“O país tem uma espada em cima da cabeça, que é a questão da água”

"Não falta só capital, falta visão do que é o amanhã e o que será o depois de amanhã", considera Manuel Alfredo de Mello, chairman da Nutrinveste e vice-presidente da Fundação Amélia de Mello.

Manuel Alfredo de Mello, chairman do grupo agroalimentar Nutrinveste e vice-presidente da Fundação Amélia de Mello, considera que “ao país não falta só capital, falta visão do que é o amanhã e o que será o depois de amanhã”. Defende que reter os jovens é um erro. “Deve-se mandar os jovens lá para fora, mas com um anzol, para eles voltarem com os conhecimentos que têm e com a visão que têm”.

O empresário deixa também um alerta: “o país, mesmo para o turismo, tem uma espada em cima da cabeça, que é a questão da água”. E defende a solução “mais extrema” dos transvases. “Isto é mais complicado, porque vai vir aí tudo o que é verde, tudo o que é antagonismo destas mudanças, mas é a única forma de nós termos água em quantidade”, diz.

A Fundação Amélia de Mello lançou recentemente a bolsa Jorge de Mello, dedicada à inovação e indústria, no valor de 150 mil euros. O empresário defende que “na investigação, cada vez mais deve-se fazer numa conjugação entre as empresas e as universidades”, considerando que a ligação com os centros de conhecimento é hoje muito melhor.

O seu pai, Jorge de Mello, reconstruiu à volta do Agroalimentar, um grande grupo industrial que já consigo se focou depois dos óleos alimentares e se internacionalizou, através da Nutrinveste. Ainda há pouco deste espírito empreendedor, que nessa altura norteou esse projeto ou isso já está a mudar?

Penso que há. Além do agroalimentar, há noutras áreas esse espírito inovador e empreendedor. Acho que é um bocadinho de Leiria para cima; a parte mais industrial, médias empresas exportadoras, que resistiram melhor a todas as transições. Muitas desenvolveram-se e hoje temos grandes empresas exportadoras, com tecnologia.

Portugal tem um atraso relativo face ao resto da Europa nesta questão da industrialização. Isso ainda pode ser justificado pelas nacionalizações após o 25 de abril?

Eu penso que em parte pode. Nós, país, já não nos lembramos do que eram sete, oito dez grupos industriais e bancários, grupos privados… Uma pequena ressalva, estamos a esquecer que antes do 25 de Abril havia dez, doze bancos privados, médios e grandes para a dimensão nacional. Hoje há três ou quatro e são todos estrangeiros. Estamos a falar do Banco Espírito Santo, do Banco Sotto Mayor, do Banco Português do Atlântico, para não falar do Totta, que também era grande, mas não era dos maiores. Todos eles à volta tinham um grupo industrial ou bancário e isso caiu de um momento para o outro. E teve de ser reconstruído. Claro que não havia grande capital em Portugal a partir dessa altura, e teve que ser construído com os antigos donos que quiseram e tentaram recuperar alguma coisa.

Como o caso da família Mello…

O nosso caso, por exemplo. Mas também o Espírito Santo, o Champalimaud ou também outros, como o engenheiro Belmiro [de Azevedo], que agarrou em parte do que era o grupo do Português do Atlântico, etc. Mas falta capital e falta capital estrangeiro. E falta sobretudo não é só capital, falta visão do que é o amanhã e o que será o depois de amanhã.

Os grandes desafios do futuro não estão a passar pela Europa e não estão a passar por Portugal. Há quem cavalgue e acelere mais do que nós, sobretudo os países mais atrasados, aqueles que estavam do lado de lá do Muro de Berlim, que sistematicamente têm-nos apanhado e suplantado.

Continua a faltar visão sobre o futuro.

