estaria em condições da análise sistémica dos dados recolhidos na fase 3 de teste em 25 mil voluntários.
Stéphane Bancel, o chief executive da Moderna disse à CNBC que poderia haver uma análise intercalar de dados em novembro, se tudo corresse muito bem. “O melhor cenário é outubro. É improvável, mas é possível”, acrescentou.
Ora, este calendário não servia a Trump. E, se a Moderna está na corrida à vacina, é porque foi escolhida pela Casa Branca para ser uma das companhias apoiadas pelo governo norte-americano na operação Warp Speed, para acelerar a investigação e desenvolvimento do fármaco. Um dia depois de ter divulgado o novo calendário, a Moderna anunciou, ontem, que afinal tenciona produzir até ao fim deste ano 20 milhões de doses da sua vacina experimental – e, no mesmo dia, Trump deu essa boa nova aos seus apoiantes num comício…
Não é garantido que esta politização da corrida à vacina dê votos, mas uma consequência já teve: está a aumentar o número dos que, nos EUA, dizem que não confiam neste fármaco. Uma vacina à pressão? Não obrigado, dizem 49% dos inquiridos numa sondagem divulgada esta semana.
Em abril, à mesma pergunta, 72% responderam que estavam prontos para a vacina; agora, são só 51%. Curiosamente, a desconfiança aumenta tanto entre apoiantes de Trump como de Joe Biden.
E se houver uma vacina e poucos a quiserem tomar?
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2ª vaga: sem lockdown, sem vacina e (quase) sem gripe
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