Um novo resgate bancário?
A solidez da banca constituirá um dos principais riscos macroeconómicos e orçamentais em 2021 e o risco de insuficiência de capital nos bancos não deve ser menosprezado.
Foi há dias que o Conselho de Finanças Públicas (CFP) pôs o dedo na ferida. Segundo o CFP, as moratórias de crédito impostas pelo Governo à banca poderão “[implicar] perdas para o sistema financeiro Português e obrigar à intervenção do Estado através de apoios financeiros”. A conclusão não me surpreende, ou não tivesse sido este o assunto (e a conclusão) do meu artigo da semana passada aqui no ECO (“Uma bomba relógio?”).
Como é referido pelo CFP, o risco orçamental que decorre das moratórias de crédito existe mesmo, não é académico, e não está de forma alguma salvaguardado na proposta de Orçamento do Estado para 2021. De resto, não são apenas as moratórias de crédito que ameaçam o balanço dos bancos (e do Estado) em 2021; são também as linhas de crédito com garantia pública, nas quais, não existindo garantia estatal sobre a totalidade do crédito concedido, os bancos (e o Estado) também terão capital em risco.
Sobre tudo isto, também esta semana, numa conferência dedicada à “Banca do Futuro”, os presidentes executivos dos principais bancos portugueses desvendaram sem grandes pruridos os riscos de malparado que vislumbram no horizonte. Um deles, o presidente executivo do Santander, afirmou que “na Europa arriscamo-nos a viver uma década de moratórias”, adiantando o próprio que se tivesse 30 anos estaria muito preocupado com a situação.
Outro, o presidente executivo do BCP, defendeu “a criação de um fundo soberano para ajudar as empresas”, transformando linhas de crédito com garantia do Estado em participação pública no capital das empresas. Outro ainda, o presidente executivo do Novo Banco, optou por uma afirmação em jeito de “understatement” – disse o responsável que “o adiamento de decisões pode ser razoavelmente complexo para Portugal” (!) –, resumindo assim o que havia para dizer.
Por fim, o presidente executivo da CGD que, não tendo também faltado à chamada, logo se posicionou para liderar um novo movimento de concentração bancária “porque, se houver consolidação, a Caixa é claramente ultrapassada por outros bancos. (…) precisamos de dimensão para ser um banco público”. E nada melhor do que o banco público – com dimensão, pois claro! (e com uma mãozinha sempre junto ao bolso dos contribuintes) – para subsidiar a concentração bancária num mercado como o português que, face à média europeia, já evidencia concentração em excesso.
Enfim, as conferências sobre a “Banca do Futuro” em Portugal – sem desprimor para a organização –, para além de tertúlias entre amigos, assemelham-se cada vez mais a conferências sobre a banca não do futuro, mas sim do passado. Enquanto em Portugal se planeia o afunilamento do sector bancário, lá fora os “digital challengers” crescem e vão conquistando mercados não só pela eficiência das suas operações, mas também pelas novas abordagens que trazem à actividade bancária.
É o caso da Ant Financial, o braço financeiro do grupo Alibaba, que por estes dias está a fechar o maior IPO de sempre da história dos mercados de capitais – levantando 35 mil milhões de dólares pela venda de 11% da empresa, cujas acções passarão a cotar em Xangai e Hong Kong – e que simboliza essa mudança de paradigma bancário. Sobre isto, são de atentar as afirmações de Jack Ma, o fundador da Alibaba, segundo as quais “os acordos de Basileia são como um clube de gente envelhecida (…) não podemos usar os métodos do passado para regular o futuro”, sugerindo Ma que a banca tradicional deveria abandonar a mentalidade de “loja de penhor” em favor de práticas de avaliação de risco baseadas em “big data”. Mesmo dando o devido desconto, a alguém que está a vender uma ideia em causa própria, Jack Ma não deixa de ter muita razão.
Regressando ao Velho Continente, não é só em Portugal que vão surgindo ideias sobre como melhor transferir o risco de crédito da banca para a órbita do Estado. Também no centro da Europa se discutem ideias afins.
Na cúpula do Banco Central Europeu (BCE) discute-se novamente a ideia de um (ou de vários) bancos maus na Europa. Andrea Enria, que até há bem pouco tempo era presidente da Autoridade Bancária Europeia (EBA) e que agora é presidente do conselho de supervisão do BCE, sugere a criação de uma sociedade supranacional de gestão de activos que, beneficiando de financiamento público europeu, absorvesse o crédito malparado da banca europeia.
