Ao fim de 25 anos, há acordo comercial entre a UE e o Mercosul. Em que consiste?
- Jéssica Sousa
- 7:05
Após décadas de negociações, UE, Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai firmaram um acordo comercial que elimina tarifas e promove novos produtos entre os dois mercados. E agora? O que se segue?
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O que é o acordo UE-Mercosul?
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Qual é o peso da Europa no mercado do Mercosul?
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Porque demorou tanto a ser alcançado?
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Em que consiste?
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Quais as diferenças entre o acordo de 2019 e a versão final de 2024?
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De que forma os consumidores saem beneficiados?
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E os timings? Têm alguma relevância?
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Quando entra em vigor?
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Como reagiu Portugal?
Ao fim de 25 anos, há acordo comercial entre a UE e o Mercosul. Em que consiste?
- Jéssica Sousa
- 7:05
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O que é o acordo UE-Mercosul?
A sigla Mercosul refere-se ao Mercado Comum do Sul que abrange quatro países da América Latina: o Brasil, o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. A Bolívia está ainda em processo de adesão e a situação política na Venezuela obrigou à suspensão do processo naquele país, para já.
Desde a sua criação, em 1994, que o Mercosul e a União Europeia (UE) têm vindo a trabalhar na construção de um acordo de livre comércio entre os dois blocos económicos, com vista a eliminar quase todos os direitos aduaneiros sobre o comércio entre os dois lados, mas nunca foi possível superar os obstáculos. Em 2019, as negociações para o acordo ficaram mesmo suspensas a pedido de França.
Mas este ano, Portugal, Espanha, Alemanha e mais nove países da União Europeia urgiram que a Comissão Europeia desse por concluída as negociações até ao final do ano, com vista a poder tirar partido desta zona de comércio livre numa altura em que as relações com outros mercados, como os Estados e Unidos e a China, passam por dificuldades e o bloco europeu assiste a uma perda de competitividade expressiva.
Depois de cinco anos com as conversações paralisadas, a 6 de dezembro de 2024 os dois blocos anunciaram, finalmente, ter firmado a um acordo político. Este acordo é o maior alguma vez celebrado pela UE e o único desta dimensão com quem o Mercosul tem e permite remover barreiras comerciais, facilitar às empresas da UE a venda de bens e serviços ao Mercosul, bem como a realização de investimentos. Por outro lado, deverá ainda ajudar a garantir acesso sustentável a matérias-primas.
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Proxima Pergunta: Qual é o peso da Europa no mercado do Mercosul?
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Qual é o peso da Europa no mercado do Mercosul?
Atualmente, o bloco europeu é o segundo maior parceiro comercial de mercadorias do Mercosul, depois da China e à frente dos Estados Unidos, representando cerca de 17% do comércio total naquela região, em 2023. Nesse ano, as exportações europeias para aqueles quatro países ascenderam os 56 mil milhões de euros em bens e 28 mil milhões de euros em serviços, segundo as contas da Comissão Europeia.
Embora o bloco já tenha em vigor acordos comerciais com quase todos os outros países da América Latina, a conclusão deste acordo em particular permite aos 27 Estados-membros e aos quatro países do Mercosul melhores condições para exportar e importar bens e serviços.
Proxima Pergunta: Porque demorou tanto a ser alcançado?
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Porque demorou tanto a ser alcançado?
A 28 de junho de 2019, as duas partes envolvidas redigiram uma primeira versão do acordo político. No entanto, vários países de ambos os lados do Atlântico manifestaram hesitações que atrasaram a ratificação do documento final.
Em França, o acordo (ainda) não convence os agricultores. Segundo estes trabalhadores, existe um risco deste acordo promover uma concorrência desleal entre os dois blocos. Assim, exigem que sejam adotadas cláusulas-espelho para que as exportações de bens e serviços provenientes da América Latina sigam as mesmas regras e regulamentos que os produtos europeus que são exportados para lá. Um exemplo, prende-se com a exportação de carne bovina. Os agricultores franceses apontam que a criação de bovinos em países como o Brasil ou Argentina não respeitam as mesmas normas sanitárias e ambientais que na Europa, sendo estes animais criados com custos laborais mais baixos o que, por sua vez, torna o produto final mais barato.
Do lado da Comissão Europeia, é, no entanto, garantido que, ao abrigo do acordo, “qualquer produto que entre no mercado da UE deve cumprir as rigorosas normas de segurança alimentar da UE“.
Mas para além dos agricultores, mais de 600 deputados franceses, de vários partidos políticos, expressaram descontentamento em relação à proposta comercial num artigo de opinião publicado no Le Monde, argumentando que o acordo não cumpre “os critérios democráticos, económicos, ambientais e sociais definidos pela Assembleia Nacional e pelo Senado”.
Outro bloqueio proveio do Brasil, especificamente durante a governação de Jair Bolsonaro. O acordo prevê um compromisso juridicamente vinculativo aos países do Mercosul de pôr termo à desflorestação ilegal até 2030, algo que não agradou o antigo presidente brasileiro que bloqueou as negociações durante o seu mandato. Mas com o regresso de Lula da Silva à presidência, o acordo ultrapassou esse obstáculo e assim, a partir de 2025, apenas os produtos livres de desflorestação poderão entrar no mercado da UE, incluindo a soja, a carne bovina, o óleo de palma, a madeira, o cacau e o café.
