Os funcionários públicos fazem greve em protesto por melhores salários e pela revogação do atual sistema de avaliação. Ao ECO, o líder da Frente Comum diz que este protesto não será "o fim da luta".
Os funcionários públicos vão fazer greve esta quinta-feira e o Governo de António Costa é “muitíssimo responsável” por essa paralisação. Quem o diz é Sebastião Santana, líder da Frente Comum, que, em entrevista ao ECO, antecipa que é expectável que a “luta se agudize”, se não houver uma mudança nas políticas.
Esta greve acontece numa altura em que os sindicatos e o Governo estão a negociar a revisão do sistema de avaliação de desempenho dos trabalhadores da Administração Pública (SIADAP), mas o sindicalista entende que esse processo não será prejudicado. Aliás, Santana diz que a negociação já estava bloqueada “por inércia do Governo“, que ainda não apresentou uma proposta concreta. É por isso que o líder da Frente Comum diz que esta paralisação tem “muito a ver com o silêncio” do Executivo e adianta que estes protestos não serão “o fim da luta”.
Sebastião Santana critica ainda o modo como a discussão do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho está a ser feita — na Concertação Social e sem os representantes diretos dos funcionários públicos — e atira que a massificação do teletrabalho “não será o rumo seguramente” para o emprego público.
A Frente Comum convocou um dia nacional de luta, que inclui greves. Quais são os principais motivos?
Será um dia nacional de luta, que terá greves, mas não será uma greve de toda a Administração Pública, até porque há setores que não emitiram avisos prévios, como o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os trabalhadores dessa área vão estar ao serviço, assegurando o normal funcionamento dos serviços, como os centros de vacinação e testagem. O que vamos ter é diversos [outros] setores em greve, como a Administração Local e os serviços da Administração Central, e uma concentração à tarde, que vai envolver trabalhadores dos setores que não vão estar em greve.
As principais reivindicações deste dia nacional de luta são, à cabeça, a defesa dos serviços públicos, o aumento geral dos salários, a dignificação das carreiras, a revogação do SIADAP e a correção da tabela remuneratória única.
Não será uma greve que vai bloquear a negociação. A negociação estava bloqueada já muito antes de se ter convocado o [dia de luta a] 20 de maio.
A revisão do SIADAP está a ser discutida atualmente com o Governo. Não entende que esta greve pode, de algum modo, prejudicar as negociações, trazendo tensão a esse processo?
Não, só podemos prejudicar negociações que existem e não é o caso. O Governo convocou-nos para duas reuniões negociais, ao abrigo da lei da negociação e, portanto, não foram meras conversas informais, mas não apresentou nenhuma proposta. Entendemos que isto é um desrespeito enorme pelas estruturas representativas dos trabalhadores, neste caso pela Frente Comum. Estaremos sempre disponíveis — como temos estado — para participar em processos negociais. Não será uma greve que vai bloquear a negociação. A negociação estava bloqueada já muito antes de se ter convocado o [dia de luta a] 20 de maio por inércia do Governo em resolver os problemas dos trabalhadores da Administração Pública e esse [o SIADAP] é um deles.
Saiu da última reunião negocial passados 15 minutos, porque o Governo não apresentou uma proposta. Disse que a negociação está bloqueada. Há ainda hipótese de ter um resultado minimamente satisfatório para a Frente Comum?
Os trabalhadores o que defendem — e, aliás, entregamos nessa segunda reunião mais de 66 mil assinaturas — sobre o SIADAP é que tem de ser revogado. O que o Governo apresentou até ao momento, passo a expressão, são operações de cosmética em relação ao SIADAP. Não quer rever o problema de fundo, que é o facto de ser um sistema de avaliação injusto, dificílimo de aplicar — prova disto é que há muitos serviços que não conseguem fazê-lo — e que serve para nada mais do que garantir que os trabalhadores não progridem salarialmente. Se estas coisas não se resolverem, pois com certeza que nunca vai haver acordo da parte da Frente Comum.
