João Correia queria criar de raiz uma equipa portuguesa de F1. Seriam necessários 95 milhões de euros para dar início a um projeto que não passou disso por causa do Acordo da Concórdia.
O mundo da Fórmula 1 é o mais exclusivo do automobilismo e um dos mais restritos do planeta, mas um engenheiro português não se deixou atemorizar por isso e colocou as mãos à obra para montar uma equipa de cunho português, um sonho de criança, mas o seu projeto acabou travado pelo novo Acordo da Concórdia.
João Correia, de trinta e sete anos, é natural de Évora, mas desde tenra idade tinha no automobilismo a sua paixão, o que o levou planear a sua vida académica para se aproximar o mais possível da rarefeita atmosfera que é o desporto automóvel.
Depois de licenciatura e mestrado em engenharia aeronáutica na Universidade da Beira Interior, o eborense tirou o doutoramento em aerodinâmica na Universidade de Cranfield, Inglaterra, mas então tinha já chegado ao ansiado planeta do automobilismo, fazendo parte de equipas de A1 GP, World Series by Renault, Auto GP, American e European Le Mans Series, como engenheiro de pista.
Em 2013, João Correia seria uma das personagens centrais da Super Aguri, na Fórmula E, equipa que permitiu a António Félix da Costa, o Campeão em título da categoria, a sua estreia na competição.
Mas o chamamento da Fórmula 1 era forte e em 2015 o engenheiro aerodinâmico rumou à categoria máxima do desporto automóvel para se juntar à Manor F1, onde permaneceu até ao se fecho, em janeiro de 2017.
Foi então que o português, catalisado por um conterrâneo, começou a trabalhar num projeto audacioso e que prometia ter um caminho tortuoso: criar de raiz uma equipa portuguesa de Fórmula 1. “Desde miúdo que queria ter uma equipa e, em conversa com o Rui Pinto, quando a Manor entrou em falência, ele propôs a ideia, estando otimista de que conseguiríamos obter os apoios. O nosso lema foi ‘o não está garantido’ (se não tentares), e assim, quase como uma aposta, arrancámos com o projeto”, afirmou-nos João Correia.
Rui Pinto, um português com passado comercial e de marketing de topo em multinacionais farmacêuticas foi o agente desafiador, e estaria incumbido de todos os aspetos comerciais, ao passo que o engenheiro português teria ao seu cargo toda edificação do projeto da estrutura dedicada exclusivamente às corridas.
A Correia Racing teria um forte cunho luso, tendo como objetivo mostrar o que de melhor se faz no nosso país e, para isso, teria a sua sede em Portugal, contando com cerca de 135 colaboradores, sendo 75% dos quais portugueses.
Os restantes seriam estrangeiros, não porque dentro de fronteiras não existam técnicos capazes, mas porque para colocar em pista dois carros de Fórmula 1 é preciso experiência, havendo ainda pouca massa crítica suficiente no nosso país.
João Correia estimava que, para o novo regulamento que entrará em vigor em 2022, seriam necessários pouco mais de 95 milhões de euros para dar início ao projeto, o que permitiria edificar a equipa, conceber e construir os monolugares, e participar na primeira temporada da sua existência.
A maior fatia do budget, uns massivos 41%, seria dedicada à pesquisa, desenvolvimento e construção dos dois carros, sendo o chassis, totalmente em carbono, realizado no estrangeiro, mas com o objetivo de que, com o decorrer do tempo, tudo fosse construído em Portugal, à medida que fosse reunido know-how no nosso país que pudesse dar as garantias necessárias para as exigências de uma equipa de Fórmula 1.
O desenvolvimento em túnel de vento seria realizado em Inglaterra, na Mercedes ou na Williams, uma vez que qualquer uma destas duas equipas têm duas ferramentas destas, alugando uma delas a equipas rivais.
As unidades de potência seriam também adquiridas a um fornecedor externo, estando no mercado a Mercedes, a Ferrari e a Renault. Contudo, a primeira tem quatro equipas a seu cargo a partir do próximo ano, o que obrigaria, seguramente, a Correia Racing a escolher entre uma das outras duas.
A segunda maior fatia do budget estaria dedicada aos colaboradores. Uma equipa de Fórmula 1 requer mão-de-obra muito especializada e, claro, isso paga-se, e bem, levando os 135 colaboradores 17% dos 95 milhões previstos para os dois primeiros anos da existência da formação portuguesa.
A logística e transporte seria a terceira coluna que mais exigia do orçamento, quase quinze milhões de euros. Transportar à volta do globo dois carros, todos os componentes e pessoal necessário não é fácil, sobretudo ao ritmo a que as corridas se vão sucedendo, colocando uma pressão financeira em todas as equipas e a Correia Racing não era exceção.
“O orçamento estava dimensionado para 21 meses, arrancando em março de 2021. Durante o primeiro ano apenas desenharíamos o carro, incluindo trabalho de túnel de vento”, afirmou-nos João Correia, que acrescentou: “No arranque da temporada de 2022, chegaríamos aos 135 funcionários (75% mão de obra nacional e os restantes 25% estrangeiros). Teríamos em cada corrida 4 a 5 pessoas locais a ajudar, ligadas ao catering”.
