Notícias da eleição que pode partir a América

O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa as eleições americanas, as 50 sondagens, os pontos fortes e fracos dos candidatos e os debates televisivos.

Não há montanha-russa como a das eleições presidenciais norte-americanas.

Na semana em que os Estados Unidos ultrapassaram a fasquia de 200 mil mortos por Covid, Donald Trump intensificou a sua agenda de comícios perante milhares de apoiantes, sem máscaras nem distanciamento social.

Um dia depois de uma sondagem do Washington Post colocar Trump à frente de Joe Biden em dois importantes swing states — Flórida e Arizona –, outra sondagem do New York Times mostrou o presidente em apuros para reconquistar estados que lhe deram a vitória em 2016.

À mesma hora a que os protestos de rua contra o racismo sistémico e a violência policial se reacendiam, Trump recusava comprometer-se com uma transição pacífica de poder, caso perca as eleições.

Conforme a pandemia lança novas sombras sobre a economia, com o desemprego sem dar tréguas, Trump muda de assunto e volta a apostar forte na cartada identitária nós-contra-eles, à boleia do lugar vago que a juíza Ruth Ginsburg deixou no Supremo Tribunal.

Ao mesmo tempo que o presidente insiste que está para breve (talvez antes das eleições) uma vacina contra a Covid, o regulador do medicamento nos EUA apertou as regras científicas para validar uma nova vacina…

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Faltam menos de seis semanas para o dia das eleições, e é melhor apertar o cinto. Não será só uma campanha feia — será “America’s ugly election”, como se lia numa capa recente da Economist. A mais feia eleição americana.

O que dizem as sondagens

Valem o que valem, já se sabe, e esta semana dizem-nos isto: na média ponderada de todas as sondagens nacionais divulgadas até ontem, Joe Biden está 7,4 pontos à frente de Donald Trump. A vantagem já foi maior, esteve quase nos dez pontos em junho e julho, após os protestos que se seguiram à morte de George Floyd, mas fixou-se abaixo dos 8 pontos desde o final de agosto, após as convenções dos democratas e dos republicanos.

Numa eleição que não é uma eleição nacional, mas 50 eleições estaduais, é mais importante olhar para os estados do que para totais nacionais. O mapa eleitoral elaborado pelo site Real Clear Politics, com base em todas as sondagens conhecidas, é este. Vantagem para Biden, com 13 estados garantidos ou quase do seu lado, que valem 222 votos no Colégio Eleitoral — ainda longe dos 270 necessários para ser presidente. Trump está ainda mais distante, com 125 votos garantidos nos dez estados que estão firmes ou perto disso.

Por estas projeções, ainda é cedo para saber para que lado vão cair 191 votos do Colégio Eleitoral — são 14 estados que ainda podem dar a maioria a um ou outro candidato. Aqui estão grandes e médios estados como Texas (38 votos), Flórida (29), Pensilvânia (20), Ohio (18), Michigan (16), Georgia (16), Carolina do Norte (15), Arizona (11) ou Wisconsin (10). Estes são os estados de que mais vai ouvir falar até 3 de novembro (junte-lhe Iowa e Nevada) – são os terrenos de batalha (battleground states), ou estados que suingam (swing states).

Há quatro anos, Trump venceu os 14 estados que estão atualmente na zona cinzenta, à exceção do Nevada. Agora, a julgar pela média das sondagens feitas nesses estados, Biden tem boas probabilidades de vencer na maioria — nos estados “empatados”, Trump só aparece com vantagem (curta) em três: Texas, Iowa e Georgia. Nas poll of polls (agregado de sondagens) da Carolina do Norte e da Flórida, Biden surge à frente, mas a sondagem publicada pelo Washington Post, com Trump à frente de Biden na Flórida, deu um balão de oxigénio à trincheira do presidente.

Distribuindo os estados “indecisos” de acordo com o que dizem as sondagens, o mapa a duas cores do Real Clear Politics fica assim — vitória folgada de Biden, com 353 votos no Colégio Eleitoral.

O caminho para uma vitória de Biden parece neste momento mais tranquilo do que o de Trump. O FiveThirtyeight, um dos sites norte-americanos mais reputados em análise estatística e de sondagens, encontrou só cinco caminhos possíveis de vitória para Trump, contra 17 combinações diferentes em que Biden pode vencer.