O que a Frente Comum defende é que os trabalhadores sejam avaliados por um sistema justo, formativo, equitativo, transparente e sem quotas, cujo objetivo seja melhorar o desempenho dos trabalhadores e dos serviços da Administração Pública e não estagnar salarialmente pessoas.
A Frente Comum defende que o SIADAP deve ser revogado. Nenhuma outra proposta seria satisfatória?
Não é que seja impossível reformar o SIADAP, mas a reforma seria tão profunda nos seus princípios basilares que o resultado seria um sistema de avaliação diferente. Podemos continuar a chamar o sistema de SIADAP, o problema é o conteúdo, que precisa de uma reforma tão profundo que entendemos que [deveria] passar pela sua revogação e criação de um outro. Mas não havendo proposta sequer para a renovação que o Governo diz querer fazer, é muito difícil discutir. Não há processos negociais sem propostas.
Não aceitamos que se diga na praça pública que se está a negociar, quando na verdade isso é perfeitamente mentira. Não se está a negociar coisíssima nenhuma.
Marcam esta greve ainda sem haver essa proposta do Governo sobre o SIADAP, como frisa. Porque não esperar pela proposta?
Porque não aceitamos que se diga na praça pública que se está a negociar, quando na verdade isso é perfeitamente mentira. Não se está a negociar coisíssima nenhuma. Não há resposta a nenhuma das reivindicações entregues ao Governo. É, aliás, obrigação do [Executivo] negociar as propostas com os sindicatos e o Governo recusa-se a fazê-lo. Esta greve tem muito a ver com isso, com o silêncio do Governo. O Governo é muitíssimo responsável pela marcação desta greve. Os trabalhadores não vão perder um dia de salário e deslocarem-se a Lisboa porque lhes apeteça muito perder um dia de salário ou ter que vir para uma manifestação defender os seus direitos. É porque o Governo não dá resposta às suas reivindicações e à necessidade de melhoria dos serviços públicos.
Continuaremos a fazer [protestos] até o Governo dar resposta. Isto não vai ser o fim da luta. Vai ser uma demonstração ao Governo de que os trabalhadores não estão dispostos a compactuar com farsas negociais.
Têm dito que as quotas são um dos principais problemas do atual sistema de avaliação. Que lhe parece a majoração dessas quotas em determinados serviços, já sinalizada pelo Governo?
O sinal que foi dado não se traduziu numa proposta concreta. Portanto, avaliando sinais, é sempre muito complicado ter uma posição definitiva sobre o assunto. No entanto, aquilo que nos foi entregue como posição de princípio tem problemas muito sérios à nascença. O Governo diz que está disposto a majorar as quotas — não diz em quanto, nem concretiza como — em serviços que sejam considerados “excelentes”.
Vamos fazer um exercício muito simples, que é comparar os critérios de avaliação de uma escola pública, por exemplo, num sítio problemático, com alunos com dificuldades de aprendizagem e com necessidades sociais muito grandes com outra na qual há uma realidade completamente diferente e, como costuma acontecer, [é vista] pelos rankings como melhor, quando isto não é necessariamente verdade, porque a avaliação deve ser feita à luz daquilo que deve ser um serviço público. Isto faria com que uma escola sem problemas fosse bem classificada e os trabalhadores teriam acesso a “excelentes”; E noutra escola, onde os alunos podem até não atingir resultados tão bons, mas o trabalho feito é de uma qualidade imensa, os trabalhadores não teriam acesso a essa abertura de quotas. O problema das quotas é que nunca vão ajudar a promover a excelência. Temos casos de trabalhadores que viram a sua nota como “excelente” e, depois, não foi homologada porque já se tinham esgotado as quotas. Como é que se faz? Tiramos à sorte. Há muitos serviços a fazerem isso. É de uma injustiça tremenda, as quotas têm mesmo de acabar.
