Voto de eleitores em isolamento: O cúmulo do desprezo

Vamos para a terceira eleição em pandemia e o Parlamento ainda não conseguiu encontrar uma forma de permitir o voto a eleitores em isolamento. Até o desleixo devia ter limites.

Nas noites eleitorais há rituais que não mudam. Um deles, provavelmente o mais hipócrita, é aquele que se cumpre entre as 19h00 e as 20h00. Essa é aquela hora em que a única projecção que pode, por lei, ser divulgada é a estimativa de abstenção, que merece sempre o primeiro comentário de responsáveis partidários e candidatos.

Como a subida da abstenção é uma tendência nas últimas décadas, nesses 60 minutos vamos assistindo a muita consternação, preocupação e promessas de tudo ser feito para tentar inverter o fenómeno e “aproximar os eleitores da política”.

Como vemos pelo que se tem passado, de facto, nas últimas décadas, essa é uma preocupação que termina às 20h00 em ponto das noites eleitorais, momento em que surgem as primeiras projecções de resultados. A partir daí, a abstenção que se dane. Até à eleição seguinte, onde todo o ritual se repete.

A inércia é sempre muito grande, contaminando até assuntos pouco ideológicos e onde será relativamente fácil garantir consensos alargados porque o que está em causa é o funcionamento e a qualidade da democracia. A logística eleitoral, a forma como os cidadãos podem votar, é um deles – não estamos sequer a falar da alteração do sistema eleitoral. Outro assunto relacionado, é a eterna desactualização dos cadernos eleitorais, que Marina Costa Lobo calcula terem mais de um milhão de inscritos a mais.

É desleixo e desinteresse a mais, este que permite que isto se mantenha em 2021, mais de 50 anos depois do homem ter ido à Lua.

Mas o que se está a passar com as regras de voto em tempo de pandemia consegue superar tudo. Já passaram quase dois anos desde que o vírus virou as nossas vidas de pernas para o ar. Vamos para o terceiro acto eleitoral realizado em situação de pandemia e o Parlamento e a administração eleitoral ainda não conseguiram encontrar uma forma de permitir que todos os eleitores possam exercer o seu direito, mesmo estando em isolamento obrigatório.

De acordo com as regras definidas há mais de um ano, para as eleições presidenciais de Janeiro de 2021, os eleitores em isolamento obrigatório só podem exercer o seu direito se se inscreverem para o voto antecipado. Mas mesmo assim só o podem fazer os cidadãos a quem a medida de isolamento obrigatório tenha sido decretada pelas autoridades de saúde “até ao oitavo dia anterior ao do sufrágio e por um período que inviabilize a deslocação à assembleia de voto” (os diplomas estão aqui e vale a pena consultá-los para se perceber os meandros burocráticos de tudo isto). Ou seja, todos aqueles que entrem em isolamento a partir do dia 23 de Janeiro estão proibidos de votar na eleição do dia 30 porque estão legalmente impedidos de sair de casa para se deslocarem à mesa de voto e o Estado não lhe dá nenhuma alternativa a isso.

Nas eleições presidenciais estas regras impediram mais de 130 mil pessoas de votar – isto contando apenas os infectados, sem considerar os que estavam em isolamento por terem tido contactos de risco.

Nas eleições autárquicas foram mais umas dezenas de milhares. E agora, quantos serão?

À CNN Portugal, especialistas dizem que na primeira semana de Janeiro haverá cerca de 600 mil portugueses em isolamento obrigatório. E na última semana? Ninguém saberá como vai evoluir a pandemia até lá ou se as próprias medidas de contenção vão ser alteradas. Mas há o risco de termos uma fatia significativa de eleitores a quem é proibido o direito de voto. Se há risco, e esse risco nem sequer é novo, o que legisladores previdentes deviam ter feito era tomar medidas atempadas para diminuir ao máximo o impacto caso esses riscos se materializem.

Isso não foi feito em Portugal, como se vê. Mas vários países encontraram formas de conciliar os cuidados sanitários com o direito de voto o mais alargado possível.

Na Catalunha, nas regionais de Fevereiro de 2021, a última hora de funcionamento das mesas de voto foi reservada exclusivamente para eleitores em isolamento obrigatório, evitando assim a proximidade destes com a restante população.

Na Alemanha, nas legislativas de Setembro (no mesmo dia das nossas autárquicas), mais de 40% dos eleitores votaram por correio. Esta forma de voto está mais popularizada no país também porque é fácil de exercer. Por regra, o boletim de voto pode ser recolhido até ao final da tarde da sexta-feira anterior ao domingo eleitoral. Mas, excepcionalmente, os eleitores em isolamento puderam levantar o seu boletim até às 15h00 do próprio dia da eleição, nas estações de voto, através de uma pessoa devidamente autorizada.

No dia anterior, 25 de Setembro, também houve eleições parlamentares na Islândia. Aqui, o menu de possibilidades para o eleitor é ainda mais diversificado. Quem por motivos de saúde quiser votar em casa, tem até às 10h00 da antevéspera da eleição para fazer esse pedido.

E os eleitores que estavam em isolamento obrigatório puderam votar em mesas de voto no regime “drive-thru”, sem saírem do carro. Em alternativa, puderam requisitar o voto em casa. E até quando podiam fazer esse pedido? Inscrevendo-se numa plataforma electrónica até oito dias antes, como em Portugal? Não, os islandeses tinham até às 10h00 do próprio dia das eleições se estivessem no seu círculo eleitoral – o que é obrigatório em Portugal para a votação presencial regular.

Há outros exemplos do que está a ser feito por todo o lado e nem é preciso muito para os conhecer com detalhe.

O que, neste caso, diferencia estes países do nosso não é o acesso a tecnologia de ponta ou o facto de poderem ter mais meios para montar processos eleitorais. O que têm é legisladores e administrações de processos eleitorais mais previdentes, planeadores e organizados. E têm, sobretudo, vontade de resolver problemas e um respeito pelos cidadãos e eleitores que contrasta com o desleixo e desprezo que a Assembleia da República tem demonstrado em todo este processo. Bastava um pouco de zelo e vontade para se ter encontrado uma forma para reduzir este dano. Podia nem ser o método perfeito mas pelo menos daria aos cidadãos a mensagem certa: o voto de cada um é sagrado e tudo faremos para que todos possam exercê-lo.

Será inaceitável que, nos 30 dias que faltam para as eleições, Parlamento e partidos não resolvam esta questão ou que não dêem a cara para explicar porque não o fazem.

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