Acho que sim. Nós não estamos na inteligência artificial. Não é uma questão portuguesa. Se quiser, é uma questão europeia e até mundial. Em África não há. Na América do Sul também não há. Mas os grandes desafios do futuro não estão a passar pela Europa e não estão a passar por Portugal. Há quem cavalgue e acelere mais do que nós, sobretudo os países mais atrasados, aqueles que estavam do lado de lá do Muro de Berlim, que sistematicamente têm-nos apanhado e suplantado. Em Portugal falta, como disse, capital, mas falta sobretudo a capacidade de liderar a indústria e os serviços do futuro.

Capacidade para fazer transformações.

Fazer transformações. Quando se fala que se quer manter cá os jovens, eu não sou nada a favor disso. Deve-se mandar os jovens lá para fora, mas com um anzol, para eles voltarem com os conhecimentos que têm e com a visão que têm. Eu tenho amigos dos meus filhos e dos meus netos que estão lá fora e eu abro a boca porque quando eu tinha a idade deles, não realizávamos que era possível.

Medidas de incentivo fiscal, como o IRS Jovem, são eficazes?

São todas importantes. Não vamos agarrar [os jovens] aqui. Deixemos levar e depois vamos buscar. Eu fui durante muitos anos presidente do IBET, que é o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica, ali em Oeiras. É um instituto pouco conhecido, semi-privado e semi-público. Havia uma rotação muito grande de investigadores; tem cerca de 100 a 150. Angariávamos não as pessoas saídas da universidade, mas as que estavam lá fora e que queriam voltar. Portugueses, na grande maioria. E aí é que era a mais-valia.

Manuel Alfredo de Mello, administrador da Fundação Amélia de Mello, em entrevista ao ECO.Hugo Amaral/ECO

É preciso deixá-los ir e incentivar o regresso.

Quando estou aqui consigo eu ganho consigo e você ganha comigo, com aquilo que cada um diz e pensa. Ficar fechado aqui neste pequeno retângulo não nos leva a lado nenhum. Temos que interagir com o mundo e contactar com outros mundos diversos do nosso.

Vê outros fatores que explicam a menor convergência de Portugal com a União Europeia?

Todos nós temos handicaps e devemos compensar com uma mais-valia positiva. Nós não ajudamos muito internamente ao desburocratizar. Não é oferecer dinheiro às pessoas, é tirar-lhes os problemas. A burocracia é inacreditável. Ontem estava numa conversa com pessoas ligadas há construção e houve um projeto que foi chumbado por 43 centímetros. Estou só a dar um exemplo. Há outros muito maiores.

Nos últimos anos tem-se falado mais na necessidade de aumentar a escala das empresas portuguesas. Considera que subsiste um preconceito em relação aos grandes grupos empresariais e que isso seja causador de algum atraso económico?

Existe. Nós vendemos mais em Espanha do que em Portugal, por exemplo. Agora, se não estivéssemos em Espanha, se não estivéssemos a vender para o Brasil, se não tivéssemos com fábricas nos Estados Unidos, se calhar não podíamos vender, porque não tínhamos rentabilidade. A dimensão dá rentabilidade, se for bem feita, como é óbvio, e a expansão dá o conhecimento de mercados, dá um certo número de coisas que podemos interiorizar e desenvolver. Há coisas inacreditáveis. Nós vendemos óleo de girassol embalado, sem subsídios, para a Austrália. E vai daqui de Portugal.

A dimensão traz mais-valias, traz conhecimentos, proporciona investigação. Uma pequena empresa não consegue ter investigação. Na investigação, cada vez mais deve-se fazer numa conjugação entre as empresas e as universidades. Este prémio, com o nome do meu pai, tem essa característica: o desenvolvimento dos projetos tem que ser feito com uma empresa. A empresa tem que ter necessidade, tem que ajudar a que o projeto se desenvolva e demonstre que tem viabilidade económica.

Ainda há um divórcio grande entre os centros de investigação e o mundo das empresas?

Já foi pior. Está melhor. Como disse, aquele que eu conheço melhor é o IBET. O IBET hoje tem muito maior aproximação ao mundo real da economia, do que tinha naquela altura. Na altura, estudava-se, investigava-se, pela investigação.