Proxima Pergunta: Em que consiste?
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Em que consiste?
O acordo tem como objetivo principal facilitar o comércio entre a Europa e a América do Sul, eliminando gradualmente e de forma geral as taxas aduaneiras (que variam entre os 10% e os 55%) sobre 91% do comércio entre os dois blocos. Von der Leyen estima que as empresas da UE consigam poupar até quatro mil milhões de euros em direitos de exportação por ano ao abrigo do acordo.
Entre os produtos visados, o acordo permite a eliminação de taxas aduaneiras sobre produtos industriais europeus exportados para aquela região tais como:
- Automóveis (atualmente tributados a 35%) e os respetivos componentes (tributadas entre 14% e 18%);
- Maquinarias (entre 14% e 20%);
- Produtos químicos (até 18%);
- Vestuário (até 35%);
- Produtos farmacêuticos (até 14%);
- Calçado de couro (até 35%);
- Têxteis (até 35%)
O acordo também eliminará progressivamente os direitos sobre as exportações de produtos alimentares e bebidas da UE, tais como:
- Vinho (27%);
- Chocolate (20%);
- Uísque e outras bebidas espirituosas (entre 20% e 35%);
- Bolachas (entre 16% e 18%);
- Conservas (até 55%);
- Refrigerantes (entre 20% a 35%)
Em sentido contrário, o acordo eliminará igualmente as taxas aduaneiras sobre 92% dos produtos do Mercosul exportados para a UE, em especial no que se refere aos produtos agrícolas como o trigo, milho, açúcar ou soja, mas também commodities de grande valor como petróleo, madeira, ferro e outros minerais.
O acordo também permite facilitar as condições de mercado, assegurando:
- Simplificação e estandardização de normas, regulamentos e procedimentos;
- Melhores condições de comércio para pequenas e médias empresas (PME). Atualmente, cerca de 30 mil PME exportam para o Mercosul, permitindo alargar esse leque;
- Melhores condições de investimento em qualquer um dos blocos;
- Promoção de melhores condições ambientais (por via do Acordo de Paris), sociais e laborais;
- Melhores condições para o comércio digital;
- Proteção da identificação geográfica de certos produtos (Prosciutto di Parma italiano; champanhe francês; vinho do Porto português; uísque irlandês, cachaça brasileira ou vinho Mendoza argentino);
- Promoção de diálogo político entre os dois blocos, facilitando a cooperação em áreas como a migração, economia digital, criminalidade, educação e proteção de comunidades indígenas;
Ademais, o acordo político permite enviar um sinal claro contra o protecionismo numa altura em que várias economias mundiais, como os Estados Unidos, evoluem em sentido contrário.
Proxima Pergunta: Quais as diferenças entre o acordo de 2019 e a versão final de 2024?
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Quais as diferenças entre o acordo de 2019 e a versão final de 2024?
Existem algumas diferenças entre o acordo político agora alcançado e a primeira versão de há cinco anos, antes de as negociações terem sido descongeladas.
Ambientais
- Por um lado, foi adotado um chamado “mecanismo de reequilíbrio”, que permite uma compensação se uma das partes considerar que as novas medidas políticas anulam ou prejudicam os benefícios do acordo comercial. No entanto, não é claro se este mecanismo pode ser acionado relativamente às regras anti-desflorestação ou mesmo sobre as limitações sobre as emissões de carbono — duas cláusulas que foram adotadas no acordo final e que visam garantir que países como o Brasil e a Argentina respeitam os critérios ambientais europeus.
- Por outro, o acordo permite que a nova relação comercial seja suspensa, parcial ou totalmente, se uma das partes considerar, com base em factos, que a outra violou obrigações essenciais do Acordo de Paris. A redação prevê “consultas urgentes” para procurar uma solução mutuamente acordada, bem como um período de revisão, antes de qualquer suspensão poder entrar em vigor.
Automóveis
- Foi adotado um calendário mais claro sobre o fim da cobrança das taxas aduaneiras sobre os produtos importados pelo Mercosul. No caso dos automóveis, estes levarão entre 18 e 30 anos a serem reduzidos a zero. Os veículos elétricos e híbridos serão os que mais rapidamente verão as suas taxas reduzidas, com uma primeira redução de 29% assim que o acordo entrar em vigor, ‘zerando’ ao fim de 18 anos. Já os veículos movidos a hidrogénio só terão a sua primeira redução tarifária após seis anos de vigência do acordo. Em sentido contrário, os automóveis de combustão continuarão a ser tributados até ao 29º ano após a aplicação do acordo.
Matérias-primas críticas
- Numa altura em que a União Europeia procura diversificar as suas fontes de matérias-primas críticas, como o níquel, o cobre, o alumínio, as matérias-primas siderúrgicas, o germânio ou o gálio, não serão aplicadas, nesta fase inicial, taxas aduaneiras sobre estas exportações que venham do Brasil nem sobre o lítio da Argentina. O acesso às matérias-primas era um objetivo crucial para a UE nas suas negociações com o Mercosul.
