Jerónimo diz que não está a fazer “birra”, mas afirma que “o que está em cima da mesa não chega”. O Bloco, idem aspas, e fala em “anúncios fúteis” no Orçamento.
Todos os anos, por esta altura de entrega do Orçamento do Estado, repete-se o mesmo filme. À esquerda, reuniões intermináveis à porta fechada, conferências de imprensa com recados aos parceiros, traçam-se linhas vermelhas e apresentam-se cadernos de encargos. O filme normalmente termina com a aprovação do Orçamento para o ano seguinte.
Este ano, as negociações parecem estar mais emperradas, com mais areia na engrenagem da geringonça e com alguns insultos e desabafos públicos.
Jerónimo de Sousa diz que não fará “qualquer birra” relativamente à proposta de Orçamento do Governo, mas avisa que “o que está em cima mesa não chega” para viabilizar o documento. Nos últimos Orçamentos, os comunistas abstiveram-se ou votaram favoravelmente, e no Suplementar voltaram contra.
O Bloco de Esquerda aprovou os orçamentos de 2016, 2017, 2018 e 2019 e absteve-se nos de 2020 e no Suplementar de 2020. O partido já torceu o nariz a este Orçamento, colocando linhas vermelhas — como a do Novo Banco ou a da proibição de as empresas com lucros despedirem — que dificilmente o Governo irá aceitar.
À Antena 1, Catarina Martins foi cristalina: “Com aquilo que se conhece, não creio que o Bloco tenha condições para viabilizar o Orçamento”. Mariana Mortágua adjetivou o sentimento dos bloquistas ao falar em “fogachos”, “anúncios fúteis” e até de “propaganda” do Governo.
Mas, afinal, porque é que este ano está a ser tão difícil negociar o Orçamento?
1. Ficaram muitas medidas “penduradas” do OE2020
O PCP e o Bloco não gostaram que muitas medidas do Orçamento para 2020 tivessem ficado na gaveta e sem ver a luz do dia. Este “empurrar com a barriga” socialista foi visto pelos parceiros à esquerda como uma quebra de confiança.
Nas últimas semanas, o Governo tem-se apressado em colocar no terreno medidas que ficaram “penduradas” do OE2020. São elas:
- Descida do IVA na eletricidade a 1 de dezembro;
- Eliminação do fator de sustentabilidade nas profissões de desgaste rápido;
- Mais profissionais para o Serviço Nacional de Saúde;
- Subsídio extraordinário de risco para profissionais de Saúde que lidam com a Covid-19;
- Rendimento dos filhos deixa de contar para o Complemento Solidário de Idosos do 2.º e 3.º escalões;
- Fim dos vistos gold em Lisboa e no Porto (sendo que neste último caso, aparentemente, a medida continua sem ver a luz do dia).
2. Negociar temas fora do OE à mesa do OE
Foi há duas semanas, à entrada para um concerto de Pedro Abrunhosa, que António Costa afirmou que estava a trabalhar no Orçamento para 2021 com todos os partidos parlamentares, e “com alguns deles, na perspetiva de termos um horizonte mais estável, no horizonte da legislatura”. Mas, como diz a música de Pedro Abrunhosa, os parceiros da geringonça “voaram em contramão”.
À esquerda, nem Bloco, nem PCP deram sinais de querer negociar um compromisso para um horizonte temporal tão alargado. Mas ao abrir o horizonte, António Costa permitiu que mais temas fora do Orçamento “contaminassem as negociações”.
Esta abertura permitiu que a esquerda colocasse na mesa de negociações várias matérias relacionadas com o Código de Trabalho, algumas das quais sem qualquer ligação ou impacto no Orçamento. A discussão sobre o aumento do salário mínimo nacional, que não costuma fazer parte do “menu” orçamental, este ano também subiu à mesa das negociações à esquerda, com o Governo a prometer um aumento de 23,75 euros. “Insuficiente”, disseram PCP e BE.
