Hard, soft ou no deal? Um guia para perceber o Brexit
- Ana Sofia Franco
- 2 Setembro 2018
Do casamento atribulado ao "divórcio" entre o Reino Unido e a União Europeia, o ECO explica-lhe em que andar estão as negociações e os cenários possíveis do Brexit neste descodificador.
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- Ana Sofia Franco
- 2 Setembro 2018
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Um casamento "complicado". Como chegou o Reino Unido ao “leave” da União Europeia?
Estado da relação: “É complicado”
Desde o primeiro dia que a adesão do Reino Unido à atual União Europeia é controversa, dividindo o país a meio, entre o receio de uma perda de soberania e o receio de ficarem isolados. Foi tarde que o país deu entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), criada em 1957, depois de um primeiro pedido recusado em 1963, o Reino Unido junta-se à CEE dez anos depois — em 1973 –, juntamente com a Dinamarca e a Irlanda.
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Dois anos depois, em 1975, o país realiza o primeiro referendo sobre a permanência no bloco. O “sim” ganha com 67% dos votos, marcando o início de uma era de um membro problemático e com uma grande parte da população eurocética.
Em 1984, sob o governo de Margaret Thatcher, o país ganha o chamado “cheque britânico”: um acordo que permite ao Reino Unido um desconto de 66% nas suas contribuições líquidas, ou seja, passou a receber da CEE a diferença entre a contribuição que dá para os fundos europeus e o que recebe em troca.
Entre outros marcos importantes, o Reino Unido ficou de fora da União Económica e Monetária (1992), recusando a moeda única e a zona euro, e de fora do Espaço Schengen (1995).
Em 2013, depois de pressões do UKIP (partido eurocético liderado por Nigel Farage) e do próprio partido Conservador, David Cameron propõe renegociar os termos da associação do Reino Unido com a União Europeia e a agendar um referendo sobre uma possível saída da UE, caso voltasse a ser reeleito em 2015.
Com Cameron outra vez no governo, cumpre-se o prometido e dá-se um novo referendo a 23 de junho de 2016, com o “leave” a ganhar por 51,8%. Era o início do fim de um “casamento” de 65 anos entre Reino Unido e Europa.
Em cima da mesa estavam argumentos como o maior controlo da imigração, maior soberania económica e maior liberdade para negociar novos acordos com outros blocos e países, como bandeira dos pró-Brexit. Na sequência do resultado do referendo, David Cameron demite-se. Theresa May, líder do partido Conservador, foi nomeada primeira-ministra e decidiu avançar com o compromisso do governo com o Brexit.
Proxima Pergunta: O Reino Unido quis o divórcio. E agora?
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O Reino Unido quis o divórcio. E agora?
Para poder sair formalmente da União Europeia, o Reino Unido invocou o artigo 50.º do Tratado da União Europeia (TUE). Este artigo, introduzido pela primeira vez no Tratado de Lisboa em 2007, prevê a saída de um estado-membro da UE, caso seja esse o seu desejo, e define o seu procedimento em cinco pontos-chave:
- Qualquer Estado-Membro pode decidir retirar-se da UE por iniciativa própria, em conformidade com as respetivas normas constitucionais;
- Uma vez decidido, deve notificar a sua intenção ao Conselho Europeu. A partir desse momento, a União negocia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. O acordo é celebrado em nome da UE pelo Conselho, que delibera por maioria qualificada — 72 % dos 27 Estados-Membros, ou seja, 20 Estados-Membros que representem 65 % da população da UE-27 — após aprovação do Parlamento Europeu.
- Os tratados europeus deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa assim que o acordo de saída entrar em vigor. Caso não exista acordo após dois anos da ativação do Artigo 50, os tratados europeus ficam na mesma sem efeito — a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado-Membro em causa, decida por unanimidade alargar o prazo para lá dos dois anos;
- O Estado-Membro que queira sair da UE não participa nas deliberações nem nas decisões do Conselho Europeu que lhe digam respeito — ou seja, não pode estar nos dois lados da mesa de negociação;
- Qualquer Estado-Membro que tenha saído da UE pode pedir para voltar a entrar — mas terá de passar por um novo processo de adesão, igual ao que têm de se submeter todos os países que querem entrar pela primeira vez na UE.
Para acionar o artigo, o estado-membro deve notificar o Conselho Europeu da sua intenção de se retirar da União.
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Theresa May acionou-o a 29 de março de 2017. A partir daí, começaram as difíceis negociações sobre um possível acordo de saída para o Reino Unido da UE. Têm até 29 de março de 2019 para as concluir, quer tudo esteja acertado, quer não. O relógio está em contagem decrescente. Faltam cerca de sete meses.