Não fará sentido estar a ver um sistema de avaliação sem se falar em carreiras e sem se falar em tabela remuneratória única.
Hoje, um funcionário público “padrão”, digamos assim, leva dez anos para conseguir progredir. É excessivo, até já admitiu o Governo. Que prazo defende a Frente Comum?
Estas questões não se podem ver isoladamente, porque estão interligadas com o sistema de carreiras. Lembrar que antes da Lei 12-A/2008, que destruiu mais de 1.400 carreiras na Administração Pública, havia tempos de progressão diferentes para cada carreira. Queremos ver isto tudo junto. Não fará sentido estar a ver um sistema de avaliação sem se falar em carreiras e sem se falar em tabela remuneratória única. Não tenho uma resposta sobre o tempo [entre progressões], porque vai depender da carreira. Tem de ser tudo visto caso a caso. Fazer regras gerais para coisas diferentes dá no que deu, que foi transformar mais de 1.400 carreiras em três.
Entregaram mais de 66 mil assinaturas ao Governo a pedir mudanças sérias no sistema de avaliação. Que resposta esperam do Executivo? Mantêm-se otimistas?
Estamos à espera que o Governo [cumpra] o compromisso que assumiu na última reunião, que é o de agendar [uma nova reunião] para assim que lhe for possível e tiver chegado a consenso sobre a proposta a apresentar. Declarações de princípio e notícias de jornal não fazem negociação e é assim que o Ministério da Administração Pública e o Governo têm feito os processos negociais.
O Governo disse que não apresentou uma proposta porque não foi ainda possível concluir a “harmonização interna”. Os sindicatos indicaram que lhes foi dito que a proposta ainda está a ser acertada com as Finanças. Entende que o Ministério da Administração Pública está, de alguma forma, “capturado” pelo Ministério das Finanças?
Essa é a desculpa que o Governo arranja para não se sentar à mesa negocial. A Constituição da República é clara e todos os membros do Governos sabem disto: O Governo é uno e solidário. Não há dois ou três Governos em Portugal. Há um, que é composto por vários ministros que tutelam as diferentes áreas da governação. Se existe um problema entre o Ministério da Administração Pública e o Ministério das Finanças, o Governo tem de o resolver internamente e os sindicatos não aceitam isso como desculpa razoável. O Governo tem de construir propostas e negociar com os sindicatos. Se o Ministério da Administração Pública estivesse muito interessado em valorizar salários, renegociar carreiras e revisitar sistemas de avaliação, fazia-o e uso a desculpa que o Ministério das Finanças não deixa. Ora, o Governo é uno e o que se exige são respostas.
É expectável que, não havendo alteração de políticas nem de postura negocial, a luta não só não pare, como se desenvolva e se agudize.
Mantendo-se esta posição do Governo, a Frente Comum antecipa que o ano de 2021 será marcado por várias outras paralisações e protestos?
Se o Governo optar por este caminho, os problemas dos trabalhadores vão agravar-se. Quando os problemas dos trabalhadores se agravam, a resposta intensifica-se. É expectável que, não havendo alteração de políticas nem de postura negocial, a luta não só não pare, como se desenvolva e se agudize. Sobre isso, não tenho muitas dúvidas.
Outro dos motivos por detrás deste dia de luta é a falta de valorização dos salários. Alguns dos salários da Função Pública subiram mesmo em pandemia. Valoriza esse esforço do Governo?
Foi um esforço bastante insuficiente, do nosso ponto de vista. Abrangeu cerca de 100 mil trabalhadores. Aumentaram-se os salários mais baixos e conseguiu-se fazer a proeza de se colocar pessoas que trabalham há 30 anos a ganhar exatamente o mesmo que alguém que entre hoje para a Administração Pública. Portanto, não desvalorizamos o aumento do salário mínimo, mas consideramos que foi insuficiente.