A análise que importa, estado a estado, dá mais segurança para Biden hoje do que há um ou dois meses. Analisando vinte estados, o FiveThirtyEight conclui que Biden reforçou a sua posição em 17, e Trump apenas em dois (Flórida e Missouri). Um dos terrenos onde o candidato democrata mais se destacou do presidente foi o Arizona — isto não teria grande história, a não ser por um pormenor: as simulações indicam que o Arizona é um estado decisivo nos cenários em que Trump pode sair vencedor (spoiler alert: o Arizona é o outro swing state onde a sondagem do Washington Post surpreendeu esta semana, com Trump à frente).

O site de Nate Silver fez 40 mil simulações de resultados eleitorais, para ver qual dos candidatos venceria mais vezes — Biden tem 77% de probabilidade de vitória e Trump apenas 22%. Convém notar que não é muito diferente do que o mesmo site dizia há quatro anos, também contra Trump.

Este é o momento para lembrar que uma probabilidade de três em quatro é alta, mas… “Quando dizemos que um candidato tem 75% de hipóteses de ganhar, é como uma companhia de aviação dizer que dos próximos quatro aviões que partirem há um que vai cair, mas os outros três vão chegar ao destino.” Dito assim já não parece tão favorável, pois não? A frase foi-me dita pelo politólogo Pedro Magalhães, numa entrevista que fiz para o podcast Atlantic Talks, da FLAD, e que pode ouvir aqui a partir da próxima segunda-feira. E você, apanhava um desses aviões? Pois…

Impopular, mas forte na economia e lei & ordem

As sondagens também nos dão outras pistas:

  • Trump está a perder apoio entre os brancos, o seu grande sustento eleitoral;
  • Biden está mais forte no eleitorado católico do que Hillary em 2016 (mas os evangélicos não descolam de Trump — recomendo a análise do Bernardo Pires de Lima, no DN, sobre “o decisivo voto evangélico”);
  • As linhas de divisão que marcaram a eleição de há quatro anos podem ser ainda mais fundas agora, nomeadamente a divisão de género (homens com Trump, mulheres com Biden).

Sim, 2016 deu-nos lições suficientes sobre a falibilidade das sondagens e a cautela com que devem ser encaradas. Mas continuam a ser um bom instrumento para perceber tendências. Sobretudo se tivermos em conta que, em 2016, as sondagens nacionais não falharam assim tanto: como lembra o Pedro Magalhães, a média das últimas sondagens dava Hillary Clinton 3 pontos à frente de Trump, e Hillary acabou mesmo dois pontos à frente, com mais três milhões de votos – o problema foi a distribuição desses três milhões. Daí o cuidado especial com que as sondagens estaduais estão a ser conduzidas este ano, e a atenção a outros indicadores, para além das intenções de voto.

Trump continua com uma avaliação de desempenho muito negativa. Na média das sondagens sobre a avaliação do trabalho do presidente, só 43% aprovam, contra 53% com opinião negativa. A história diz-nos que raramente conseguiu ser reeleito um presidente em funções com este nível de impopularidade (só Harry Truman conseguiu tal reviravolta, e ficou para a história por isso). Porém, Trump não está tão mal como estavam Jimmy Carter e o pai Bush, os últimos presidentes que falharam a reeleição.

A maioria dos eleitores diz ter mais confiança em Biden para gerir a pandemia do que em Trump. O democrata também é visto como mais empático, mais capaz de reconciliar o país, enfrentar a divisão racial e serenar a instabilidade social que tem marcado os EUA ao longo deste ano.

Trump mostra-se mais forte na frente económica (apesar de enfrentar uma colossal recessão, a economia estava próspera antes da Covid, e muitos eleitores reconhecem isso), e em questões relacionadas com “lei e ordem” e segurança nacional. De resto, na generalidade das sondagens Trump é visto como mais energético, e um líder forte, enquanto Biden nem por isso.

