“A seca combate-se com as autoestradas da água, não com seguros agrícolas”

Filipe Charters de Azevedo é agente de subscrição de seguros agrícolas em nome das companhias e junto dos agricultores. Diz que o Estado está a subsidiar prejuízos em vez de incentivar boas práticas.

Os seguros agrícolas voltam sempre à berlinda quando há muita chuva, muita seca ou incêndios. Os agricultores queixam-se de pouca proteção e do preço. O facto é que um tipo de seguro que rende em prémios cerca de 30 milhões de euros por ano serve para pagar prejuízos muito maiores. Apenas tem mobilizado as grandes companhias, Tranquilidade e Fidelidade, e também a CA Seguros, pela ligação do Crédito Agrícola aos agricultores e à dispersão das 617 agências. Mais recentemente, as seguradoras Caravela, Lusitânia e UNA têm sido estimuladas a entrar no mercado.

Filipe Charters de Azevedo e a Safe-Crop, a sua agência de subscrição em nome das seguradoras, tem sido um dos mais ativos agentes da mudança nos seguros agrícolas. Em entrevista ao ECOseguros, explica a situação atual do setor, adianta soluções de curto prazo e aponta as de futuro.

Os seguros agrícolas, assim como todos os tipos de seguros, cobrem eventos aleatórios e fora do controle dos segurados. Por que surgem tantas questões em torno dos seguros de colheita?

É simples: há uma tentativa de transformar os seguros agrícolas em subsídios disfarçados. Ao tentar ajudar, prejudica-se.

Como por exemplo…

Nalgumas culturas perde-se, todos os anos, 30% da produção potencial devido a vários fenómenos meteorológicos. Se a perda é certa, se há uma perda regular e sistemática, esse valor não pode ser segurado – trata-se de um custo operacional, não de um risco.

Em casos como este, costuma-se aplicar uma franquia: os primeiros 30% de perda são do cliente. Se o produto é de alta qualidade, os consumidores irão pagar mais, ou os produtores deverão encontrar formas de proteção contra essas perdas sistemáticas, adquirindo sistemas antigeada, antigranizo, etc. Ou, em casos extremos, mudar de cultura.

Até aqui tudo bem. Isto é o normal. Porém, as apólices dos seguros de colheita são uniformes, são definidas por lei. Do lado das seguradoras, não temos permissão para alterar as condições da franquia. Ou seja, de acordo com a lei e simplificando um pouco o processo (há mais alguns detalhes), as seguradoras têm de pagar 30% das perdas (que acontecem sempre), havendo uma franquia de 20%. O saldo, sem qualquer margem ou custos de peritagem, é um desvio tarifário de 10%.

Ao invés de incentivar boas práticas agrícolas, uma boa gestão de risco e formas diversas de mitigar eventos certos, o Estado subsidia prejuízos – paga.

Leis significam intervenção do Governo e como está essa a ser?

O Governo acha que resolve isto controlando as produtividades históricas de cada produtor, mas não está a resultar. Há ciclos produtivos de safra e contra-safra, preços por quilo diferenciados igualmente definidos pelo Estado para pagar o seguro. Enfim, ao invés de simplificar e deixar a negociação entre as partes permitir um maior equilíbrio, coloca-se uma maior camada burocrática. Além disso o Governo prefere pagar os prejuízos…

Pagar os prejuízos?

Além da camada burocrática, se os resultados não forem bons, o Estado assume parte das perdas das seguradoras. Há um resseguro público – se os prejuízos das seguradoras forem muito grandes o Estado paga. O resultado é o esperado. Ninguém tem incentivo a procurar novas soluções. Ao invés de incentivar boas práticas agrícolas, uma boa gestão de risco e formas diversas de mitigar eventos certos, o Estado subsidia prejuízos – paga.

E qual o volume desses pagamentos?

Só para se ter uma dimensão do problema, as taxas de mercado, subsidiadas pelo Estado, ultrapassam em alguns casos 25% do capital. Ou seja, 25% da produção é destinada aos prémios de seguros. Não faz sentido. Com estes valores elevados há obviamente clientes que têm de ter perdas, devido a fenómenos meteorológicos, para conseguir pagar os seguros. É uma aberração. Aliás, contra todas as regras de gestão risco, os prémios dos seguros de colheitas podem ser pagos por encontros de contas e apenas no final do período de risco. De acordo com esses números, em algumas regiões do país, é mais arriscado plantar cerejeiras ou macieiras do que lançar um foguetão.

É só isso que se tem de fazer? Flexibilizar franquias?

Dei o exemplo da franquia porque é o mais absurdo. Mas há mais questões. O Estado não paga apenas o resseguro público. Subsidia, por via de fundos europeus, parte do prémio. Evidentemente que quando há subsídios tem de haver controlo. Ou seja, o Estado não permite de uma forma simples a inclusão de novas coberturas.

O que permitiria a adoção de regras diferentes?

Por exemplo, criámos, na Safe-Crop, uma cobertura de preço da batata, à amêndoa e à azeitona. Sem apoio do IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas), o diferencial de preço é elevado. Somos quase 70% mais caros do que um seguro sem esta cobertura. Apesar de compensar e ser um bom produto, fica uma imagem de um preço desajustado face ao mercado, uma imagem que é injusta e que afasta os clientes. Não há uma igualdade de oportunidades… mas lá vamos fazendo o nosso caminho, não me posso queixar.

