Editorial

A EDP, as barragens, a ideologia e os cofres públicos

O escrutínio à venda das barragens já mostrou virtudes.Há duas dimensões, uma puramente ideológico e outra fiscal. A Autoridade Tributária vai acionar a cláusula anti-abuso e a EDP vai recorrrer.

A venda das seis barragens da EDP, três das quais no Douro Internacional, aos franceses da Engie tem de ser explicada até ao fim, até ao último detalhe, até ao último número, até à última vírgula, até à última gota de água. Estão em causa mais de 100 milhões de euros de receita fiscal e as expectativas de comunidades regionais do interior do país, criadas, mal ou bem, no orçamento de 2021. O Governo e a EDP devem ser os primeiros interessados em esclarecer o que está em causa, em defenderem as suas posições, com a resposta ao escrutínio que se impõe. Mas chegados aqui, com a política a tomar conta da discussão, a operação de venda daquelas barragens já só se ‘resolverá’ quando a Autoridade Tributária decidir sobre a exigência, ou não, de pagamento de Imposto de Selo (e quando o Ministério Público esclarecer o que está em causa no inquérito entretanto aberto sobre o caso).

Depois de semanas de discussão, e da prestação de contas dos ministros das Finanças e do Ambiente no Parlamento, há claramente dois temas em causa. Um, ideológico, a guerra do Bloco de Esquerda e do PCP para forçar o Estado a nacionalizarem tudo o que for possível, e outro fiscal, que diz respeito a todos os portugueses, porque o pagamento de impostos é uma receita que serve para o Estado assegurar a provisão de bens públicos. Um tem resposta fácil, outro não tem ainda resposta (se não quisermos seguir o modo populista).

Ao contrário do que se diz, houve um leilão, um concurso competitivo, na venda das barragens e o melhor preço oferecido foi o da Engie. O Governo poderia ter exercido o direito de preferência do Estado na venda das barragens, isto é, das concessões, mas teria de pagar 2,2 mil milhões de euros à EDP para fazer uma de duas coisas: Passar a gerir barragens diretamente, ser um agente de mercado, ou o Governo promover um concurso para tentar arrecadar um valor superior àquele que teria pago. Ora, nem água dos caudais dos rios vai desaparecer, nem as barragens vão ser transferidas para França, e mesmo tendo em conta o interesse público de setores essenciais como a energia, o Governo tem instrumentos legais, um diploma de 2014, para proteger o que são considerados setores estratégicos. É aqui, em sede de regulação, que o Estado deve operar, é a garantir que a Engie cumpre os contratos de concessão que comprou em todas as suas dimensões, ambientais, sociais e outras. Menos do que isto seria intolerável.

O BE argumenta também que o Governo não deveria ter deixado passar o negócio por causa do que terá sido, ou não, a renovação das concessões em 2007 e o que a EDP deveria ter pago (e não pagou). Mas se se verificar que o negócio teve razões que só a justiça descobre, o Estado pode sempre acionar os mecanismos à sua disposição para ser indemnizado. A EDP não desapareceu, e a defesa do interesse público tem de ser proporcional ao que está em causa. O impedimento de um negócio entre privados, quando os privados o querem fazer, seria totalmente desproporcionado.

A EDP deveria ter pago Imposto de Selo (ou a Engie, o que impactaria no preço final de 2,2 mil milhões de euros)? Não é uma questão moral, não é esse o domínio em que o tema deve ser discutido, nem é uma questão política, nem deve ser. É uma questão técnica, é na prática a avaliação sobre opções que podem configurar ou não o planeamento fiscal agressivo. No final do dia, o que estará em causa é saber se a venda das barragens é um trespasse puro, o que deveria levar ao pagamento de Imposto de Selo, ou se houve mesmo uma reestruturação que englobou o trespasse, e aí não haverá lugar a esse pagamento.

A EDP invoca que houve uma reestruturação associada ao trespasse, e daí as operações de cisão e fusão de empresas que decorreram com este negócio. Porque há mais de mil contratos associados, além dos trabalhadores, e dos próprios contratos de concessão assinados entre a EDP e o Estado português. Mas há um pormenor relevante, prévio ao negócio concreto: A Autoridade Tributária divulgou uma Informação Vinculativa — que serve apenas para o caso concreto para a qual foi pedida, mas funciona na prática como jurisprudência do Fisco — em que isenta a Iberdrola de Imposto de Selo por operação semelhante. Invocando até diretiva comunitária que proíbe a aplicação de impostos indiretos sobre operações de restruturação empresarial.

O Governo, já se percebeu, entende que a EDP tem de pagar o imposto de selo (não por causa do dito artigo 60º alterado no orçamento de 2021), por boas e más razões: Porque considera que houve um trespasse e não uma reestruturação, mas sobretudo porque foi apanhado ‘na curva’ e não quer ficar colado à EDP (já bastou o apoio aos chineses da China Three Gorges para tomarem conta da companhia numa OPA que falhou). Mas, agora, não tem margem para o dizer publicamente, e remete a decisão, que já está tomada, de avançar para o recurso da ferramenta da cláusula anti-abuso (e o Fisco já usou este mecanismo 113 vezes, embora não se saibam os resultados em tribunal). A EDP vai recorrer judicialmente da decisão da Autoridade Tributária. Em paralelo, seguirá um inquérito criminal sobre a operação, e esse deverá demorar ainda mais tempo (ou é fechado no curto prazo sem consequências).

Até daqui a uns anos.

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