“Tem de existir diálogo entre empresários e ministros”

Manuel Alfredo de Mello, chairman da Nutrinveste, empresa líder no agroalimentar, conta as histórias por trás da criação do grupo, onde o contacto com os governos assumiu um papel importante.

Compal, Molaflex, Triunfo, Nacional, Nicola ou Tabaqueira já estiveram na esfera do Grupo Jorge de Mello, que decidiu focar-se nos óleos alimentares, através da Sovena, detida pela Nutrinveste, hoje um dos maiores grupos mundiais do setor, com exportações para mais de 60 países. Manuel Alfredo de Mello, filho de Jorge de Mello, foi um dos protagonistas de uma das mais ricas histórias da indústria portuguesa nas últimas décadas.

Em entrevista ao ECO, o chairman da Nutrinveste relata a evolução do grupo, as empresas que foi comprando e vendendo. A intervenção de ministros e primeiros-ministros foi relevante, como na compra da Compal, em 1993, ou da Tabaqueira, em 1996, em conjunto com a Phillip Morris.

Para Manuel Alfredo de Mello, a intervenção dos governantes é importante e deve existir. “Há aqui um problema, cada vez mais: se eu falo com um ministro, ‘ai Jesus o que é que ele está a fazer?’. Tem que haver relações abertas. O senhor ministro tem que saber o que é que eu quero, o que é que os empreendedores querem“, defende.

“Quem vai para a política, sobretudo hoje em dia, a grande maioria não tem experiência de negócios e de empresas”, lamenta o também vice-presidente da Fundação Amélia de Mello.

Que desafios é que enfrentou quando foi preciso reconstruir e fazer crescer o grupo Nutrinveste?

O melhor seria perguntar ao meu pai, mas ele já cá não está. Foi muito complicado porque nós saímos daqui, já em 75. Tivemos uma atividade lá fora, no Brasil, na Suíça, em Inglaterra. Tanto o meu pai como meu tio decidiram voltar, na altura já cada um por si. O meu pai tinha os títulos de indemnização e foi por aí que ele insistiu muito e batalhou muito com os governos da altura, no sentido de poder utilizar esses títulos de indemnização para comprar empresas ou entrar no capital de empresas que tivessem em má situação, substituindo-se à empresa e pagando ao banco. Foi assim que começámos, na Alco [na década de 80], que era uma empresa de óleos lá em cima, na Molaflex e numa outra que era uma fundição chamada Oliveira e Ferreirinha.

A Alco comprámos diretamente ao IPE [Instituto de Participações do Estado]. As outras duas foram em parceria com os donos. Ficámos na Molaflex com a mesma posição que o Rui Moreira, pai do atual presidente da Câmara [do Porto]. E na Oliveira Ferreirinha tínhamos uma posição maioritária, mas não tínhamos a totalidade. Depois saímos na Molaflex, vendemos ao Rui Moreira pai. A outra empresa, a Oliveira e Ferreirinha, correu mal. O nosso foco depois foi desenvolver a Alco.

Começou aí a aposta nos óleos alimentares.

Comprámos, já com dinheiro, uma empresa em Torres Novas que era a Torrejana, que era sobretudo virada para os azeites. E, depois, mais tarde, a Lusol/Sovena, porque em termos nacionais tínhamos uma grande presença no óleo alimentar. Foi na altura em que há a abertura à CEE e todas as regulamentações relativamente à indústria dos óleos ia ser alterada. Era o Estado que controlava. Eu era presidente da associação, viajava muito para a Bélgica, onde tínhamos reuniões com os outros associados de todos os países, e apercebi-me: “mas eu sou dono de uma coisa pequenina, que não existe, nem pode sobreviver”.

Em Portugal, a única empresa que havia com capacidade internacional de rentabilidade era uma que nós acabámos por comprar mais tarde, que se chamava Tagol, que ainda existe, que é uma empresa bem localizada e com equipamento adequado para trabalhar tanto girassol, como soja, como colza. Tem todos os padrões a nível internacional.

A Compal pertencia ao IPE. Eu digo com toda a franqueza: nós não fomos ter com o IPE, fomos ter com o primeiro-ministro da altura e perguntámos se podíamos ir ter com o IPE para negociar. Se ele dissesse que não, não valia a pena. Era o professor Cavaco Silva. E ele disse que sim.

Quais os principais desafios de que se recorda?

O desafio era muitas vezes tentar convencer os vários ministros e os vários governos que nós conseguíamos fazer isto. Havia leis complicadas, que não autorizavam. Tínhamos que mudar a lei. Depois vieram as privatizações, nós já não entrámos em nenhuma privatização dessas grandes. As primeiras foram o Totta e a Superbock, lá em cima, se não me engano. Nós não entrámos, não tínhamos capacidade, nem era sequer o nosso fito. O nosso foco era a Compal, porque era uma empresa que nós conhecíamos do antigamente e que tinha produtos dirigidos ao público e com algum valor acrescentado, mais que o óleo.

