A possibilidade de uma nova internet
O criador da World Wide Web quer acabar com os abusos de privacidade e por isso propôs um novo modelo para a rede global.
O homem que inventou a internet quer reinventá-la. Tim Berners-Lee, o cientista que apresentou a ideia da internet ao mundo, quer cumprir a sua visão original e recuperar a internet para os utilizadores. O que está em causa é muito mais do que um ataque às mega-empresas que comandam a internet: é uma visão filosófica sobre o desenvolvimento da humanidade.
A internet que foi anunciada em 1989 baseava-se em protocolos abertos que permitiam a comunicação mas também a edição de informação. Isto implica a gestão de permissões, como sabe qualquer pessoa que já partilhou um documento online. E as permissões implicam uma identidade única – que foi exatamente o que criaram as redes fechadas como o Facebook, o Twitter, a Apple, a Amazon e muitas outras. Daqui nasceram dois problemas:
- O abuso dos dados pessoais, com a venda dos perfis dos utilizadores a anunciantes e a massificação da internet num gigantesco cartaz publicitário;
- A recusa de partilha de informações entre redes, configurando aquilo que é conhecido como um “jardim fechado” (porque a informação que corre dentro de uma rede não é partilhada com outras redes e só a custo o é com o próprio utilizador).
Ora, Berners-Lee propõe devolver a propriedade dos dados a quem os cria e a sua responsabilização pela gestão da informação. Isto aumenta os protocolos de privacidade, mas acima de tudo inverte a propriedade e devolve a justiça (e a equidade) no negócio da internet. A primeira consequência seria o fim da cultura do clique como mecanismo de validação “do que funciona”, visto que o valor da publicidade seria muito menor que hoje. E também tornaria muito mais difícil a um estado controlar os cidadãos através dos seus dados, como já ocorre hoje na China.
A ideia de base do projeto chamado Solid é bastante simples de explicar. Implica imaginar uma caixa virtual onde os utilizadores colocam tudo o que se refere à sua identidade digital: os dados pessoais, os sites que visita, as pessoas com quem comunica, as informações de saúde, etc.
Essa caixa é chamada Pod, gerida através de padrões abertos de gestão e de controlo centralizado – a cada momento, o utilizador pode optar por partilhar partes da sua identidade digital com outras pessoas ou entidades. E isto sem nunca perder o controlo dos seus dados, sabendo sempre exatamente quem teve acesso a quê e quando. Ou seja, todos os serviços que hoje utilizamos continuariam a existir, mas o controlo dos dados partilhados passava a estar efetivamente sob o domínio do seu utilizador.
Um caso em que esta ideia está já a ser usada é precisamente um dos tópicos mais preocupantes no que toca à gestão dos dados pessoais. Os dados clínicos dos cidadãos estão hoje cada vez mais acessíveis a diversos operadores e o potencial de abuso existe: nos Estados Unidos já pode ser negado um seguro de saúde com base em dados recolhidos pelas pulseiras de fitness, por exemplo. E a Solid já está a ser usada num projeto piloto com o sistema nacional de saúde britânico para testar a eficiência na gestão de dados clínicos – cuja propriedade fica sempre do lado do utilizador.
Hoje a contestação ao atual modelo da internet está a fazer-se sentir através da pressão política e do esforço de regulação que se vê na Europa, nos Estados Unidos e na austrália. Mas é possível atingir os mesmos resultados através da estimulação de ideias de negócio que vão contra a norma vigente. Em causa está também a oportunidade de negócio: uma nova internet abre caminho a um novo mundo de software que aproveite esta nova arquitetura.
O potencial de criação de aplicações é quase infinito – aproveitando todos os dados públicos e explorando os dados que cada indivíduo opte por ceder em função dos seus interesses. E, com tecnologias como a realidade aumentada a chegar rapidamente, este esforço faz ainda mais sentido e é ainda mais urgente. É comum falar das grandes vantagens deste ou daquele produto digital, exaltando virtudes de algo que pouco inova. Menos comum é ter acesso a algo que pode efetivamente mudar o nosso mundo. E como hoje somos todos digitais, mudar a internet tal como a conhecemos é mesmo equivalente a mudar o mundo.
Ler mais: Arwen Smith é uma investigadora que se dedica a estudar o lado ético das questões tecnológicas, especialmente no que toca à relação entre dados pessoais e identidade. O seu livro Identity Reboot é um contributo para essa discussão.
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