Aliás, a correção da tabela remuneratória única é outro dos motivos do dia de luta que marcaram. O Governo diz que pondera criar escalões intermédios nessa tabela, a par da revisão do SIADAP. O que lhe parece?
Não fazemos ideia, porque, mais uma vez, não há uma proposta. Enquanto não virmos uma proposta de tabela a dizer que o nível um vale tanto, níveis dois vale outro valor, estamos sempre a discutir princípios. Não queremos discutir princípios, queremos fazer uma negociação e para isso precisamos de uma proposta concreta.
Este Governo tem condições, até no Parlamento, para fazer muito melhor em relação ao trabalho e aos trabalhadores do que tem feito. É uma questão de opção política.
Esperava que, sendo este Governo socialista, fizesse mais pela valorização do trabalho e da Função Pública, nomeadamente no que diz respeito aos salários?
Este Governo é do Partido Socialista, mas agora poderíamos entrar aqui numa discussão sobre o que é o socialismo e o que o PS representa como linha ideológica. Uma coisa é certa: Este Governo tem condições, até no Parlamento, para fazer muito melhor em relação ao trabalho e aos trabalhadores do que tem feito. É uma questão de opção política. Se podia mudar objetivamente o rumo do trabalho, tanto na Administração Pública como de uma maneira geral? Podia. Não só não o faz como as propostas do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho são clarificadoras do caminho que se quer seguir e é um caminho que entendemos que não é o certo para valorizar quem trabalha.
Uma das matérias desse livro verde é o teletrabalho. O Ministério da Administração Pública admite negociar com os sindicatos, por exemplo, o pagamento das despesas, mas só depois de tal estar estabilizado na lei. O Governo devia dar o exemplo e fazê-lo já, com o que está no Código do Trabalho ou valoriza a prudência, digamos assim, de negociar só quando a lei estiver estabilizada?
Exigimos que isto seja negociado. O livro verde reflete lá matérias que dizem respeito diretamente aos trabalhadores da Administração Pública e o Governo está a discutir isso na Comissão Permanente da Concertação Social, na qual tem assento a CGTP, mas não têm assento os representantes diretos da Administração Pública. As matérias que dizem respeito à Administração Pública têm sede própria, que não é a sede com os patrões privados. O que nós exigimos é que o Governo entregue uma proposta, se sente connosco e fale. Fez um ensaio disso no início da legislatura, com umas reuniões sobre o teletrabalho, que não passaram de elegantes e educadas conversas, mas sem a apresentação de qualquer proposta.
Vinha já no programa do Governo a transição de cerca de 25% dos trabalhadores da Administração Pública para teletrabalho. Entendemos que, no quadro de necessidade de proximidade com as populações e em que o acesso às tecnologias de informação não é tão generalizado em todo o país como nos grandes centros urbanos, esse não será o caminho mais adequado. Aceitamos que, na pandemia, esta foi uma solução possível. Agora transformar isso numa solução definitiva e massificar o teletrabalho não será o rumo seguramente para a Administração Pública.
Recentemente, o Expresso noticiou que o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê a fusão e concentração de serviços públicos. Está preocupado? Teme que tal seja sinónimo de uma redução do número de funcionários públicos?
Regra geral, os Governos do PS tendem a tentar fazer — e, às vezes, conseguiram concretizar — grandes reformas na Administração Pública. Nestas reformas, aconteceram sempre duas coisas. Uma é que os trabalhadores viram a sua posição fragilizada. A outra é que os serviços públicos acabaram por ficar diminuídos, muitos deles externalizados. É um processo de reconfiguração do Estado que vem já de há muitos anos a ser tentado e não vemos de forma nenhuma como é que o que vem descrito no PRR pode ajudar os serviços prestados às populações. Não estamos nada tranquilizados com estas propostas e, mais uma vez, isso está a acontecer sem negociação.
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“Greve tem muito a ver com silêncio do Governo”. Frente Comum avisa que luta não vai parar
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