Empresários “agarram-se” a apoios que Costa já quer retirar
Fora da realidade e do calendário. No terreno, os empresários arrasam a tese do primeiro-ministro de que os apoios à economia “têm vindo a deixar de ser necessários” e podem começar a ser retirados.
O primeiro-ministro, António Costa, voltou a ensaiar o discurso político, que pretende tornar oficial dentro de alguns meses, para a retirada dos apoios do Estado à economia, criados e depois revistos e prolongados devido ao contexto de pandemia. Os empresários ouvidos pelo ECO criticam a intenção do Governo, que acusam de confundir realidades distintas no terreno, e avisam que os abalos provocados por esta crise vão continuar a ser sentidos no médio prazo.
Numa entrevista à TVI, emitida na noite de segunda-feira, o chefe do Executivo socialista sublinhou que, depois um “momento em que a intensidade dos apoios foi muito grande, progressivamente têm vindo a deixar de ser necessários”. “As empresas estão a retomar o seu caminho e hoje os apoios podem diminuir porque as necessidades são menores”, concluiu António Costa.
Consciente de que “os apoios irão diminuir, à medida que a situação se vai regularizando, até ao dia em que vão deixar de existir”, o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP) completa que “a questão é que ainda não estamos nessa fase”. “Há setores que ainda vão precisar de apoio durante mais tempo. Não se pode fazer uma leitura transversal a todos os setores de atividade porque os impactos e a recuperação são diferentes”, acrescenta.
"Se retirarmos prematuramente estes apoios, podemos pôr em causa o esforço do próprio Governo, mas também o que foi feito pelos empresários – e muitos deles alocaram todos os recursos pessoais para manterem os negócios.”
Luís Miguel Ribeiro ressalva a discordância com a atribuição de apoios “de qualquer forma e a empresas que dificilmente conseguirão recuperar”, até porque isso vai subtrair recursos para outras que podem ser viáveis. Mas, lembra o dirigente associativo nortenho, “não se recupera de um dia para o outro” e “ainda vamos ter um período difícil até voltarmos a alguma normalidade”.
“Se retirarmos prematuramente estes apoios, podemos estar a pôr em causa o esforço que o próprio Governo fez para apoiar as empresas – nomeadamente ao nível da capitalização e da manutenção dos postos de trabalho –, mas também o esforço que foi feito pelos empresários – e muitos deles alocaram todos os seus recursos pessoais para manterem os negócios”, dramatiza o líder da AEP.
Samuel Santiago, presidente da Associação Empresarial de Paços de Ferreira, concorda que “é fundamental que os apoios continuem a existir”, dado que “as finanças das empresas continuam débeis”. “Completamente contra” o levantamento das ajudas estatais a breve trecho, este empresário ligado a projetos de mobiliário e design de interiores adverte ainda para a falta de celeridade e a burocracia excessiva que prejudicam o acesso às ajudas públicas, dando o exemplo dos apoios à contratação.
Aliás, a postura otimista com que o primeiro-ministro regressou das férias – na circunstância, durante o congresso do PS, realizado em Portimão no final de agosto –, já tinha feito o presidente da CIP, António Saraiva, aludir a um famoso naufrágio, em declarações ao Dinheiro Vivo. “Estamos a afundar-nos em termos de crescimento económico e a orquestra continua a tocar”, desabafou o patrão dos patrões.
Nesta mesma entrevista à TVI, em que admitiu mexidas no 3.º e 6º escalões do IRS, António Costa gracejou que “felizmente não estamos no Titanic, nem o barco está a ir ao fundo”. “Pelo contrário, o barco demonstrou resistir bem à tormenta. Acho que estamos em boas condições de partir por águas safas e com ventos de feição”, respondeu, quando questionado por Miguel Sousa Tavares sobre essas declarações.
Mário Jorge Machado, porta-voz da indústria têxtil e do vestuário – uma das mais exportadoras da economia nacional, que antes da pandemia vendia perto de 5 mil milhões de euros no estrangeiro – lembra ao primeiro-ministro que “ainda há empresas a precisar de apoios”. O impacto da crise não é idêntico até dentro do mesmo setor. As estatísticas de comércio internacional do INE mostram que, se há subsetores a retomar a dois dígitos, outros, como o vestuário formal, continuam a registar quebras na ordem dos 20%.
"A retirada prematura dos apoios pode comprometer a viabilidade das empresas que ainda não estão preparadas para fazer face a todas as suas obrigações financeiras.”
No alojamento turístico e na restauração, o cenário é ainda mais sombrio, mantendo-se em vigor restrições ao normal funcionamento destas empresas, enquanto os espaços de animação noturna continuam encerrado desde março de 2020. A associação do setor (AHRESP) insiste que “realidades setoriais distintas requerem tratamentos diferenciados” e descreve que “muitos empresários continuam com dificuldades financeiras e quebras de faturação significativas, especialmente nas zonas urbanas mais turísticas”.
“A retirada prematura dos apoios pode comprometer a viabilidade das empresas que ainda não estão preparadas para fazer face a todas as suas obrigações financeiras, que é o caso de muitas das empresas que a AHRESP representa. Se começarmos a assistir a falências em massa num dos setores que mais contribui para o emprego e a riqueza do país, os esforços encetados pelo Governo desde março de 2020 na prevenção do desemprego e manutenção do tecido empresarial terão sido em vão”, completa a secretária-geral, Ana Jacinto.
Neste momento, o Ministério da Economia reconhece que ainda há “dezenas de milhares de empresas” abrangidas pelos chamados apoios Covid, calculando que cerca de 47 mil trabalhadores estão abrangidos pelas ajudas ao emprego, como o Apoio à Retoma Progressiva, e que mais de 60 mil empresas beneficiam de linhas de crédito com apoio do Estado.
