A “incoerência” liberal

  • Gonçalo Levy Cordeiro
  • 20 Março 2021

Difícil, difícil é ser socialista e coerente. É mesmo caso para dizer: “Os socialistas já não aguentam a crise. Os (neo)liberais que os ajudem”.

Foi com alguma surpresa que li a última coluna de Pedro Sousa Carvalho. O meu espanto começou logo com o título e terminou com a frase que finda o texto que diz, e cito, que “nos tempos que correm, em que o único cofre cheio é o do Estado, não é tarefa fácil e coerente ser-se liberal”, especialmente porque esta frase demonstra não só desconhecimento do que é ser liberal (já lá iremos), mas também desconhecimento do estado dos cofres do Estado.

Ora dando de barato a dissonância entre as declarações do ex-candidato da IL à CML no título da entrevista sobre a TAP e as propostas do partido (apesar de uma leitura mais aprofundada da entrevista, mostrar outra pintura), eu diria que as incoerências terminam aí. Qualquer outro tipo de incongruência entre aquilo que o liberalismo preconiza e aquilo que os liberais defendem só poderá refletir uma interpretação distorcida do que é ser liberal ou do que é o liberalismo.

Comecemos por desmistificar o papel do Estado nesta pandemia e a visão liberal sobre o mesmo. Vamos lá ver se nos entendemos de uma vez por todas: os cafés, restaurantes, livrarias, cabeleireiros e demais sectores de actividade que estão a extinguir-se a cada dia que passa, não o fazem por incompetência na gestão dos sócios-gerentes, mas sim porque o Estado os obrigou a fechar portas fruto do eterno estado de emergência em que nos encontramos. Um liberal defende o primado da responsabilidade, portanto se o Estado obriga as actividades a fechar, esse mesmo Estado tem a obrigação de ressarcir os agentes económicos pelos prejuízos que os obrigam a incorrer. Tout court. Se num estado de emergência o cidadão tem o dever de cumprir o que é decretado pelo Estado, esse mesmo Estado tem a responsabilidade ética e moral de apoiar aqueles que impede de subsistirem através do fruto do seu trabalho. Esta verdade é insofismável. Dizer que um liberal é incoerente ao defender isto, é como dizer que um socialista é incoerente ao defender um estado de emergência que suspende o direito à greve: pode dar um bom soundbite, mas não passa de um exercício da mais pura hipocrisia demagógica.

Agora que já tirámos este ponto “polémico” do caminho, comecemos por definir um liberal através daquilo que ele não é. O que eu vou dizer já devia ser óbvio por esta altura, mas pelos vistos carece de ser reiterado: um liberal não é um anarca. Os anarcas desejam a inexistência de qualquer estrutura hierárquica numa sociedade, ou seja, o fim do Estado. O étimo da palavra “anarquia” vem do grego anarkhos, i.e., “sem chefe”. Porém, quem ouça os sofismos propalados por “Socialistas & Ca.” julga que os liberais almejam uma utopia absurda onde o Estado não tem qualquer tipo de papel. Nada poderia estar mais longe da verdade. Os liberais não desejam o fim do Estado, mas sim um Estado circunscrito no seu raio de acção àquilo que são as suas áreas essenciais, ou seja, um Estado pequeno, mas forte.

Impõe-se por isso a questão: quais são as áreas essenciais para estes “incoerentes” liberais? Ora, simplificando, há cinco áreas onde os liberais não só acham, como defendem que o Estado tem de intervir: Defesa, Justiça, Segurança, Educação e Saúde. Nas três primeiras áreas, o Estado deve ter um poder monopolista. Isto não quer dizer que não deve haver iniciativa privada nestas áreas (e.g. seguranças privados). Quer dizer sim que militares, juízes, polícias e outros que tais têm, num Estado de Direito, de trabalhar sob a alçada do Estado por uma questão de independência dos poderes que podem exercer sobre os cidadãos. Por outro lado, a Educação e a Saúde são áreas onde o Estado tem de interferir, porque faz parte das suas funções igualar oportunidades (atenção: oportunidades não são resultados). Providenciar serviços universais de saúde e educação é essencial, pois há de facto pessoas cujo estado permanente de pobreza crónica não lhes permitirá ascender na vida sem estes apoios. Contudo, é de realçar que as cinco áreas por mim referidas não incluem bancos, televisões, rádios, companhias aéreas, empresas de transporte ferroviário, entre outras. Fica a nota.

