“Não é tarefa fácil assegurar o segredo de justiça”, diz Adão Carvalho

Adão Carvalho é magistrado do Ministério Público e candidato único às eleições do sindicato de 20 de março. Leia as principais metas que defende de quem desempenhou funções de secretário-geral.

Adão Carvalho é o único candidato ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), nas eleições que decorrem a 20 de março. Desempenhou no último mandato o cargo de secretário-geral com António Ventinhas como presidente. Apela ao aumento de magistrados, a uma maior especialização e critica o distanciamento da PGR Lucília Gago. E defende que a autonomia está em risco.

É recorrente no discurso dos sindicatos da área da Justiça aparecer a queixa da falta de meios. São cerca de 1600 os magistrados do Ministério Público. Porque é que este número não é suficiente?

Conforme resulta do último relatório elaborado pelo CSMP e disponível para consulta no site da PGR, retirados os magistrados que se encontram nas mais diversas comissões de serviço ou em situação de ausência prolongada, apenas estão em efetivo exercício de funções cerca de 1470 magistrados, sendo que existem cerca de menos de 120 magistrados em relação ao quadro legalmente previsto e existem cerca de 176 magistrados com condições para se aposentarem/jubilarem nos próximos dois anos. Existe um elevado número de magistrados em acumulação de funções e sobre carregados com um volume de trabalho manifestamente incomportável.

Para além do quadro de magistrados ser claramente deficitário e a tendência ser para piorar, o quadro existente não permite responder às exigências de especialização e à necessidade de criar equipas de magistrados para os processos de maior complexidade, os chamados megaprocessos. Se queremos um MP a prestar um trabalho de qualidade e com eficiência temos que rapidamente suprir a manifesta carência de quadros.

A ministra da Justiça falou em tempos na possibilidade de reduzir o tempo das férias judiciais. O futuro presidente do SMMP concorda com esta medida, caso avance?

Trata-se de uma medida populista. Os funcionários, juízes e magistrados do MP terão que gozar, na mesma, o seu direito a férias pessoais, pelo que a redução das férias judiciais ainda comportará um maior período de tempo de redução da atividade normal dos Tribunais como resulta já da experiência do passado quando se reduziu o período de férias judiciais a um mês e que logo se percebeu que a solução, em vez de contribuir para a celeridade processual ainda conduziu a um período maior de paralisação da atividade normal dos Tribunais. Para além disso, no período das férias judiciais de verão é uma altura em que os cidadãos em geral gozam as suas férias, pelo que seriam frequentes as faltas dos vários intervenientes processuais por estarem em gozo de férias.

Como avalia a atuação desta titular da investigação criminal (Lucília Gago) face a Joana Marques Vidal?

A Procuradora-Geral da República é o órgão máximo do MP a par com o CSMP, não se podendo dizer que seja titular da investigação criminal, mas sim quem define as grandes linhas estratégicas de conformação e atuação do MP. O que nos preocupa, enquanto magistrados, é que seja uma PGR distante, que não comunica, não ouve os magistrados do MP, que os não defende, nem reivindica de forma assertiva mais magistrados e os meios necessários de que o MP precisa para o exercício das suas funções.

Foi recentemente publicada uma diretiva da PGR que, segundo alguns, põe em casa a autonomia do MP. Com estas novas regras, os procuradores transformam-se em meros funcionários públicos ao serviço da PGR?

A Diretiva comporta claramente esse risco e a funcionalização do Ministério Público torna esta magistratura mais vulnerável a tentativas de instrumentalização do Ministério Público por interesses que não os da legalidade e objetividade. Para além disso é ilegal por violação do Estatuto do MP e do Código de Processo Penal e apenas vai trazer elementos de perturbação e confusão na direção e condução da investigação criminal.

Se fosse um dia PGR, qual seria a sua primeira medida?

Tudo dependeria da situação existente nessa altura. Mas, neste momento, exigiria ao Ministério da Justiça a abertura de vagas para magistrados do MP em número adequado para suprir a gritante carência de quadros e mais meios para o exercício das suas funções.

