As liberdades cívicas sob ameaça
Com a vigilância efetuada a dois jornalistas, reforçou-se mais um precedente grave em Portugal – que continua a patentear um grave défice de cultura democrática.
Esta semana descemos mais um degrau no respeito pelas liberdades democráticas, com a revelação de que dois jornalistas foram seguidos por ordem de uma procuradora adjunta. Espiar movimentos de jornalistas e violar contas bancárias por mero exercício do dever de informar é próprio de países com claros défices democráticos.
A justiça nunca conviveu bem com as violações do segredo de justiça, o que é compreensível – mas nunca será tolerável que isso conduza a atropelar liberdades constitucionalmente consagradas. Isto é óbvio de dizer? É. Então porque é que se continuam a acusar jornalistas de violação do segredo de justiça, chegando ao extremo de vigiar e violar a privacidade dos mesmos? Dizer que se fez porque se pode, como efetivamente o Ministério Público concluiu, não chega. Até porque se pode, não devia poder. Bem esteve a PGR, tal como o Presidente da República. Mas isso não chega.
O trabalho pedagógico tem de ser permanente, porque a liberdade de imprensa é constantemente ameaçada. Portugal tem obviamente um problema com o reconhecimento do serviço jornalístico. Apesar do orgulho que temos na nossa revolução democrática e das exigências consagradas na Constituição, as instituições nacionais ainda não têm a solidez necessária que lhes permita servir melhor o cidadão. E esse problema está longe de estar confinado à justiça, às vezes até é a justiça que se presta a apoiar os jornalistas na sua missão de informar.
Uma das áreas em que isso é mais notório é no acesso à documentação produzida por entidades públicas – que, recorde-se, existem para servir os portugueses. Os documentos produzidos no decorrer da atividade pública são dos cidadãos, não pertencem às instituições que os produzem. À parte os deveres de confidencialidade e exigências de segurança, há muito poucas razões para recusar partilhar documentos oficiais. Mas a falta de transparência das instituições públicas portuguesa é endémica e os exemplos recentes do covid-19 não ajudam. As nossas leis de transparência ficam a milhas das praticadas em democracias mais avançadas, como as nórdicas, mas mesmo assim as nossas instituições desconhecem as práticas juridicamente consagradas e ignoram os seus deveres.
O melhor-pior exemplo de tudo isto, infelizmente, vem de cima: o atual primeiro-ministro protagonizou o mais triste exemplo deste século no que toca à recusa de cedência de informação oficial a jornalistas. A história conta-se depressa: em 2011, o jornalista José António Cereja, do Público, pediu o acesso a um relatório elaborado na Câmara de Lisboa – de que António Costa era presidente. A CML recusou. O Público solicitou um parecer à Comissão de Documentos Administrativos que, fundamentando-se na Lei de Acesso aos mesmos, confirmou a validade do pedido. A CML continuou a recusar. Seguiu-se uma queixa em tribunal que o jornal venceu na primeira instância, de que a CML recorreu. Tendo perdido o recurso para o Tribunal Central Administrativo, a Câmara liderada por António Costa ainda fez um recurso para o Supremo Tribunal, que também perdeu. No total foram quatro ações judiciais perdidas – sempre com os meios públicos a pagar recursos sobre recursos.
Perderam-se quase três anos mas deu-se uma lição de democracia e liberdade, coisa que pelos vistos precisa de ser recordada frequentemente. Basta ver a forma como decorreu o acesso à informação disponível na escolha para o procurador europeu para se perceber que está ainda muito por fazer no serviço público.
Ler mais: Às vezes é preciso recomendar uma leitura mais seca e este é um desses casos: a legislação que determina o acesso à informação administrativa deveria ser ensinada em todos os cursos superiores de comunicação social e de administração pública – embora suspeite que não o seja em nenhum…
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