Como alternativa ao modelo supranacional, sugere ainda Enria, o mesmo propósito poderia ser servido pela criação de sociedades idênticas limitadas à escala nacional de cada país, mas beneficiando igualmente de recursos públicos. A concretizar-se, numa versão ou noutra, esta ideia provavelmente abriria caminho para o maior resgate de sempre do sector bancário. Uma oportunidade para começar de novo, dirão alguns, mas um começar de novo sempre a expensas dos contribuintes – dos de hoje e dos de amanhã – e, mais ainda, cristalizando o sistema de incentivos que nos trouxe até aqui. A meu ver, independentemente das eventuais boas intenções, tratar-se-ia de uma opção profundamente errada. Ou seja, de “moral hazard” à enésima potência.
Na minha opinião, o caminho a seguir não passa pela colectivização dos prejuízos nem pela redução da concorrência. Não precisamos de bancos maus nem de fundos soberanos, e também não precisamos de maior concentração bancária. Aquilo de que precisamos é de maior atenção ao que se faz lá fora, de maior concorrência, e de abrir o mercado bancário nacional à inovação. É fazer como têm feito vários países por esse mundo fora, sobretudo fora da Europa, através da concessão proactiva de licenças a novos operadores que queiram estabelecer-se de forma 100% digital (v.g., “digital banks”) e da criação das chamadas “regulatory sandboxes” para a realização de experiências com novos formatos e novos produtos, reformando para tal os processos e requisitos administrativos de supervisão que também terão de evoluir para a era digital (v.g., regtech).
Ao mesmo tempo, enquanto se incentiva essa transição, que será sempre um esforço de médio prazo, será necessário manter no curto prazo algum nível de garantia pública às linhas de crédito bancário, reduzindo, contudo, os plafonds cobertos pelas garantias, com vista ao seu “phasing-out” à medida que a economia for saindo da crise e que novos operadores financeiros forem entrando em Portugal. Quanto às moratórias de crédito, estas deveriam ser levantadas rapidamente conforme escrevi na semana passada.
Há neste momento uma grande pressão sobre os políticos no sentido de estes evitarem a onda de falências e de incumprimentos bancários que se avizinham. A pressão não se limita a Portugal. Em Itália, por exemplo, o governo de Conte, estimulado pelas ideias de gurus como Mariana Mazzucato, tem andado entretido a injectar dinheiro público em diferentes tipos de empresas, desde buracos de grande dimensão como a Alitalia (o novo “role model” da TAP) a buracos de pequena dimensão incluindo, por exemplo, empresas fabricantes de cuecas. O propósito do Estado já não é apenas salvar as empresas da ruína financeira. Agora, o propósito do intervencionismo estatal é ainda mais ambicioso: é transformar as empresas! É elevar a ideia do “entrepreneurial state” de Mazzucato à potência máxima, sem julgamento e potencialmente sem escrutínio também. Em Itália, em Portugal, na Grécia, entre outros do costume, está-se mesmo a ver aonde isto vai levar…
Por tudo isto, é fundamental que os mecanismos de apoio às empresas sejam muito bem pensados. Não basta que alguém diga que há ali algures uma empresa viável, infelizmente sem acesso a financiamento, para que o Estado desate a correr a fim de lá ir meter dinheiro.
É preciso que haja, primeiro, lugar, a processos de insolvência e/ou de revitalização, seguidos da recapitalização das empresas com recursos próprios dos seus accionistas ou sócios, mostrando assim convicção nos planos de recuperação das empresas, e só então, de forma acessória e com muito escrutínio, o Estado.
É uma recomendação que faço em particular à futura equipa de gestão do Banco Português de Fomento (BPF), sobre a qual já escrevi em “E que tal muitos fundos de recapitalização”, artigo no qual propus a criação de “fundos de recuperação pós-PER” (uma proposta que foi aproveitada pelo PSD no seu recente “Programa Estratégico 2020/2030”, infelizmente a par de outras propostas menos boas como a do fundo soberano que aproxima o PSD do plano Costa Silva do PS), para que o BPF não se torne rapidamente num banco mau e ele próprio parte integrante de um novo resgate bancário.
Em suma, a solidez da banca constituirá um dos principais riscos macroeconómicos e orçamentais em 2021. É facto que nos últimos anos os bancos fizeram esforços relevantes de limpeza de balanços, mas em face da dimensão da recessão e dos golpes autoinfligidos pelos governantes, mormente no domínio do prolongamento das moratórias de crédito, o risco de insuficiência de capital nos bancos não deve ser menosprezado. Bem pelo contrário. A isto acresce um sector que permanece agarrado ao modelo bancário do passado, que está anquilosado, e que continua a não ser solução suficiente para o problema de financiamento que desde há muito Portugal enfrenta.
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