O que traz ou pode trazer o seu mandato que seja novo e que traduza uma nova forma de olhar para a magistratura?

Muito do trabalho já tem vindo a ser feito pela atual direção do SMMP da qual faço parte enquanto secretário-geral. Os grandes desafios neste mandato são a luta por mais recursos e condições para que o MP possa exercer as suas funções com mais qualidade e eficácia; a proximidade aos associados; a defesa de maior transparência dos movimentos e concursos no interior do MP; a luta pela autonomia do MP.

Como é que se explica a um cidadão que há processos em que até à acusação são tornados públicos com grande pompa e circunstância, envolvendo figuras públicas e que, depois na fase de julgamento, não há condenações? Lembro-me do caso dos Vistos Gold. E como esse há vários.

A mediatização dos processos não decorre da atividade do MP, mas sim da curiosidade mediática pelos processos que envolvem políticos ou figuras públicas. Temos que compreender que determinados processos no domínio da criminalidade económico-financeira, em que muitas vezes a própria legislação de base é pouco clara e apresenta ambiguidades, a complexidade técnica das matérias envolvidas, a convicção devidamente alicerçada pelo Ministério Público e sustentada numa acusação possa no decurso do julgamento ser contraditada pela defesa e ser gerado no julgador a dúvida e determinar uma absolvição. É essencial que os juízes tenham neste tipo de processos apoio técnico, atenta a complexidade e especificidade técnica das matérias em questão, de forma a estarem mais habilitados a decidir. Por outro lado, perante arguidos que estão defendidos por uma equipa de advogados seria importante que o MP tivesse um quadro de magistrados suficiente para que em julgamento, em processos de maior complexidade, pudessem estar mais que um magistrado do Ministério Público.

A sindicância (avaliação e fiscalização) aos magistrados deveria ser feita por figuras ‘exteriores’ à classe?

As inspeções aos magistrados do MP embora efetuadas por magistrados são apreciadas e a notação atribuída pelo CSMP, órgão composto por magistrados e elementos indicados pela Assembleia da República e pelo Ministério da Justiça e, portanto, a avaliação é feita por um órgão também composto por elementos exteriores à classe. Uma análise das decisões do CSMP na área das inspeções permite concluir que os elementos magistrados são muito mais exigentes e atribuem piores notações que os elementos não magistrados. Essencial é garantir um regime de impedimentos e incompatibilidades dos elementos não magistrados para que não sejam chamados a decidir nessa matéria quem tem algum interesse com processos em que o magistrado inspecionado teve intervenção.

Que efeitos pode vir a ter esta paragem da pandemia nos tribunais e no andamento da Justiça?

No Ministério Público o que está parado, essencialmente, são as diligências presenciais nos processos não urgentes. Os magistrados continuam a tramitar os processos. Penso que, tal como aconteceu no primeiro período de paragem entre março e maio de 2020, mal seja cessada a suspensão dos prazos os magistrados empreenderão todos os esforços para regularizar e recuperar tudo o que ficou sem ser feito durante este período.

Faltam especialistas no MP para investigar casos com a complexidade técnica de uma Operação Marquês ou do caso BES?

Processos de elevada complexidade técnica, como a área financeira, exigem que o Ministério Público esteja dotado de uma equipa de técnicos especialistas na área, em número suficiente e a trabalhar exclusivamente com o MP, ou seja, o NAT (núcleo de apoio técnico) que existe junto da PGR não pode contar, como atualmente, com apenas dois ou três especialistas para todo o país e, por outro lado, tem que ter autonomia financeira e disponibilidade de contratar peritos nas mais diversas áreas sempre que tal seja necessário e não estar dependente do poder executivo para esse efeito.

Como acha que o problema da violação do segredo de Justiça pode ser resolvido?

Existe muita gente a ter contacto com os processos, desde os magistrados do MP, aos juízes, funcionários, polícias, advogados, pelo que não é tarefa fácil assegurar o segredo de justiça. Por outro lado, estando em causa processos mediáticos, a comunicação social no exercício do seu dever de informar, tenta, por todas as formas, ter acesso ao que está no processo.