Proxima Pergunta: De que forma os consumidores saem beneficiados?
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De que forma os consumidores saem beneficiados?
Em termos muito gerais, o acordo criará as condições para que os consumidores europeus tenham à sua disposição uma gama mais ampla e acessível de produtos e serviços, uma vez que passarão a estar disponíveis mais produtos provenientes daquele continente a preços mais competitivos.
Proxima Pergunta: E os timings? Têm alguma relevância?
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E os timings? Têm alguma relevância?
De certa forma. Por um lado, a Comissão Europeia só poderia retomar as negociações depois de o colégio de comissários estar formalmente em funções, algo que só aconteceu a 1 de dezembro.
Depois, do ponto de vista económico, a UE debate-se com um crescimento lento e uma perda de competitividade significativa face aos Estados Unidos e a China — dois países que têm trilhado caminho de modo a garantir acesso a mercados e recursos críticos. Assim, tornou-se fundamental fechar o acordo com o Mercosul pois abrange uma zona comercial com 780 milhões de pessoas, dos dois lados do Atlântico.
Ademais, as incertezas geopolíticas expuseram ainda mais as vulnerabilidades da Europa no domínio da energia e das cadeias de abastecimento, mas também o facto de o continente carecer de novos aliados estratégicos. Isto sobretudo numa altura em que a influência da China continua a aumentar na América do Sul e em África.
Por fim, com a reeleição de Donald Trump e a incerteza quanto ao futuro das relações transatlânticas entre a UE e os Estados Unidos, tornou-se fundamental acertar novos acordos comerciais.
Proxima Pergunta: Quando entra em vigor?
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Quando entra em vigor?
A expectativa é de que os primeiros passos para concretização do acordo sejam dados já em 2025, mas não é certo que assim aconteça.
Embora o acordo político já tenha sido formalizado entre o executivo comunitário e os governos dos quatro países daquela região, este é “apenas uma primeira fase de um longo processo”, de acordo com a Comissão Europeia.
Por cá, uma vez traduzido para o idioma de cada Estado-membro, o acordo terá de ser retificado pelos ministros de cada país com o pelouro do comércio no Conselho da União Europeia (órgão que atua como o Conselho de Ministros), e no final adotado pelo Conselho Europeu. É aqui que a batalha será travada nos próximos meses, considerando a contestação de países como a França, a Polónia e a Irlanda.
Para Emmanuel Macron, o momento é particularmente delicado. Além de estar à frente de um país que está mergulhado numa crise política, o presidente francês vê-se confrontado com um descontentamento crescente em várias frentes e este acordo arrisca alienar ainda mais os eleitores rurais que já se sentem negligenciados. Na rede social X (ex-Twitter), o Eliseu chegou a considerar o acordo na sua forma atual como “inaceitável”.
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Certo é que para o acordo ficar concluído, será necessário a ‘luz verde’ de pelo menos 15 Estados-Membros que representem, no seu conjunto, 65% da população do bloco. Depois de aprovado, será necessário o texto descer ao Parlamento Europeu. Esta aprovação aplica-se apenas às disposições que são da competência exclusiva do hemiciclo em Estrasburgo, principalmente aquelas relacionadas com a liberalização do comércio, e que não requerem a ratificação pelos parlamentos nacionais.
Em sentido contrário, para a sua rejeição, será necessário apenas o voto contra de quatro Estados-membros que representem 35% da população europeia.
Já do outro lado do Atlântico, a proposta terá de ser aprovada pelos parlamentos do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. No entanto, mesmo que nem todos o adotem, o acordo entrará em vigor para aqueles que o aprovem.
Proxima Pergunta: Como reagiu Portugal?
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Como reagiu Portugal?
De forma geral, a reação do Governo e dos empresários portugueses ao acordo político alcançado foi positiva.
À Lusa, o ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, afirmou que “Portugal tem um défice de comércio agroalimentar de 517 milhões de euros por ano” com os países do Mercosul. Agora com este acordo, existem condições para a redução desta diferença, sobretudo com as exportações de vinho e azeite. Sem o acordo de parceria com os quatro membros do Mercosul, Portugal tem de pagar taxas alfandegárias de 10% para exportar e que vão até aos 26% e 38% no vinho e no queijo, explicou o ministro.
Já os representantes dos empresários portugueses e a AICEP Brasil aditaram à Lusa que o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul vai impulsionar as exportações portuguesas agroalimentares para o gigante sul-americano.
No entanto, à semelhança dos agricultores franceses também os portugueses manifestaram reservas. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) defendeu à Lusa que o acordo foi negociado de forma antidemocrática contra o interesse dos agricultores, pedindo ao Governo que não o ratifique. Segundo a CNA, a negociação do acordo foi envolta em secretismo, exigindo assim conhecer toda a sua extensão e não apenas o que resulta “da propaganda que a União Europeia fez” após o anúncio da sua assinatura.