Proxima Pergunta: Em que andar estão as negociações?
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Em que andar estão as negociações?
Desde o fim de julho que é a própria Theresa May que lidera as negociações do Brexit, juntamente com o seu novo ministro para essa pasta — Dominic Raab. Isto depois das três demissões seguidas no governo de May — David Davis, ministro para o Brexit, o seu adjunto, Steve Baker, e Boris Johnson, ministro dos negócios estrangeiros — em menos de 24 horas entre o dia oito e nove desse mês.
Em causa esteve a discórdia entre estes “thories” e o plano de Theresa May para as relações com a União Europeia após o Brexit. Dividida em 12 pontos e por 98 páginas, a proposta do governo apresentada à UE passava por criar uma zona de comércio livre entre o Reino Unido e a União Europeia e defendia um mercado comum de bens britânico-comunitário com alguma harmonização da regulamentação, o que para estes conservadores, apologistas de um hard-Brexit, representava deixar o país exposto a fragilidades.
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Do lado da União Europeia também não houve luz verde. May tentou avançar com este acordo amigável, mas nem os próprios britânicos nem Bruxelas aceitaram o documento. O que prova que as negociações não estão a ser fáceis, com a data para a saída oficial cada vez mais perto. Mas o que é que tem impedido o acordo de avançar e o que é que já está decidido?
Os termos da saída
A União Europeia e o Reino Unido já tinham conseguido chegar a um acordo preliminar em dezembro de 2017 sobre três alíneas do divórcio — marcado para as 23 horas de sexta-feira 29 de março de 2019:
- A conta da saída, ou seja, quanto é que Londres terá de pagar a Bruxelas — definido, para já, na casa dos 40 a 45 mil milhões de euros, sendo este um valor passível de alterações até ao fim do Brexit, depois de o Reino Unido ter acordado em contribuir para o orçamento da UE até 2020 e em honrar todos os compromissos adquiridos;
- A questão da fronteira da Irlanda do Norte com a República da Irlanda — sendo este um ponto que ainda não está totalmente consolidado, uma vez que até agora não há um acordo definido, e que tem sido um obstáculo nas negociações, com as duas partes a procurarem uma proposta alternativa para evitar delinear uma fronteira física entre os dois países;
- A questão de preservar os direitos de cerca de três milhões de cidadãos europeus a viver no Reino Unido, e de mais de um milhão de britânicos a viver em países da União Europeia durante o processo, que poderão reivindicar o estatuto de residente permanente.
As datas do Brexit:
Período pós-Brexit
Os 27 aprovaram, no fim de janeiro, o princípio de “uma transição statu quo” em que se mantenham a livre circulação de bens, serviços e pessoas, embora Londres já não possa pronunciar-se sobre as decisões da UE e em março, depois de um fim de semana de negociações, as duas partes conseguiram chegar a acordo político sobre o período de transição da saída do Reino Unido da União Europeia. O período de transição será de duração limitada, durante cerca de 21 meses, e termina no dia 31 de dezembro de 2020.
E a nível comercial?
A pretensão do Reino Unido com o Brexit passa por abandonar o mercado único e a união alfandegária para poder negociar os seus próprios acordos comerciais e dar fim à liberdade de circulação de cidadãos europeus. Contudo, deseja alcançar um acordo de livre-comércio “o mais amplo possível” (como o apresentada por Theresa May, mas que foi “chumbado” pela UE”).
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Do lado da UE, defende-se que o futuro acordo de livre-comércio deva preservar a indivisibilidade de seu mercado único, lembrando um de seus princípios básicos nesta negociação: nada de comércio “à la carte”, setor por setor.
Se não houver acordo, serão aplicadas as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre o Reino Unido, o que equivale a ter barreiras alfandegárias. Em agosto, as duas partes anunciaram que as negociações vão decorrer agora de forma contínua, para tentar ultrapassar os pontos de discórdia. O anúncio foi feito por ambos os lados, depois de novas conversações, em Bruxelas. O ministro para o Brexit, Dominic Raab, espera que em outubro o acordo seja finalmente alcançado.
Já do lado europeu, Michel Barnier, negociador principal da UE, disse que o acordo tem de ser atingido até ao início de novembro. “Acordámos que a União Europeia e o Reino Unido vão negociar de forma contínua de agora em diante. Como disse em julho, estamos muito mais avançados na definição de um terreno comum para a política externa e a segurança do que para a relação económica“, referiu.
Proxima Pergunta: Quais são os cenários possíveis do acordo com a UE?