Outro tema a “contaminar” o Orçamento é o Novo Banco. A partir do momento em que o Governo aceitou não emprestar dinheiro ao Fundo de Resolução para o Novo Banco, este assunto deixou de ter ligações ao Orçamento. Só que o Bloco de Esquerda insiste em resolver o tema na mesma mesa onde está a negociar o OE.
Marcelo Rebelo de Sousa já veio tentar tirar o Novo Banco da agenda para evitar contaminar o OE com um tema que é tóxico: “Eu penso que isso não é um tema do Orçamento para 2021. Será um tema que a Assembleia da República debaterá à parte, autonomamente”, afirmou o Presidente da República quando visitava o Antigo Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.
3. A falta de Pedro Nuno Santos
Há duas semanas, no debate no Parlamento sobre o plano de António Costa Silva, Catarina Martins foi clara: “Estamos a pouco mais de duas semanas da entrega pelo Governo da sua proposta de Orçamento do Estado para 2021 e nada se sabe”.
Não tem sido normal nos orçamentos da anterior legislatura deixar os parceiros “às cegas” durante tanto tempo.
Na anterior legislatura, na versão geringonça 1.0, Pedro Nuno Santos era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e tinha a responsabilidade de intermediar as negociações à esquerda. E teve sucesso. Bastante.
Nesta legislatura — geringonça 2.0 — Pedro Nuno Santos subiu a ministro e deixou a tarefa de fazer pontes com a esquerda com Duarte Cordeiro. São da mesma escola, mas Pedro Nuno Santos, com a geringonça e com temas quentes como a TAP e a greve dos motoristas, mostrou que sabe negociar e fazer pontes como poucos.
Além disso não esconde o seu posicionamento mais à esquerda. Quando António Costa desistiu de apresentar um candidato oficial socialista às presidenciais, Nuno Santos foi categórico ao dizer que não votava em Marcelo e que iria votar no candidato do PCP ou do Bloco se nenhum socialista se apresentasse à corrida.
4. A falta de um acordo escrito
Para Marcelo Rebelo de Sousa, “miniciclos orçamentais de desfecho imprevisível” prejudicam uma recuperação “de médio e longo prazo”.
Ao não exigir, como exigiu o seu antecessor Cavaco Silva, um acordo escrito para a legislatura, o próprio Presidente da República abriu a porta a estes “miniciclos orçamentais de desfecho imprevisível”.
Também não foi por culpa do Bloco de Esquerda que não houve um acordo escrito para a legislatura. Foi o único partido à esquerda a abrir essa porta que o PS enjeitou. Curiosamente, na altura, os temas que inviabilizaram um acordo foram os mesmos que estão agora a emperrar a negociação do Orçamento, nomeadamente a exigência que as indemnizações por despedimento regressem ao que eram antes da troika.
O acordo de incidência parlamentar que Cavaco Silva obrigou a gerigonça a assinar englobava temas abrangentes como o salário mínimo, reversões de medidas de austeridade como a sobretaxa, a TSU, a lei laboral, a criação de grupos de trabalho temáticos e até uma obrigação de os partidos “encetarem o exame comum quanto à expressão que as matérias convergentes identificadas devem ter nos Orçamentos do Estado, na generalidade e na especialidade”
5. Uma aproximação excessiva ao PSD
No último Orçamento aprovado, o Suplementar de 2020, os socialistas viabilizaram várias medidas do PSD, tais como a do apoio aos sócios gerentes; e o bloco central juntou-se várias vezes para travar maiorias negativas, nomeadamente no tema do IVA da luz.
Esta aproximação não caiu bem na Rua da Palma nem na Soeiro Pereira Gomes. Das duas ruas ouviram-se remoques.
O PCP falou de “convergência notória” entre PS e PSD e o Bloco avisou que os “avanços alcançados com as votações convergentes de PS e PSD impediram alterações mais substanciais na especialidade do Orçamento Suplementar”.
A votação do Orçamento na generalidade acontece a 28 de outubro e ainda é uma incógnita se e como é que Orçamento irá passar.
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Porque é que está a ser tão difícil negociar este Orçamento?
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