No caso da seca no continente há outro fenómeno: Não há água, ponto. Se tal acontecer, de forma sistemática, as seguradoras irão colocar franquias muito altas. De outra forma, o desafio não é tanto do seguro, mas do país.

Então o que se pode fazer para dinamizar o mercado e proteger melhor o setor agrícola?

Flexibilizar o mercado. Por exemplo: a vinha tem um regime de seguros mais interessante, mais flexível. O IFAP define um valor de prémio elegível, ligado a diferentes zonas agrícolas. E cada companhia pode, genericamente, colocar os riscos que deseja. Se porventura o prémio acordado exceder o que o Estado colocou como teto máximo, o excesso não terá apoio. Com esta prática surgiu, por exemplo, a cobertura do risco do escaldão (temperaturas elevadas acompanhadas de uma intensa radiação solar) e do desavinho (menor produção resultado de chuva e granizo). O regime de definição de sinistro também é mais flexível na vinha. Ou seja, há um convite à inovação. Por toda a Europa o Estado patrocina os seguros agrícolas. Cabe a nós, enquanto país, escolher como aproveitar os esquemas existentes.

Com essa flexibilização já seria possível ter uma cobertura contra a seca?

Sim, claro. De resto, já há cobertura contra a seca nos Açores. No continente, a nossa empresa oferece um pacote alargado que, de forma paramétrica, inclui a seca. Ou seja, mesmo no regime fixo do Estado há soluções para a seca.

Qual a diferença?

A seca nos Açores é definida como “insuficiência de precipitação”. Cabe a seguradora definir esses parâmetros e ir comercializar esse produto. Sempre que esses parâmetros são atingidos, o seguro paga. No nosso caso e para o continente, apostamos num conceito mais lato. Se a produção agrícola de uma determinada região for menor, de acordo com os parâmetros oficiais do INE, seja qual for o motivo, nós pagamos a diferença face ao histórico. A seca é naturalmente um desses motivos possíveis. Implicitamente estamos a dizer que pagamos a seca que não for combatida por ganhos de produtividade.

As autoestradas da água são o ‘game changer’ da agricultura. É um sistema que permite espalhar a água nos rios onde existe para onde não existe. Passa por construir uma barragem no Tejo permitindo um quase Alqueva no centro do país.

Porque não oferecem algo mais simples, como nos Açores? Também é a falta de flexibilização?

Também ajuda. Mas no caso da seca no continente há outro fenómeno: não há água, ponto. Se tal acontecer, de forma sistemática, as seguradoras irão colocar franquias muito altas. De outra forma, o desafio não é tanto do seguro, mas do país. Em algumas culturas a melhor solução para os riscos meteorológicos pode não ser o seguro, mas um sistema antigeada, ou antigranizo. Neste caso a melhor proteção à seca no continente são as autoaestradas da água. Com água o seguro irá cobrir o risco avaliando a existências de charcas e de outros recursos e ter uma taxa acessível. Sem as autoestradas da água os seguros podem ajudar num ano ou outro muito grave. Mas há medida que o problema se torna estrutural a única solução é construir barragens e o médio Tejo.

O que são as autoestradas da água? E qual a importância do médio Tejo?

É o game changer da agricultura. É um sistema que permite espalhar a água nos rios onde existe para onde não existe. Passa por construir uma barragem no Tejo permitindo um quase Alqueva no centro do país. Depois permite capturar a água dos rios do norte do país e ir distribuindo essa riqueza ou por canais ou seguindo o curso normal dos rios. Neste caso os seguros seriam um bom complemento para a incerteza dos agricultores, já que a seca já não seria uma certeza. Não podemos dizer o ambiente está a mudar e depois agir como se nada fosse.

Os seguros protegem eventos aleatórios, não protegem eventos certos. Os seguros podem ajudar em algumas flutuações – mas a seca combate-se com água. E esse devia ser um desígnio do país.

O que falta para este projeto avançar?

Honestamente não sei… talvez uma graffiti a dizer: “construam-me, porra!”, como no Alqueva. As contas já estão feitas, tanto quanto consigo perceber. Há fundos públicos e há também fundos bonificados de apoio ao desenvolvimento. Há ainda o PRR. Alias, este pacote de ajudas deveria servir para alterarmos a competitividade do país, mas aparentemente está a ser gasto em consumo corrente.

A dessalinização não podia ser uma solução?

Pontualmente, em algumas explorações agrícolas de alto valor acrescentado. Ou em locais junto à costa, com elevada pressão urbanística. Fora esses casos sem expressão, não vejo como. Espanha tem mais de 700 centrais de dessalinização. Todas juntas não produzem mais do que 5% do caudal do Douro.

Além disso são máquinas de capturar gastos do Estado. É preciso energia para transformar a água e bombeá-la da costa para todo o interior do Pais – é sempre a subir. As auto estradas da água e o reforço da retenção seguem o curso natural da água. Tem um custo operacional menor – é sempre a descer. Os investimentos públicos podem ser avultados, mas manda a boa gestão que o valor operacional seja reduzido. Na dessalinização é ao contrário.

E como fica o papel do setor segurador na agricultura?

Os seguros protegem eventos aleatórios, não protegem eventos certos. Os seguros podem ajudar em algumas flutuações – mas a seca combate-se com água. E esse devia ser um desígnio do país.

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