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Quais são os cenários possíveis do acordo com a UE?
Se no fim das negociações houver um acordo para a saída do Reino Unido da UE, existem duas formas possíveis de a designar: ou será um “soft-Brexit” ou um “hard-Brexit”. Mas o que distingue, afinal, um do outro?
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Soft Brexit
Esta é o desenlace mais aguardado por quem votou para que o Reino Unido pudesse permanecer na UE. Quando se fala em “soft-Brexit”, refere-se à possibilidade de um acordo que mantenha o Reino Unido estritamente alinhado com a União Europeia, depois de sair do bloco. Os defensores desta abordagem acreditam que desta maneira o impacto na economia e no orçamento britânicos não será tão negativo depois da saída.
Na prática, numa situação de “soft-Brexit”, o Reino Unido poderá ter acesso tanto ao mercado único como à união aduaneira da União Europeia. Por outras palavras, permitiria ao país deixar a UE, mas permanecer no Espaço Económico Europeu.
Em contrapartida, isso significaria que o país continuaria a ficar ligado às normas e regulamentação europeias. Outra consequência inevitável de um acordo destes seria o facto de tornar os acordos comerciais com países terceiros praticamente impossíveis.
Hard Brexit
Por outro lado, um “hard-Brexit” rejeita totalmente a ideia de se manter um alinhamento próximo com a União Europeia, ao colocar os direitos e interesses dos cidadãos britânicos em primeiro lugar, o que significaria para o Reino Unido perder alguns privilégios exclusivos dos estados-membros, como ter de desistir do acesso pleno ao mercado único, à união aduaneira e à livre circulação de pessoas e bens. Contudo, desta forma, o país ficava livre das pesadas regulamentações e tarifas do bloco.
Ao mesmo tempo, sair da UE por esta via permitiria ao Reino Unido ter um controlo total sobre as suas fronteiras e aplicar medidas de regulação mais rígidas, fora do princípio de Dublin e de outros tratados europeus que regulam a imigração e a livre circulação dentro do bloco.
Além disso, um “hard-Brexit” mudaria as regras do jogo para os britânicos a nível comercial — tanto com os países de dentro como de fora da UE –, ao libertar o Reino Unido para poder fazer novos acordos comerciais e elaborar as suas próprias regras e procedimentos alfandegários. Este desfecho teria um impacto em praticamente todos os tratados bilaterais e multilaterais de que o país faz parte, ficando sujeito às regras da OMC para o comércio com seus ex-parceiros da UE. Este é o caminho que os “Brexiteers” mais fervorosos esperam conseguir no fim das negociações.
Tweet from @lsebrexitvote
A política para o Brexit de Theresa May tem passado, desde o início, por trazer de volta o controlo das leis, das fronteiras e do dinheiro ao Reino Unido, ao mesmo tempo que insiste em deixar tanto o mercado único como a união aduaneira — uma estratégia mais próxima de um “hard-Brexit”.
Ainda assim, o governo britânico já acordou com Bruxelas num período de transição até 2020, durante o qual estará sujeito às regras da União. Também o documento que May apresentou para a saída do bloco, agora em julho, e que reuniu o consenso do governo, já pendia mais para o “soft-Brexit”.
À medida que as negociações se intensificam dos dois lados, muitos esperam que o resultado final do acordo seja provavelmente uma saída com elementos tanto de um “soft” como de um “hard” Brexit. Ou seja, um acordo que implique cedências de parte a parte.
Proxima Pergunta: E se não se chegar a acordo?
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E se não se chegar a acordo?
Ainda assim, as negociações não têm tido muito êxito até agora, pelo que alcançar um acordo entre Reino Unido e UE pode mesmo não acontecer até março de 2019. Segundo o artigo 50.º, caso não haja acordo até essa data, “a circulação livre de bens entre o Reino Unido e a União Europeia acaba” automaticamente, a não ser que os 27 membros concordem em estender o tempo de negociação.
Existe ainda a possibilidade de haver acordo entre as duas partes, mas este ser rejeitado no parlamento britânico. Portanto sair da UE sem acordo parece um resultado não muito longínquo para o Reino Unido.
O que acontece se as negociações acabarem em “no deal”?
A antecipação deste cenário começa a ser tanta que o próprio governo publicou, no passado dia 22 de agosto, 25 notas técnicas, de um total de 80, com conselhos aos britânicos e às empresas para uma eventual saída da UE sem acordo.