Uma sondagem do Politico, divulgada esta semana, identifica as principais preocupações dos eleitores na hora de votar, e identifica bem a diferença entre as prioridades dos apoiantes de Trump e de Biden — que em boa medida corresponde à diferença de perceção em relação a cada candidato.

Trump aposta no debate, Biden baixa expectativas

É neste quadro de forças e fraquezas que os candidatos se vão defrontar pela primeira vez na terça-feira, em Cleveland, no primeiro de três debates televisivos. Apesar da relevância que os debates têm no imaginário das campanhas eleitorais — e das campanhas presidenciais dos EUA em particular, devido ao debate televisivo fundador –, raramente o seu impacto está à altura da sua mitologia.

Desde que ninguém cometa grandes gaffes, os debates mexem pouco no sentido de voto. Ainda mais num país tão polarizado como estão os Estados Unidos, onde boa parte dos que vão votar já tem opinião formada. 93% dos entrevistados nesta sondagem Economist/YouGov diz isso mesmo — só 7% ainda não decidiu. A questão é quem irá mesmo votar — a mobilização será decisiva, e é nesse aspeto que os debates podem ajudar.

É interessante notar que, dos entrevistados que declaram que votam em Biden, a maioria (57%) admite que a sua principal motivação é derrotar Trump. Do lado republicano, a grande maioria (75%) diz que vai votar porque quer mesmo Trump na Casa Branca. Desse ponto de vista, a pressão dos debates é menor sobre Biden, pois a maioria dos seus eleitores quer mesmo é livrar-se do adversário.

Claro que debater com Trump não é o mesmo que debater com qualquer outro adversário. Hillary Clinton que o diga. Biden costuma desdramatizar, dizendo que “estou habituado a lidar com bullies” — é o que terá de fazer. A propósito, recomendo este texto publicado na Atlantic por um republicano, antigo colaborador de Ronald Reagan e dos dois presidentes Bush, com dicas sobre o que Biden deve fazer para vencer o debate. O New York Times, por seu lado, tem este delicioso texto de um académico de psiquiatria clínica para responder à questão “como debater com alguém que mente”. A resposta: usar humor e fazer aquilo que é mais insuportável para um bullyridicularizá-lo.

Toda a estratégia de Biden foca-se em não cometer erros, para manter a vantagem. Os democratas baixam as expectativas, esperando superá-las. Nas primárias do Partido Democrata houve quem se esquecesse que Biden tem no currículo muita experiência de debates.

Os republicanos têm caricaturado Biden como um homem velho, fraco, fechado em casa com medo do vírus, e com tendência para gaffes. As redes sociais de apoio a Trump estão repletas de vídeos de enganos de Biden (muitos deles, até partilhados por Trump, não passam de manipulação), como “prova” de que o candidato de 77 anos já não está capaz de ser presidente. Quando Biden dá respostas diretas e bem articuladas, o lado republicano acusa-o de estar a ler no teleponto, ou sob o efeito de substâncias dopantes (lançaram as mesmas suspeitas sobre Hillary em 2016).

O contraste entre candidatos e respetivas candidaturas não podia ser maior. Trump, a estrela do showbiz, voltou a encher comícios com milhares de apoiantes sem distanciamento social e quase sem máscaras (as reportagens contam que, quando se ligam as câmaras para os diretos, o público atrás do candidato está instruído para colocar máscara). Biden, o veterano tranquilo, tem uma agenda ligeira, raramente divulgada ao público com antecedência, para evitar multidões, com programas que incluem visitas discretas e mesas-redondas com poucas dezenas de pessoas, sem selfies nem contactos físicos — chega para ter destaque nos media locais e na comunicação social nacional, mas não há imagens de encher o olho.

A campanha de Biden apresenta estes cuidados como a prova de que o candidato se preocupa com os seus apoiantes, não os expondo a riscos (os riscos que o público de Trump corre, enquanto o presidente, esse, mantém sempre uma distância segura). Mas tanta tranquilidade começa a deixar os democratas nervosos. Falta energia, mobilização, estamina e calor humano.

Duas fotos partilhadas por Trump no seu Twitter, para mostrar o contraste entre eventos recentes das duas campanhas na Pensilvânia.