No programa Tudo É Economia (RTP), o ministro Pedro Siza Vieira referiu que a maior parte das empresas nacionais “está em excelentes condições de retomar a sua atividade normal”. Admitiu, porém, que alguns setores, como o turismo, os transportes e alguns segmentos do comércio a retalho e da indústria transformadora podem continuar a precisar em 2022 de dinheiro dos contribuintes para terem “mais tempo para recuperar”.
No caso do turismo, com o início da época baixa a partir de novembro, a AHP – Hotelaria de Portugal contrapõe que “haverá necessidade de aumentar os apoios, e com a obrigatoriedade da abertura de todas as unidades haverá mais dificuldades de tesouraria e novo aumento de desemprego”.
Recordando que foi a procura interna que “alimentou e aguentou” o verão e “não em todos os destinos, nem em igualdade de condições”, o presidente da AHP, Raul Martins, sentencia que “depois do verão a atividade turística, que já por si abranda, com as restrições impostas pela pandemia estará novamente em maior crise”.
“Óbitos” começam a ser declarados
O segundo trimestre do ano ficou marcado pelo desconfinamento progressivo do país e até foi sinónimo de um crescimento considerável da economia, mas acabou por aumentar o número de empresas que não resistiram ao impacto da pandemia e fecharam portas. Segundo o Eurostat, entre abril e junho, enquanto a União Europeia registou um crescimento em cadeia de 1,8% nas declarações de insolvência, a subida portuguesa foi muito mais expressiva (10,9%), o que aconteceu após dois trimestres consecutivos de quebras.
Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, foi uma das primeiras a alertar para a inevitabilidade do aumento das falências na Zona Euro nos próximos meses, após um período em que estiveram em mínimos históricos. “Iremos ver mais falências”, avisou, a 21 de maio, durante uma conferência de imprensa do Eurogrupo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa,
"Devem ser dados apoios para garantir que se mantém a capacidade instalada e o know-how das pessoas em empresas que viram o seu mercado reduzido por causa da pandemia.”
Logo nessa altura, a responsável máxima do BCE argumentou que os apoios públicos continuarão a ser necessários e admitiu igualmente que terá de ser dada “especial atenção” aos NPL (crédito malparado) e às provisões dos bancos nos tempos mais próximos. Uma preocupação partilhada também por outras instituições, como o Conselho das Finanças Públicas ou pelo Banco de Portugal, que estimou que um em cada quatro restaurantes (25%) chegará ao final do ano em falência técnica.
Lembrando que “a situação de partida já era de enorme fragilidade, em muitos casos”, no arranque do verão, o economista Daniel Bessa referiu ao ECO que “há empresas que estão vivas porque o óbito ainda não foi declarado”. “Alguém acredita que a linha de capitalização que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) vai ter poderá impedir uma vaga de falências? Não pode. No termo das moratórias, existem muitas empresas que não vão ser capazes de satisfazer os seus compromissos”, perspetivou o ex-ministro da Economia.
Esta terça-feira, em entrevista à RTP, Siza Vieira assegurou, a propósito do fim das moratórias, já ter acordado com o setor bancário “um esquema em que o Estado apoia processos de reestruturação que os bancos façam com empresas” dos setores mais afetados e que “mostrem ser viáveis”. Quanto ao financiamento à capitalização previsto no PRR português, o governante insistiu que “a partir do outono” arrancam esses esquemas de capital, “seja para reduzir o endividamento, seja para aumentar os capitais próprios” das empresas.
Cerrar dentes e manter empregos
Os processos de insolvência no setor têxtil têm sido dos mais notados durante este ano, sobretudo por causa dos processos relativos a grandes empresas, como aconteceu com a Coelima e, mais recentemente, também com a Dielmar. Sem falar de casos concretos, Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) valoriza a canalização de fundos estatais “para garantir que se mantém a capacidade instalada e o know-how das pessoas em empresas que viram o seu mercado reduzido por causa da pandemia”.
"Isto vai-se arrastar por longos meses – diria até anos, se calhar. Há muitas empresas que podem estar a trabalhar bem porque realmente têm esses apoios. Se não existirem, a retoma real das suas atividades está condicionada.”
Esta tem sido uma preocupação latente quase desde o início da crise pandémica, no arranque de 2020. Porém, como mostra uma análise do ECO, em crise anteriores o número de empresas em dissolução também não disparou logo quando a recessão começou. Em 2008, a queda do Lehman Brothers ocorreu em setembro, mas as falências só dispararam em dezembro. Em 2011, na crise das dívidas soberanas, Portugal fez um pedido de ajuda externa em abril, mas as falências tiveram o seu pico em novembro.
E é também por isso que o presidente da Associação Empresarial de Paços de Ferreira considera extemporânea a retirada dos apoios do Estado. “O resultado de uma pandemia como esta não é visto só no imediato. Isto vai-se arrastar por longos meses – diria até anos, se calhar. Há muitas empresas que podem estar a trabalhar bem porque realmente têm esses apoios. Se não existirem, a retoma real das suas atividades está condicionada”, declara Samuel Santiago.
“Temos para trás um ano e meio de prejuízos acumulados, que irão demorar muitos meses (senão anos) a recuperar. É, por isso, muito importante que o Governo não se esqueça dos nossos setores e que continue a prestar apoio financeiro até que a atividade turística esteja normalizada, incluindo ao nível do turismo internacional, ao qual a atividade das nossas empresas está diretamente ligada”, completa Ana Jacinto, da AHRESP.
(Artigo atualizado a 9 de setembro com declarações da APH)
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