Em causa estão algumas regras da União Europeia (UE) que o Reino Unido vai aceitar cumprir, além de manter o acesso das empresas de serviços financeiros europeias ao mercado britânico para manter a estabilidade, no caso “improvável” de uma saída sem acordo, segundo as medidas anunciadas pelo ministro para o Brexit, Dominic Raab.
Tweet from @DanielHewittITV
As empresas financeiras de países da UE estão autorizadas a continuar a operar no Reino Unido durante até três anos, mas o Governo britânico não garante que o inverso ocorra. Já os consumidores britânicos devem preparar-se para pagar o crédito mais caro na compra de produtos da UE e os que vivem no estrangeiro podem perder o acesso às suas contas bancárias no Reino Unido.
O país, segundo disse Raab, está determinado a “gerir os riscos e abraçar as oportunidades” da saída da UE e continua a trabalhar para chegar a um acordo, mas tem a obrigação de preparar uma eventual saída sem acordo. “Não é o que queremos, não é o que esperamos, mas temos de estar preparados”, concluiu o ministro.
Sem comida durante um ano
Também este mês, já a União Nacional de Agricultores do Reino Unido (NFU) previu que daqui a um ano o país fique sem comida, caso saía da UE sem acordo.
“O setor agrícola tem potencial para ser o mais afetado se se concretizar um mau Brexit. É essencial para este setor que seja celebrado um acordo de livre comércio com a UE, sem que haja atrito”, afirmou em declarações a presidente desta organização, Minette Batters, que já pediu ao governo que colocasse a produção alimentar no topo da agenda política, dada a possibilidade de um “no deal Brexit”.
Tweet from @NFUPress
Segundo a pesquisa da NFU, sem um acordo definido para sair da UE, o Reino Unido ficará sem mantimentos suficientes a 7 de agosto de 2019, caso o país venha a depender apensar do que produz.
Planos de contingência em marcha
Estão já em marcha planos de emergência para que o exército britânico esteja pronto a distribuir comida, medicamentos e combustíveis, caso estes bens escasseiem numa situação de saída da UE sem acordo com Bruxelas.
Até planos de ação das Forças Armadas para dar assistência às autoridades civis em caso de emergência foram já recuperados: helicópteros e camiões militares podem ser usados para entregar bens a cidadãos mais vulneráveis; os supermercados já estão a avisar os seus fornecedores para enviarem carregamentos reforçados de alguns alimentos, como chá e café.
Fonte do Ministério da Defesa britânico afirmou que ainda não foi feito nenhum pedido formal para prestar ajuda à população civil, mas reconheceu que “os planos de emergência em caso de crise podem ser ativados”.
Queda acentuada da libra
Sem acordo, também os mercados financeiros vão mexer. Nesse cenário, uma queda da libra esterlina é certa. Aliás, desde o referendo que os movimentos da libra têm estado sujeitos aos altos e baixos do Brexit.
Segundo uma pesquisa recente da Pantheon Macroeconomics, se nenhum acordo se concretizar a libra poderá cair mais de 10% em relação aos níveis atuais, atingindo o valor mínimo de 1,15 dólares até ao fim de março de 2019.
Proxima Pergunta: E em que estado ficou a situação financeira do Reino Unido?
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E em que estado ficou a situação financeira do Reino Unido?
Desde que o Reino Unido votou pela saída da União que a situação económica do país tem estado instável. Logo no dia seguinte ao referendo, a libra caiu mais de 8%. Entre os impactos negativos que se têm feito sentir está a desaceleração do crescimento do PIB, a diminuição da rentabilidade das empresas, o aumento das insolvências e o atraso nos pagamentos das empresas.
Segundo a ONS, a agência nacional de estatística britânica, o Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido cresceu 0,1% no primeiro trimestre de 2018 — sendo este o ritmo mais lento desde 2012 –, o que reflete uma desaceleração da economia britânica, depois de um crescimento de 0,4% no último trimestre de 2017.
Uma forte queda do setor da construção, um setor industrial lento e a desaceleração do crescimento do setor dos serviços contribuíram para esta baixa taxa de crescimento.
O Banco de Inglaterra já aumentou as taxas de juro de 0,5% para 0,75%, como medida de combate à inflação. Esta é a taxa de referência mais alta desde 2009. O banco central indica que a economia britânica está a operar à velocidade máxima, apesar de ter desacelerado por causa do processo do Brexit.
O clima de incerteza sobre um acordo ou não continua a pesar sobre a economia britânica, que será tanto mais afetada quanto mais duro for o Brexit, marcado para fim de março de 2019. O Banco de Inglaterra espera, no entanto, que a economia britânica cresça 1,14% este ano, mas que atinja uma média de crescimento de 1,75% ao ano até ao final de 2020.