Estamina é o que não falta nos comícios de Trump. Esta reportagem da Vox dá conta de que também não têm faltado tiradas racistas, ataques à comunicação social, declarações autoritárias e teorias conspirativas sem fundamento. Aliás, boa parte das informações falsas que alimentam por estes dias as grandes campanhas de desinformação relacionadas com as eleições americanas, nomeadamente promovidas a partir da Rússia, limitam-se a usar acusações e insinuações lançadas e alimentadas por Trump. O diretor do FBI, Christopher Wray, alertou para isso há dias no Congresso.

As teorias sobre fraudes com os votos por correspondência, e as alegações de eleições manipuladas, de que Trump fala em permanência, são um dos temas favoritos dos esforços de desinformação de potências estrangeiras, garantem o FBI e o Departamento de Segurança Interna. Muitos limitam-se a fazer print screen de declarações de Trump. Que Trump se tenha tornado o principal fornecedor dos trolls russos que querem interferir nas eleições americanas é um bom resumo destes tempos.

A ameaça que nunca ninguém fez antes

Eleições polémicas não é novidade nos EUA. Há quatro anos Trump perdeu por três milhões de votos, mas ganhou no Colégio Eleitoral; há 20 anos Al Gore venceu no voto popular, mas perdeu por decisão do Supremo Tribunal, no processo de recontagem dos votos que deram a vitória a George W. Bush na Flórida. Em 1968, um dos candidatos, Bobby Kennedy, foi assassinado; e em 1912 um dos candidatos, Teddy Roosevelt, não foi assassinado, mas levou um tiro durante um discurso. As eleições de 1876 são um caso de estudo de um bloqueio constitucional que bem pode repetir-se em novembro, com o Congresso a ser chamado a decidir o vencedor.

“Apesar disto”, como lembrava há tempos The Economist, “o país conseguiu sempre que os derrotados aceitassem a derrota nas eleições presidenciais — até durante a guerra civil”. Eis outro aspeto — o mais grave — em que estas eleições ameaçam ser inéditas.

Tal como tinha feito em 2016, e tal como já havia insinuado em agosto, e noutras ocasiões, esta semana Donald Trump voltou a recusar comprometer-se com uma transição pacífica de poder caso perca as eleições. “Teremos de ver o que acontece”, respondeu na Casa Branca, repetindo as queixas sobre supostas fraudes eleitorais com os votos por correspondência. O establishment do Partido Republicano desvalorizou a ameaça, mas a realidade tem mostrado que o ascendente de Trump sobre o partido é, hoje, total.

Há quatro anos, Trump fez uma rábula num comício em que deixou claro o seu plano: “Aceitarei completamente os resultados desta grande e histórica eleição presidencial”, declarou perante apoiantes… “Se vencer”, acrescentou. E se perder agora?

Se tivermos em conta que as suas hipóteses de vitória são uma em sete (segundo o forecast da Economist), ou 23% (segundo o FiveThirtyEight), isso é bem possível. Uma derrota, sobretudo por pouco, será um sarilho. Antecipa-se uma feroz batalha jurídica, a contestar os resultados, sobretudo nos swing states que tenham dado a vitória a Biden. O terreno para essa contestação está preparado: as suspeitas de fraude que Trump alimenta há quatro anos. “A única forma de eu perder esta eleição é se a eleição for manipulada”, disse o presidente em agosto.

Note-se que o diretor do FBI garantiu na quinta-feira, no Congresso, que nunca foi detetado “qualquer esforço coordenado de fraude eleitoral a nível nacional, por correio ou de qualquer outra forma”. Nada que demovesse a Casa Branca das suas certezas.

Já há mais de duzentos processos em tribunal, em 43 dos 50 estados, contestando todo o tipo de regras e procedimentos eleitorais, relacionados não só com os votos por correspondência, mas também com outros problemas, como a escassez e a localização das mesas de voto. Em 2016, mais de meio milhão de eleitores não conseguiu votar por haver poucas mesas de voto — os eleitores negros e latinos têm muito mais probabilidade do que os brancos de ter de esperar numa fila mais de meia hora para votar, dizem vários estudos.

Razões de litígio não faltarão. Dinheiro também não: a CNN diz que o Partido Republicano reservou 20 milhões de dólares para estas batalhas legais.

