Editorial

Costa, a Anacom e os reguladores

O primeiro-ministro fez críticas severas, e acertadas, à atuação de Cadete de Matos e da Anacom no 5G, e depois aproveitou para pressionar a independência de todos os reguladores.

Portugal será provavelmente o último país da União Europeia a apresentar uma oferta comercial de 5G, responsabilidade direta do regulador setorial, a Anacom, e do seu presidente, João Cadete de Matos, obcecado em promover uma guerra com os operadores de telecomunicações sem vantagens, pelo contrário, para a concorrência e para os consumidores. Nada nisto é novo, as críticas de todos os quadrantes económico-empresariais ao leilão e ao autismo de Cadete de Matos têm muitos meses, os processos em tribunal promovidos pelos três operadores são diversos e ainda por decidir. A novidade é que António Costa juntou-se ao grupo e fez críticas muito severas à Anacom e, pelo caminho, ao modelo de regulação do país.

Afinal, o que disse o primeiro-ministro no Parlamento? Em resposta a um deputado do PSD, afirmou: “Estamos todos de acordo: o modelo de leilão que a Anacom inventou é, obviamente, o pior modelo de leilão possível, nunca mais termina e está a provocar um atraso imenso no desenvolvimento do 5G em Portugal”, acusou António Costa. Mas disse mais: “Quem construiu essa doutrina absolutamente extraordinária de que é preciso limitar os poderes dos governos para dar poder às entidades reguladoras, deve bem refletir sobre este exemplo do leilão do 5G, para ver se é este o bom modelo de governação económica do futuro.” O #Costabem e o #Costamuitomal numa só frase.

Vamos por partes. O leilão do 5G e outras faixas relevantes começou em novembro de 2020, primeiro com uma fase para os novos entrantes e, desde 14 de janeiro, está em curso a licitação principal, portanto, já vai com mais de 200 dias de licitação e não se prevê que termine tão cedo. Os operadores admitem que possa chegar ao fim no final de novembro. Mas se António Costa chegou agora ao tema, basta uma busca rápida no Google para encontrar declarações dos presidentes da Altice, Nos e Vodafone a alertarem para o fiasco do concurso e para as consequências deste processo. Alexandre Fonseca afirmou em novembro de 2020 (leu bem, novembro de 2020) que o 5G seria um flop e que o regulador tinha mentido ao Governo. Desde o primeiro dia, tudo correu mal e o Governo nada fez.

Não é desejável que a política se pronuncie assim sobre um regulador independente, e só um facto muito grave o pode justificar. Justificou-se pelas consequências deste atraso para a economia portuguesa, que já não podem ser recuperadas. Os atrasos são irremediáveis. E agora Costa tem de ser consequente, senão mais valia estar calado.

Neste momento, só Portugal e a Lituânia não têm oferta comercial de 5G, mas para a próxima semana deveremos ser mesmo o único país nesta triste lista. Neste país em que o Governo promete uma transição digital e dedicou milhares de milhões da bazuca a esta área, falta-nos a mais importante das infraestruturas. Um país irremediavelmente atrasado e com um responsável por ato (Cadete de Matos) e um outro responsável por omissão (o Governo).

Depois deste processo, em que Cadete de Matos se convenceu que ficaria na história se desencadeasse uma guerra aos operadores no 5G, só faltaria mesmo que ficasse tudo na mesma. Cadete de Matos tem de sair, pelo seu pé se tiver vergonha do seu próprio trabalho, por decisão política se isso não suceder. Mas agora a responsabilidade passou para António Costa e para Pedro Nuno Santos, o ministro da tutela, que não há muitas semanas ainda se gabava do tempo que o processo estava a demorar porque isso significava uma receita mais elevada para o Estado. E agora, continua a dizer a mesma coisa?

Não é desejável que a política se pronuncie assim sobre um regulador independente, e só um facto muito grave o pode justificar. Justificou-se pelas consequências deste atraso para a economia portuguesa, que já não podem ser recuperadas. Os atrasos são irremediáveis. E agora Costa tem de ser consequente, senão mais valia estar calado. Mas o primeiro-ministro não resiste à tentativa de intervenção no mercado e, daí, Costa pôs em causa todo o modelo de regulação. Contra as limitações do Governo, contra a independência de entidades reguladoras. Ora, extraordinário é mesmo que Costa estará a preparar alguma proposta de mudança às entidades reguladoras, afetando a sua independência? Teme-se o pior.

O pecado da Anacom, e de outros reguladores, é mesmo o processo de escolha, e neste caso o Governo deve a si próprio o que está a suceder. João Cadete de Matos foi parar à Anacom pela mão de Mário Centeno, que queria pô-lo na administração do Banco de Portugal e, como não conseguiu, deu-lhe este prémio.

Cadete de Matos era Diretor de Departamento de Estatística do Banco de Portugal e não tinha nenhuma competência particular para ser presidente de uma entidade reguladora. Aliás, nessa altura, o Governo ainda tentou nomear mais dois administradores que, por razões diferentes, não passaram o crivo do Parlamento. O Presidente também não deveria sido aprovado, mas passou. Fizeram-lhe as questões certas? Ou a ‘nomeação’ de Centeno significava uma carta fechada para os deputados?

Mas não só. Também é urgente mudar o próprio modelo de governação dos reguladores, com independentes que garantam um escrutínio e supervisão da ação dos reguladores executivos. No caso da Anacom, por exemplo, não só não tem um órgão externo ou interno de supervisão como a própria administração é composta por um vice-presidente que trabalhou com Cadete de Matos no Banco de Portugal e, mais recentemente, foi nomeada Patrícia Silva Gonçalves, mais uma técnica do banco central. Onde está a governance deste modelo?

O salto que Costa dá, da Anacom para todos os reguladores, é outra história. Já sabíamos que o primeiro-ministro não gosta de entidades reguladoras, especialmente daquelas que põem em causa as suas decisões ou as criticam em público, e aqui inclui outros organismos como o Conselho das Finanças Públicas ou até o Tribunal de Contas. O que funciona mal é mesmo a Anacom, e o seu presidente, as entidades reguladoras independentes são mais necessárias do que nunca.

Nota: Às 19h00 foi acrescentada informação sobre dois membros do conselho de administração da Anacom.

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