As exportações já pesam cerca de 50% do PIB. Falou das vantagens da internacionalização. Acha que esse receio de internacionalizar em Portugal já está a ser ultrapassado?

Há dois países. Há de Lisboa para baixo e de Lisboa para cima. O turismo, que é feito mais no sul, mexeu um bocadinho na capacidade de as pessoas perceberem que tinham de ir buscar clientes e projetos de desenvolvimento. É uma necessidade. Nós não somos a América.

Temos um mercado pequeno.

Um mercado mínimo. Nós, na altura, tínhamos uma fábrica de bolachas que era a Triunfo, mas o mercado nacional era ridículo. Aquilo não pode viver apenas a fabricar para o mercado nacional.

Então Portugal devia ter como objetivo chegar a 60%, 70%, 80%?

Não sei qual é o limite, mas tem que estar completamente virado para o exterior, para equilibrar as suas contas externas. E não esquecer o turismo, que faz parte.

O país, mesmo para o turismo, tem uma espada em cima da cabeça, que é a questão da água. Eu acho que devia haver um programa nacional para conseguirmos ter água com regularidade e segurança, não estando dependente nem só da chuva nem só de Espanha.

O Ministro das Finanças afirmou recentemente que a economia portuguesa não pode estar tão dependente do turismo. Concorda?

Muito, muito. Acho que foi ótimo. Vai continuar a ser. Mas temos que olhar para outros setores ou outros vetores de desenvolvimento.

Nomeadamente?

Pode dizer-me que eu estou interessado nisto e em parte estou. O país, mesmo para o turismo, tem uma espada em cima da cabeça, que é a questão da água. Eu acho que devia haver um programa nacional para conseguirmos ter água com regularidade e segurança, não estando dependente nem só da chuva nem só de Espanha.

Tem de se negociar com os espanhóis como deve ser. Não sei se foi bem negociado ou não. O Tejo tem um projeto de regularização, no sentido de a água ser aproveitada em pequenas barragens para, por um lado, não haver cheias nem secas e ser aproveitada para a agricultura e a indústria. Eu vou dizer um número — pode não estar certo –, mas penso que 60% a 70% da água do Tejo vai para o mar e isso não faz sentido.

Toda a gente fala do Alqueva, mas cuidado com o Alqueva. Foi feito para 100 mil hectares e já vai nos 120 ou 130 mil e só se pensa que o Alqueva serve para alimentar a Barragem de Santa Clara, o rio Mira, o Algarve…

É preciso aproveitar muito melhor a água?

Toda a gente fala do Alqueva, mas cuidado com o Alqueva. Foi feito para 100 mil hectares e já vai nos 120 ou 130 mil e só se pensa que o Alqueva serve para alimentar a Barragem de Santa Clara, o rio Mira, o Algarve…

Dá para tudo e ainda para Espanha.

E ainda para Espanha. Espanha que usava a água sem a pagar, sem a declarar como estava no convénio. Dizem que não roubaram, porque não lhes passámos a fatura. Mas cuidado, porque há gente do lado de cá que tem situações ainda não resolvidas. E se resolvermos a situação dos espanhóis, então temos que resolver a situação de Alqueva do lado português. E depois falta o Algarve. Há um complemento que as pessoas não gostam de ouvir falar, porque não sabem, que é a dessalinização. Está-se a fazer uma, muito lentamente…

A obra da dessalinizadora foi recentemente adjudicada.

Eu acompanhei isso. Já há três anos que se falava nisso, Toda a gente dizia que não. Todas as entidades públicas com quem falei diziam que não era preciso. Espanha tem 400. Portanto, é uma questão de aprendermos com quem está aqui ao lado. Se não temos água, é uma necessidade.

Há outra solução mais extrema, que é fazer os transvases. Isto é mais complicado, porque vai vir aí tudo o que é verde, tudo o que é antagonismo destas mudanças, mas é a única forma de nós termos água em quantidade. Além disso, se fizermos novas barragens, também podem produzir eletricidade. Com os novos desenvolvimentos da inteligência artificial será necessária mais energia.

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