Para colocar tudo isto em marcha, eram necessários investidores, mas não poderia ser qualquer um.
Teriam de ser empresas com a capacidade financeira para poderem fazer vingar uma equipa de Fórmula 1 e com um nome forte no mercado que pudesse dar confiança a todo o projeto. Para além disso, sendo um projeto gizado sob a bandeira portuguesa, os investidores teriam de ser oriundos do nosso país.
Existia um plano bem definido para que a Correia Racing fosse uma realidade. Antes de mais, assegurar 20 a 30% do orçamento e garantir que o retorno para os investidores superasse dos 40% do orçamento, sem sequer entrar com a exposição televisiva, uma vez que isso seria um fator que a estrutura não poderia garantir.
"Nenhum parceiro era considerado um patrocinador, mas sim um parceiro, ganharíamos e perderíamos juntos. Desejávamos criar uma família unida por uma bandeira e focada num projeto nacional.”
Foi com este plano que os primeiros contactos foram realizados e até foram auspiciosos, dando força ao projeto. “O que eu e o Rui acordámos foi que contactaríamos três empresas na fase inicial e, se não tivéssemos respostas positivas de todas elas, cancelaríamos o projeto. Preparámos as apresentações e reunimo-nos com todas elas e as três garantiram-nos o apoio… Por isso, decidimos continuar”, afirmou João Correia.
Para esta sedução dos investidores iniciais foi preponderante o modelo para gerar retorno. “Pretendíamos que o retorno gerado nas transmissões oficiais fosse apenas a cereja no topo do bolo. Tínhamos de garantir o retorno de outras formas. Em mente tínhamos um documentário de 18 episódios (30 minutos por episódio, um por mês) a seguir os bastidores da equipa. Planeávamos, também, acordos com medias de modo a acompanharem a equipa, a preparação física dos pilotos, assim como com revistas cor-de-rosa”.
Tínhamos previsto realizar um roadshow da equipa que iria a 12 instituições de ensino superior para dar palestras de um dia em cada, tendo como temas organização, gestão de uma equipa e engenharia”, apontou o eborense, que acrescentou: “Nenhum parceiro era considerado um patrocinador, mas sim um parceiro, ganharíamos e perderíamos juntos. Desejávamos criar uma família unida por uma bandeira e focada num projeto nacional”.
Por detrás da paixão pelas corridas de automóveis, estava também o desejo patriótico de tornar a equipa numa montra para a tecnologia e a engenharia que temos no nosso país. “O nosso principal objetivo era promover Portugal e mostrar que temos capacidade para projetos de ponta. O retorno gerado ultrapassava significativamente o custo do investimento de cada empresa. Todos os apoios eram moldados aos parceiros e havia muitas atividades de networking e parcerias comerciais entre as empresas que nos apoiavam”, sublinhou João Correia.
Os 200 milhões euros acabam com todas as equipas privadas, como foram a Jordan, Sauber, Minardi, Manor, etc, que tantos pilotos e novos engenheiros trouxeram para a Fórmula 1. Deixou de haver uma equipa onde os pilotos com menos experiência possam começar.
No entanto, depois dos bons contactos iniciais, o projeto esbarrou na relutância de algumas companhias portuguesas em abraçar um desafio que as levaria até ao grande palco mundial do automobilismo, que alcança mais de 600 milhões de pessoas à volta do globo, e promove a excelência em todas as áreas. “Parámos em meados de 2019… Com a esperança de que um dia fosse possível voltar. Depois das primeiras reuniões muito positivas, não conseguimos mais nenhuma empresa que mostrasse interesse. Uns diziam que a ‘Fórmula 1 deve ser cara, não queremos’, outros diziam ‘não se enquadra no nosso plano de marketing’”, disse João Correia com ponta de desânimo.
Porém, a estocada final na Correia Racing viria das atuais equipas que militam na categoria máxima. Com a assinatura do mais recente Acordo da Concórdia, que entrará em vigor no próximo ano, qualquer nova estrutura, para ingressar no Campeonato do Mundo de Fórmula 1, terá de pagar 200 milhões de euros de fee de inscrição à FOM que, depois, os distribuirá a cada uma das equipas presentes equipas em fatias iguais.
Para além de terem de garantir toda a capacidade financeira para edificar uma estrutura de raiz capaz de competir num dos mais profissionalizados campeonatos do mundo, qualquer novo projeto tem de reunir, à cabeça, uma quantia milionária, o que colocou, na prática, um ponto final na Correia Racing e de todos os outros projetos que se perfilavam no horizonte.
“Os 200 milhões euros acabam com todas as equipas privadas, como foram a Jordan, Sauber, Minardi, Manor, etc, que tantos pilotos e novos engenheiros trouxeram para a Fórmula 1. Deixou de haver uma equipa onde os pilotos com menos experiência possam começar”, enfatizou o engenheiro português que atualmente trabalha na GEOX Dragon, equipa da Fórmula E.
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Sonho da equipa portuguesa de F1 derrubado pela inscrição de 200 milhões
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