A miragem vermelha e a viragem azul

Esta semana, a Atlantic tem um ensaio notável sobre os riscos da “eleição que pode partir a América” (o acesso é limitado, mas os primeiros três artigos são livres, por isso tente ler). Um conselheiro jurídico de Donald Trump, citado sob anonimato, deixa claro que os votos por correspondência contados depois da noite eleitoral serão provavelmente contestados como fraudulentos.

Porquê? Porque há a probabilidade de Trump acabar a noite em vantagem sobre Biden — mas depois, com os votos por correspondência, Biden virar o resultado. É o que os politólogos estão a chamar “miragem vermelha” (vermelho é e cor dos republicanos) — a miragem de uma vitória republicana que se pode desfazer conforme sejam contados os votos por correspondência, mais favoráveis aos democratas (a este efeito, os estudiosos chamam “viragem azul” — isso: azul é a cor dos democratas).

Em circunstâncias normais, os eleitores democratas costumam votar por correio mais do que os republicanos (terá a ver com serem mais urbanos e mais jovens, menos ligados ao ritual de votar presencialmente). Este ano, essa tendência será ainda maior, devido à pandemia. É sabido que os democratas se preocupam mais com o vírus do que os republicanos, com Trump a desvalorizar o distanciamento social e o uso de máscaras, e a demonizar o voto por correio. Resultado: metade dos apoiantes de Biden admitem votar por correspondência, e só um quinto dos eleitores de Trump tenciona fazer o mesmo.

Conclusão: A 3 de novembro os resultados do voto por correspondência poderão demorar a chegar- porque serão muitos mais do que é hábito, porque tem havido problemas com a capacidade de resposta dos Correios dos EUA, e porque grande parte dos estados não permite qualquer tratamento desses votos antes do dia das eleições. Ou seja, os votos por correspondência podem só ser contados nos dias seguintes.

Para se perceber melhor o que poderá estar em causa: nas primárias de Nova Iorque, em junho, os votos por correio foram dez vezes mais do que o habitual (apesar de milhares de pessoas não terem podido votar por não terem recebido os boletins e os envelopes); nalguns casos, os vencedores só foram anunciados um mês depois, quando todos os votos foram contados… Outro dado: nas primárias deste ano, 534 mil votos por correspondência foram anulados por diversas razões técnicas, com regras diferentes em cada estado…

O que acontecerá se Trump terminar a noite eleitoral com vantagem, mas temer uma reviravolta azul nos dias seguintes? Não é preciso especular. Há dois anos, nas eleições para o Senado e para o governo estadual na Flórida, os candidatos republicanos começaram com grande vantagem, mas essa margem foi encolhendo conforme iam sendo contados os votos por correspondência. Seis dias depois, com a contagem ainda a decorrer, Trump atacou no Twitter: exigiu que a contagem parasse e que os resultados fossem os da noite eleitoral (a contagem não parou, mas os republicanos venceram, embora por uma unha negra).

Imagine-se a tensão e incerteza sobre o resultado eleitoral, ao longo de dias ou semanas, num país tão dividido, com um presidente incendiário, e com o lastro de revolta que se tem visto em muitos locais, com confrontos, motins e gente armada nas ruas…

Contra a Covid: uma vacina e uma juíza

Se os resultados forem contestados, o mais provável é o caso acabar no Supremo Tribunal, como em 2000. Essa é uma das razões por que Trump tem mostrado tanta pressa em preencher o lugar deixado vago pela morte da juíza Ruth Ginsburg. “É melhor [aprovar o nome substituto antes das eleições] porque acho que este golpe que os democratas estão a preparar – é um golpe – o golpe vai acabar no Supremo Tribunal, e não é bom ter uma situação de 4-4”, disse Trump, referindo o voto por correio como “golpe”, e alimentando a ideia de que o tribunal tem quatro juízes conservadores e quatro progressistas (na verdade, só três foram nomeados por presidentes democratas – e serão seis republicanos se houver uma nomeação agora).

A outra razão da pressa de Trump é a necessidade de mudar o assunto da campanha.

