Ex-ministra defende que estafetas tenham condições para trabalho digno, embora não clarifique se devem ser considerados trabalhadores das plataformas. Alerta para reforço da proteção de dados com a IA
Os estafetas são ou não trabalhadores das plataformas digitais? A resposta a essa questão tem dividido, e muito, as opiniões (e os tribunais portugueses), mas a ex-ministra do Trabalho Maria Helena André deixa um aviso: independentemente da relação, é preciso garantir a essas pessoas “todas as condições do trabalho digno”, nomeadamente proteção social, segurança e perspetivas de progressão na carreira.
Em entrevista ao ECO a propósito do Dia do Trabalhador, a também diretora do departamento para os assuntos dos trabalhadores da Organização Internacional do Trabalho (OIT) defende que as mudanças feitas à lei do trabalho portuguesa para regular o trabalho nas plataformas “vão no bom sentido“, mas alerta que é preciso ir fazendo ajustamentos.
Esta é uma de duas partes da entrevista de Maria Helena André ao ECO. Na outra parte (que pode ler aqui), a ex-ministra fala sobre o mercado de trabalho português, o novo Governo e a necessidade de estimular a negociação coletiva em Portugal.
Independentemente da forma contratual, o trabalhador [das plataformas] tem de ter acesso a todas as condições do trabalho digno. Sabemos que essa não é uma realidade.
Em 2021, o então diretor-geral da OIT defendeu, numa entrevista ao ECO, que a regulamentação do trabalho nas plataformas digitais deveria ser internacional, e não ficar apenas pelo nível nacional. Três anos depois, concorda com essa visão?
Concordo. Quando discutimos a economia das plataformas, não podemos olhar só por um ponto de vista nacional. Quando falamos de plataformas, pensamos naquelas que são visíveis, por exemplo as plataformas de distribuição que nos trazem comida a casa. Essas, a bem ou mal, em muitos países – sobretudo em muitos países da Europa –, estão já a ser regulamentadas. Aquilo que não vemos são as plataformas que funcionam na nuvem, que estão completamente desreguladas. Esta é uma questão não só nacional, mas também supranacional. Por isso é que, ao nível da OIT, entendemos que é fundamental que todos os trabalhadores das plataformas, os visíveis e os invisíveis, possam ter acesso a um trabalho digno. Temos de garantir os direitos à proteção social, à saúde e segurança no trabalho, à progressão na carreira.
Trabalho digno nas plataformas implica um contrato de trabalho? Ou é possível mesmo que se mantenha o atual modelo de trabalho independente?
Independentemente das formas contratuais, é fundamental que todos os trabalhadores tenham acesso à igualdade de direitos. Não quero entrar na discussão sobre o contrato, sobre se é ou não é um trabalhador. Independentemente da forma contratual, o trabalhador tem de ter acesso a todas as condições do trabalho digno. Sabemos que essa não é uma realidade.
Como disse, Portugal já está mais à frente nesta discussão. Que lhe parece a solução adotada por cá? Garante os direitos?
Parece-me que a solução adotada em Portugal vai no bom sentido. Mas, como em tudo aquilo que tem que ver com os fundamentos de um código de trabalho dinâmico e moderno, temos de ir observando aquelas que são as evoluções e ir ajustando. Por exemplo, em relação à questão do teletrabalho, em Portugal em 2022 houve uma alteração legislativa. Houve uma evolução muito interessante em relação à forma como no nosso país olhamos para o teletrabalho.
Somos animais sociais e não podemos fazer com que uma nova forma de organização do trabalho contribua ainda mais para aquilo que é um dos problemas das nossas sociedades, que é o isolamento das pessoas.
Que avaliação faz das regras que foram adotadas a esse nível? Houve críticas em relação a alguns vazios.
Independentemente de termos uma regulamentação no nosso país sobre o teletrabalho, que é avançada comparada com outros países, esta é uma matéria que tem de ser regulamentada também pela negociação coletiva. A utilização ou não do teletrabalho numa empresa depende da forma de organização do trabalho de cada uma das empresas.
Disse numa entrevista anterior que em teletrabalho há o risco de o trabalhador ficar mais desprotegido. A lei veio dar proteção suficiente a esse trabalhador?
Acho que há uma coisa que nunca vamos conseguir proteger, que é o isolamento dos trabalhadores em teletrabalho. A incapacidade de socialização com os colegas pode ter consequências ao nível da saúde mental. O afastamento do local de trabalho pode ter consequências ao nível de direitos fundamentais dos trabalhadores, que não são discutidos porque a pessoa está em teletrabalho. Há uma série de nuances no teletrabalho, que podem levar a que haja mais dificuldade de respeito desses direitos dos trabalhadores. É fundamental que haja uma conversa entre o trabalhador e o empregador para que concordem entre eles aquilo que são as modalidades de teletrabalho que podem fazer com que os direitos sejam garantidos. Não sou apologista de um teletrabalho permanente.
Porquê?
Justamente pela socialização. A capacidade de comunicação não é a mesma quando estamos presencialmente. A espontaneidade é diferente. Somos animais sociais e não podemos fazer com que uma nova forma de organização do trabalho contribua ainda mais para aquilo que é um dos problemas das nossas sociedades, que é o isolamento das pessoas.
O aspeto fundamental que me preocupa em relação à inteligência artificial é a enorme quantidade de informação e de dados que são recolhidos sobre os trabalhadores.
A inteligência artificial tem sido um dos temas quentes na discussão em torno do futuro do trabalho. Como é que podemos proteger os trabalhadores dos riscos associados?
Não podemos demonizar a inteligência artificial. Sabemos que pode criar novas oportunidades e pode ajudar a impulsionar o desenvolvimento económico. A perspetiva macro da inteligência artificial está bem documentada. No entanto, quando pretendemos olhar de uma forma mais fina sobre a forma como as novas tecnologias e a inteligência artificial estão a mudar o funcionamento dos locais de trabalho, a forma como as decisões de gestão estão a ser tomadas, a forma como elas se relacionam com os trabalhadores, estas são matérias que não vemos muitas vezes nas manchetes dos jornais. Temos de reconhecer que estas tecnologias de informação estão de facto a mudar a forma como as empresas tomam decisões.
Em concreto, de que modo é que isso pode afetar as relações de trabalho?
O aspeto fundamental que me preocupa em relação à inteligência artificial é a enorme quantidade de informação e de dados que são recolhidos sobre os trabalhadores. Muitas vezes são dados que são recolhidos sem o seu conhecimento ou sem qualquer controlo sobre o que está a ser recolhido. Pode ajudar a agilizar as operações, pode monitorizar o bem-estar dos trabalhadores. Mas também sabemos que muitas vezes, porque não há regulamentação adequada, os dados podem ser apropriados indevidamente, e podem ser vendidos a fornecedores terceiros. Alargar os direitos de proteção de dados dos trabalhadores é fundamental.
E a eliminação de postos de trabalho por causa dos avanços tecnológicos? É motivo de alerta?
A introdução das novas tecnologias, em muitos casos, tem como consequências a redução dos postos de trabalho. Mas ao mesmo tempo também sabemos que tem havido uma capacidade de criar emprego noutros setores da economia.
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Lei portuguesa do trabalho nas plataformas “vai no bom sentido”, mas tem de ir sendo ajustada
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