Marcelo diz que é proibido, mas pode-se fazer

O Presidente da República foi bondoso, mas incoerente e imprudente. Fez tábua rasa da norma-travão da Constituição que impede que os deputados possam aumentar despesa fora do Orçamento.

Há uns anos, os Gato Fedorento fizeram um sketch a parodiar a posição ambígua de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a despenalização do abordo: “O aborto é proibido, mas pode-se fazer. Mas é proibido. Mas pode-se fazer. Só que é proibido. O que é que acontece a quem o faz? Nada. É proibido. Mas pode-se fazer. Só que é proibido.”

Passou mais de uma década e agora Marcelo Rebelo de Sousa é presidente da República e promulgou este domingo três diplomas do Parlamento que o próprio reconhece que “implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas”, ou seja, violam a lei-travão inscrita na Constituição. Mas mesmo assim Marcelo não vetou e nem sequer enviou os diplomas para o Tribunal Constitucional; resolveu promulgá-los. É uma reedição do “É proibido. Mas pode-se fazer.”

Em causa estão três diplomas: um que alarga o universo e o valor dos apoios sociais previstos para trabalhadores independentes, gerentes e empresários em nome individual; outro que aumenta os apoios para os pais em teletrabalho; e um terceiro que estende o âmbito das medidas excecionais para os profissionais de saúde durante a pandemia também à recuperação dos cuidados primários e hospitalares não relacionados com Covid-19.

O número 2 do artigo 167º da Constituição é claro e deixa muito pouco espaço para interpretações: “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.

O Presidente da República invocou estes três argumentos para justificar a promulgação dos diplomas e a não violação da norma-travão:

1. Diz que “os três diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida”.

Comentário: O facto de os montantes de despesa serem à partida desconhecidos não atenua em nada a violação da norma-travão, muito pelo contrário. Sendo que o Governo já deu indicações de que só no diploma dos recibos verdes estamos a falar de mais 38 milhões de euros/mês.

2. Marcelo argumenta também que “o próprio Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020”.

Comentário: Aqui Marcelo está a convidar o Governo a utilizar um “truque orçamental” que o próprio já criticou no passado que é usar o atraso do Decreto de Execução Orçamental como instrumento de gestão orçamental. O decreto-lei de Execução Orçamental estabelece as normas de plena execução do Orçamento, nomeadamente as famosas cativações.

3. Por fim, o Presidente diz que “os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente”.

Comentário: Aqui o Presidente diz que os diplomas, que ele não sabe sequer quanto custam, devem entrar em vigor desde que não furem o limite do Orçamento. E quando furarem o que acontece? Volta-se a cortar os apoios aos recibos verdes? Com base em que lei? Além disso, Marcelo está a admitir que o Orçamento tem uma folga para acomodar estas despesas extras, ou então está a sugerir que o Governo corte noutras rubricas para acomodar estas despesas novas. Mas cortar aonde? Nos gastos na Saúde? Na Educação?

Além de argumentos jurídicos de solidez duvidosa, o Presidente da República nem sequer está a ser coerente. Em junho do ano passado, vetou, sem apelo nem agravo, um diploma idêntico do Parlamento que visava alargar o apoio extraordinário à redução da atividade de trabalhador independente aos microempresários e empresários em nome individual.

Na altura, disse, tal como agora, que o alargamento era “socialmente relevante”, mas vetou o diploma porque “tem suscitado, todavia, dúvidas de constitucionalidade, por eventual violação da lei-travão, ao poder envolver aumento de despesas previstas no Orçamento de Estado para 2020, na versão ainda em vigor”. Na altura, Marcelo até sugeriu que os deputados propusessem essa alteração mais tarde, quando fosse discutido o Orçamento Suplementar para 2020.

Resumindo, Belém fez tábua rasa do argumento que o próprio Marcelo usou no ano passado para vetar um diploma idêntico.

Além de incoerente, a posição de Belém é imprudente. A norma-travão não é um penduricalho para enfeitar a Constituição; é um instrumento importante que garante governabilidade em contextos políticos como o atual de um governo minoritário.

Como escrevia ontem Vital Moreira, “a partir de agora vai ser mais difícil ainda governar em minoria, visto que já nem sequer a despesa orçamentada é intocável”.

Na nota publicada este domingo no site da Presidência, Marcelo sugere ao Governo que não envie os diplomas para o Tribunal Constitucional para fiscalização sucessiva para evitar confrontos com a oposição num tempo que o próprio recorda ser “um tempo eleitoral”. Mas ao fazer esta interpretação laxista da lei-travão, é o próprio Marcelo que está a dar à oposição ferramentas que antes não tinha para que as maiorias negativas provoquem estragos orçamentais.

Em ano de autárquicas, em que todos os partidos querem fazer prova da vida, Marcelo está involuntariamente a criar condições para precipitar uma crise política. Durante uma pandemia, e com a economia em recessão profunda, é proibido provocar uma crise política. “É proibido, mas pode-se fazer”.

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