Fora das supra-referidas áreas, a função do Estado para um liberal não é interventiva, mas sim reguladora. O foco do Estado deve ser o de imiscuir-se o mínimo possível na iniciativa privada, permitindo aos cidadãos a livre associação e a livre perseguição dos seus objectivos pessoais e profissionais, i.e., promover a liberdade individual. Isto só poderá ser feito se definir de forma clarividente as “regras do jogo”, através de leis simples (o oposto do que é, por exemplo, o Código de IRS) e de uma regulação atenta (o oposto do que o BdP fez com o BES). Isto implica, entre outras coisas, não salvar empresas que por má gestão se puseram em situação de insolvência. E antes que me perguntem, sim a TAP insere-se nesse prisma, visto que era uma empresa já muito debilitada antes da COVID (um ano de lucros nos anteriores dez).

Contudo, há uma ressalva que os sofistas socialistas muito convenientemente se esquecem de citar. As linhas orientadoras da função do Estado para um liberal, aplicam-se em contextos económicos e sociais normais. Portanto, e a não ser que os detratores dos liberais achem que a maior pandemia de sempre desde a Gripe Espanhola seja um contexto habitual da vivência humana, as regras acima não podem ser aplicadas como se de uma receita universal se tratasse. Nas actuais condições um liberal defenderá sempre que o Estado apoie as pessoas, porque é essa a sua função.

Para lá desta situação extraordinária que é uma pandemia, o que um liberal defende é um Estado que poupe em nome dos seus cidadãos, e não um Estado que se endivide em nome deles (cada português já deve, em média, cerca de 26000€ em nome do Estado).

O que um liberal defende é que o contrato social entre gerações não seja quebrado em nome dos adultos do presente e em prejuízo dos adultos do futuro. Sim, vão ser os jovens de hoje e aqueles que ainda estão por nascer que vão pagar o preço de políticas públicas socialistas que sempre estiveram mais preocupadas em comprar votos e servir clientelas do que criar um país mais próspero e justo.

Os liberais querem um Estado cuja Segurança Social invista o dinheiro que angaria pela força da lei para pagar as reformas do futuro, ao invés de ser o esquema de Ponzi que é hoje e de estar preocupada em promover políticas eleitoralistas de autarquias para prejuízo de quem desconta. Os liberais querem menos burocracia, uma melhor gestão da res publica e mais liberdade política, social e económica para os seus concidadãos. Se as taxas e taxinhas infinitas que foram pagas ao longo destes anos por todas estas empresas e trabalhadores não servem para apoiá-los numa situação de emergência como uma pandemia, então para que servem?

António Costa diz que a presente crise “foi o maior atestado de falhanço das visões neoliberais”. Já sabíamos que os socialistas são pródigos em atirar as culpas para cima dos outros quando as coisas correm mal. É um apanágio socialista: nada do que corre mal neste país é devido ao PS. Apenas tudo o que corre bem. No dia daquela entrevista a culpa recaiu num pequeno partido nascido em 2017 com um deputado. A isto acrescenta-se o prefixo “neo” para meter medo, ao bom estilo de Ana Gomes, que até hoje nunca conseguiu esclarecer ninguém o que distingue o “neoliberal” do “liberal”. Porém, a verdade que dói aos socialistas é esta: o país falido que falhou é governado há 19 dos últimos 25 anos pelo PS. Para os mais incautos, nos quais pelos vistos se insere o primeiro-ministro, fica o seguinte reparo: a única maneira desta crise ser “o maior atestado de falhanço das visões neoliberais” é se António Guterres, José Sócrates e o próprio primeiro-ministro forem os perigosos neoliberais que António Costa tanto teme. Um plot twist hitchcockiano.

Foi por isso que me surpreendi com o texto do Director Executivo do ECO: difícil, difícil é ser socialista e coerente. Afinal de contas, não foi António Costa que em Julho passado prestou vassalagem (v. a vénia) a um “perigoso” e “falhado” líder de um governo “neoliberal” como é o PM holandês Mark Rutte, para garantir a viabilidade da bazuca europeia? Ou será que eram os Países Baixos que precisavam de dinheiro dos muito bem-sucedidos socialistas portugueses? É mesmo caso para dizer: “Os socialistas já não aguentam a crise. Os (neo)liberais que os ajudem”.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

  • Gonçalo Levy Cordeiro
  • Analista financeiro

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