Editorial

Vamos lá cair na discussão absurda

António Costa pede-nos para se não cair na discussão absurda sobre o peso do investimento do Estado no Plano de Recuperação e Resiliência. Vamos ter de lhe fazer uma desfeita.

O primeiro-ministro entende que é um absurdo discutir se a alocação do fundo de recuperação e resiliência tem ou não um peso excessivo de investimento no Estado e nos serviços públicos, em contraponto ao investimento nas empresas. Como noutros casos, só faltou mesmo declarar, solene, que o caso estava encerrado. Mas absurdo, absurdo é mesmo não cair na discussão destas opções do Governo para um plano que deixou de ser de recuperação para passar a ser o plano do que não foi feito no ‘verão passado’. Lembram-se das cativações e das contas certas? Foi exatamente à custa do que não foi feito.

António Costa não desmentiu as críticas à forma como os 12,9 mil milhões de euros vão ser distribuídos, preferiu valorizar a importância do Estado e dos custos de contexto e a necessidade de investir nos serviços públicos e no sistema judicial, para que seja mais eficiente. Está certo, ninguém pôs isso em causa, ninguém questiona investimentos na saúde e na educação ou no território, nas transições digital e climática. O ponto é outro, é a utilização deste instrumento financeiro que resultou de um plano europeu para os países recuperarem da crise (como o nome indica) para o Governo fazer o que já deveria ter feito nos últimos cinco anos e que, até janeiro, garantia ter feito. Mas não fez. É que há outros mecanismos financeiros, como o Quadro Financeiro Plurianual (2021-2027), o orçamento “normal” da UE.

Vamos então aos números para perceber quais são as do Governo:

  1. Vulnerabilidades Sociais: Abarca a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, de Cuidados Paliativos, equipamento para hospitais, mas também a reestruturação do parte de habitação social, a nova geração de equipamentos e respostas sociais, além, de programas para eliminar “bolsas de pobreza em Áreas Metropolitanas” — 3.200 milhões de euros.
  2. Eficiência Energética e Renováveis: Neste campo, o Governo prevê utilizar verbas ao abrigo do “Programa de apoio à eficiência energética de edifícios”, mas também contempla a Estratégia Nacional para o Hidrogénio e Gases renováveis — 800 milhões de euros.
  3. Administração Pública: Dentro deste bloco, é o que absorve a maior “tranche”, sendo esta utilizada para a capacitação digital da Justiça, o Portal Único de serviços públicos, a capacitação e qualificação da Administração Pública, mas também prevê a gestão do património online e a cibersegurança — 1.800 milhões de euros.
  4. Escola Digital: Governo prevê utilizar parte das verbas recebidas a fundo perdido na digitalização das escolas, seja através de equipamentos ou infraestruturas, recursos educativos e humanos — 700 milhões de euros.
  5. Competitividade e Coesão Territorial: Junta o cadastro do território, os meios aéreos para incêndios rurais, mas também o Plano de eficiência hídrica do Algarve, além da Barragem do Pisão — 1.500 milhões de euros

São cinco exemplos do que são as prioridades do Governo neste plano. E para as empresas e a competividade?

  1. Potencial produtivo: Agrega o investimento e inovação com qualificações profissionais, mas também a “capitalização de empresas e resiliência financeira/Banco de Fomento” — 2.500 milhões de euros

Esta alocação de recursos neste plano em concreto é tanto mais desequilibrada quando ainda esta terça-feira, em entrevista à TVI, o ministro Pedro Siza Vieira garantia que o Governo está preparado para continuar a manter os apoios às empresas criados no quadro da pandemia, nomeadamente as moratórias e as linhas de financiamento. Portanto, no momento em que o país vai ter à sua disposição um plano de recuperação e resiliência de fundos europeus, o Governo considera que bastará às empresas o alargamento de apoios que, exceção feita ao lay-off simplificado, não são mais do que dívida contraída agora para ser paga depois. E não bastará, isso é apenas empurrar com a barriga, serve apenas para ganhar tempo, à espera que o mundo volte ao antigo normal (coisa que não vai suceder tão cedo, pelo menos enquanto não houver uma vacina).

O que as empresas não precisam é mesmo de mais dívida. Precisam de capital, de muito capital, o bem que mais falta faz. E se não o conseguimos atrair em volume necessário, este fundo de recuperação e resiliência seria uma oportunidade única para criar mecanismos de capitalização com a dimensão necessária. O banco de fomento, por exemplo, vai arrancar com um capital de 255 milhões de euros, o que poderá alavancar cerca de mil milhões de euros de capital, uma gota de água nas necessidades de capitalização que se conhecem.

O plano do engenheiro-poeta, António Costa Silva, tem uma gritante ausência de definição de prioridades, é um catálogo longo que tem, apesar de tudo, o mérito de identificar de forma até exaustiva o que temos pela frente. Pelo menos na próxima década, não precisamos de ter outro plano estratégico, outra visão, esta serve todos os gostos, porque identifica o Estado como o salvador da economia e do país mas também considera que as empresas são os centros de criação de riqueza. E até serviu para António Costa afirmar que, afinal, o país precisa de reformas estruturais, coisa que desconsiderava ainda há poucos meses. Mas é ao Governo, e não a Costa Silva, que devemos exigir respostas e explicações, mesmo quando o primeiro-ministro acha que a discussão é absurda. Ou especialmente quando António Costa quer acabar com a discussão.

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