Como encara as vigilâncias feitas a dois jornalistas a ‘mando’ de uma magistrada do MP?

O dever de reserva impede que eu me pronuncie sobre casos concretos e, não o faria, por não conhecer a situação concreta. Apenas referir que as vigilâncias que não comportem escuta de conversas entre presentes não precisam sequer de despacho de autoridade judiciária, podem ser efetuadas pelas próprias polícias com competência delegada de investigação, desde que em espaço público. O relevante é que o meio de prova seja adequado aos factos em investigação.

O problema aqui reside no facto de o legislador ter criado um tipo legal de crime com um âmbito alargado e não excluiu os jornalistas de o cometerem. Se o crime de violação do segredo de justiça tal como definido conflitua com a garantia constitucional da liberdade de imprensa compete à Assembleia da República alterá-lo de forma a se compatibilizar com tal garantia. Mantendo-se, como está, compete ao Ministério Público realizar todas as diligências permitidas no Código de Processo Penal no sentido de apurar se o crime foi cometido e quem são os agentes prevaricadores.

Um dos jornalistas anunciou que foi feita uma queixa crime contra essa mesma procuradora. Como avalia essa queixa?

Não me compete, nem devo avaliar queixas concretas efetuadas por quem quer que seja. A todos é reconhecido o direito de exercerem o direito de queixa. Caberá às instâncias competentes decidir.

O processo penal, tal como está, é eficiente?

Ao longo dos últimos vinte anos foram introduzidas no processo penal sucessivas alterações, muitas vezes decorrentes de casos concretos em investigação ou julgamento, que vieram trazer, por vezes, uma maior prolixidade na sua interpretação, designadamente no que tange aos meios de obtenção de prova. O caminho foi o da desconfiança em relação ao Ministério Público e ao julgador, apertando-se a liberdade de decisão e valoração da prova obtida, de forma a conferir maior importância à verdade formal do que à verdade material, quando só existe verdadeiramente justiça se conseguirmos alcançar a verdade material.

E em relação à delação premiada? Concorda com essa intenção do Governo?

Penso que, por ora, a solução deverá passar pelo aprofundamento das soluções já desenhadas no nosso sistema, no domínio dos crimes de corrupção e tráfico de estupefacientes, até porque nos parece mais coerente com a nossa cultura jurídico-penal um conceito de valoração positiva, em sede de atenuação ou mesmo dispensa de pena, daquele que voluntariamente decide contribuir de forma relevante para a descoberta da verdade e na medida da sua contribuição, enquanto manifestação de arrependimento e vontade de reparar o crime ou, dentro de certos limites, a possibilidade de suspensão provisória do processo em fase de inquérito, do que o conceito de “delator” interesseiro. Numa criminalidade em que, muitas vezes, todos os envolvidos têm algum interesse no crime, só com apelo a mecanismos desta natureza se poderá ter sucesso na investigação e no combate a este tipo de criminalidade.

O caso do procurador europeu José Guerra manchou a reputação do Governo?

A Procuradoria Europeia vai ter a seu cargo a função de combater de forma mais eficaz a criminalidade contra os interesses financeiros da UE, transnacional, como a fraude fiscal que todos os anos acarreta um custo de perto de dois mil euros por cada cidadão europeu. Para o conseguir é essencial que a Procuradoria Europeia seja dotada de independência e autonomia em relação aos poderes executivos dos Estados aderentes, sob pena do seu total descrédito. Qualquer interferência do poder executivo de um Estado na nomeação dos seus agentes coloca em risco a independência da Procuradoria Europeia e a sua legitimidade.

O que gostava de ver diferente no MP, no final do seu mandato/s?

Um Ministério Público dotado de meios humanos e recursos para assegurar uma justiça mais célere e com maior qualidade. Ver os magistrados do Ministério Público mais confiantes, motivados e a sentirem que a Procuradora-Geral da República os ouve, os defende e que luta para que o MP tenha melhores condições para o exercício das suas funções e que é um garante da autonomia do MP.

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