A fragilidade de Trump na questão da pandemia é a maior dor de cabeça para o lado republicano. Os Estados Unidos já passaram os 202 mil mortos, há quase 7 milhões de casos de Covid-19, e o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) prevê mais 24 mil mortos nas próximas três semanas. A ser assim, a média de mortes continuará a subir — e os EUA nem saíram da primeira vaga.

Daí a pressão de Trump para acelerar o anúncio de uma vacina. Mesmo que para isso tenha de contrariar o que dizem os cientistas, como Anthony Fauci, que tem recusado a politização deste processo, e tenha de torpedear as instituições nacionais de saúde — depois de atacar o diretor do CDC quando este desmentiu as previsões presidenciais de uma vacina nas próximas semanas, esta semana admitiu desautorizar a autoridade americana do medicamento (FDA), que impôs guidelines mais exigentes para a autorização da vacina anti-Covid.

Curiosamente, a esmagadora maioria dos eleitores — tanto de direita como de esquerda — garante que o anúncio de uma vacina antes das eleições não seria relevante na hora do voto.

Mas Trump não se limita a dar todo o gás à futura vacina. Também faz o que pode para mudar de assunto. Até à semana passada o grande tema que Trump puxava para desviar atenções da pandemia era “LEI & ORDEM!” (assim, em maiúsculas, como escreve no Twitter). Esta semana, após a morte de Ruth Ginsburg, a juíza mais progressista do Supremo Tribunal, o assunto passou a ser a nomeação da sua substituta ainda antes das eleições.

Não é que o tema da “lei e ordem” já tenha dado o que tinha a dar. Pelo contrário, reacendeu-se esta semana, com uma nova vaga de protestos do Black Lives Matter e outros ativistas de esquerda contra a violência policial e o racismo sistémico, após o anúncio de que três polícias responsáveis pela morte de uma jovem negra, desarmada, que estava em sua casa, no início do ano, não seriam julgados por esse facto. Quando os protestos anti-racistas estavam a esmorecer, o caso Breonna Taylor (pode ler aqui a notícia do Público e aqui a explicação detalhada) reacendeu a revolta.

Mas o assunto do momento passou a ser o Supremo Tribunal. Este sábado Trump deverá anunciar que a sua escolhida para ocupar o lugar que era de Ruth Ginsburg é Amy Coney Barret, uma ultra-conservadora que garantirá ainda maior mobilização da base branca e conservadora de Trump.

Não se sabe que impacto terá nas eleições a morte de Ruth Ginsburg e a corrida dos republicanos para a substituir em tempo recorde no final do mandato presidencial (contrariando a opinião dos próprios republicanos, que há quatro anos impediram Obama de fazer o mesmo). Várias sondagens (como esta, da CNN) indicam que a maioria dos inquiridos preferia que o lugar no Supremo fosse preenchido pelo vencedor das eleições.

Os estudos de opinião também indicam que os eleitores de esquerda estão mais preocupados com a questão do Supremo do que os de direita – embora, tradicionalmente, este seja um tema mais mobilizador para os conservadores, sobretudo por causa do aborto. Mas, neste contexto de pandemia, em que as questões de saúde ganharam prioridade, o risco do Supremo declarar o Obama Care inconstitucional reforça os receios do eleitorado “liberal” (em novembro o assunto começa a ser julgado no Supremo). A ser assim, esta polémica pode mobilizar os apoiantes de Biden.

As hostes de Trump também se mostram muito animadas com a hipótese do atual presidente nomear um terceiro juiz em quatro anos de mandato. “Fill that seat” (preenche o lugar) é o cântico que se ouve nos comícios do inquilino da Casa Branca (em vez do tradicional “Lock her up”, pedindo – ainda!…- a prisão de Hillary Clinton).

Se as eleições acabarem por ser decididas pelos juízes, Trump sabe que toda a ajuda será pouca. E, como dizia esta semana o senador republicano Lamar Alexander, “a eleição pode ser sobre Trump, sobre a Covid ou sobre o Supremo Tribunal”. Entre um plebiscito a Trump, uma pandemia que já matou 200 mil americanos ou uma luta identitária de nós-contra-eles, a escolha é óbvia.

Nada como um veterano de Washington para por as coisas em perspetiva.

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