A Compal pertencia ao IPE. Eu digo com toda a franqueza: nós não fomos ter com o IPE, fomos ter com o primeiro-ministro da altura e perguntámos se podíamos ir ter com o IPE para negociar. Se ele dissesse que não, não valia a pena. Era o professor Cavaco Silva. E ele disse que sim. Tivemos um ano a negociar com o Dr. Sousa Gomes a compra da Compal. E percebemos que ele não queria vender a Compal, e portanto desistimos. Depois veio o Dr. Amaro de Matos, já no tempo do Professor Cavaco Silva, que tinha instruções para acabar com a IPE. E é aí que nós avançamos para a Nutrinveste, mas tivemos que levar com tudo e mais alguma coisa para comprar a Compal [em 1993]. Todas as empresas de bolachas e cereais, a Triunfo, a Proalimentar e a Nacional. Depois era uma empresa de congelados que existia no Algarve e que se pretendia que se estendesse ao país inteiro. Uma coisa que não fazia sentido. Nós fomos fechando e gastando dinheiro e gastando tempo. E ficámos, no fundo, com a Compal, depois de termos comprado nove ou dez empresas. Umas vendemos, por exemplo a Nacional, vendemos a um industrial do Norte [Amorim Lage]. A Triunfo vendemos a espanhóis.

Manuel Alfredo de Mello, administrador da Fundação Amélia de Mello, em entrevista ao ECO.Hugo Amaral/ECO

A opção foi concentrar na Compal e nos óleos alimentares.

Sobre a Compal, nós entretanto tínhamos comprado as águas Frize, que faziam alguma concorrência à Água das Pedras, e inventámos uma coisa que era o Frize Limão. Foi uma coisa fantástica de inovação. Teve um problema. A água com gás é muito regulada em termos institucionais e nós só podíamos tirar essa água do furo que estava legalizado. E esse furo tinha, suponha, capacidade para 20 milhões de litros e nós vendíamos 15 milhões. Com a Frize limão aquilo explodiu.

E o furo não tinha capacidade.

O furo não tinha capacidade. Tivemos que andar à procura de outros furos e de os legalizar, o que demorou algum tempo. Entretanto, a Água das Pedras, sobretudo, e outras empresas, começaram também a imitar-nos. Mesmo assim, quando vendemos a Compal [em 2005 à Caixa Desenvolvimento SGPS e à Sumolis], a Frize representava cerca de um terço dos lucros da Compal. A Compal era 100% dona da Frize e de empresas dos cafés. Tínhamos comprado a Chave de Ouro e a Nicola, que tinham juntas cerca de 10%, 12% de quota de mercado. Também vendemos quando vendemos a Compal. Porquê? Porque toda a estrutura diretiva e de administração da Nutricafés, como se chamava, era da Compal. Vendendo a Compal ficávamos com uma peça sem motor. E depois concentrámo-nos de facto nos óleos e nos azeites. É nessa altura, um bocadinho antes, que vamos para Espanha, com a primeira compra de uma empresa de azeite em Sevilha [em 2002], que estava em más condições.

Conseguiram revitalizar a empresa.

Conseguimos e anos mais tarde ela vendia 30% do azeite consumido em Espanha, através da Mercadona, com quem fizemos um acordo. Foi aí que nós começámos a crescer. Fomos para a América. Temos duas fábricas na América, uma do lado de cá, em Roma, no estado de Nova Iorque, e outra em Modesto, na Califórnia. Essa já foi aberta há quatro ou cinco anos. Achamos que é o mesmo país, mas tem cinco horas de décalage horária e, portanto, é completamente diferente o mercado de um lado e o mercado do outro. No meio, não existe mercado nos Estados Unidos.

A minha experiência, é que as pessoas tinham que ser empurradas. Quem vai para a política, sobretudo hoje em dia, a grande maioria não tem experiência de negócios e de empresas.

Essa aposta na internacionalização está a ser determinante para o grupo. A classe política portuguesa — e já me falou há pouco da intervenção, por exemplo, do professor Cavaco Silva — tem sabido valorizar a indústria portuguesa?

Eu não queria ser injusto… A minha experiência, é que as pessoas tinham que ser empurradas. Quem vai para a política, sobretudo hoje em dia, a grande maioria não tem experiência de negócios e de empresas. Eu não digo só de indústria, digo de agricultura, de gestão, de serviços. Não têm. E, no fundo, não sente — estou a ser muito duro — que o seu ordenado é pago por nós. Quer dizer, o seu jornal paga impostos para o Estado e esses impostos vão para pagar alguma coisa. E as pessoas não têm noção disso. Não percebem muitas vezes, porque não vieram de lá, onde é que está a origem da criação de dinheiro e quais são os problemas.

Há pouca sensibilidade para a necessidade de criação de riqueza?

Não têm. Assim como eu não tenho sensibilidade à advocacia, embora tenha tirado umas cadeiras de Direito em Económicas, e não tenho sensibilidade à medicina, a não ser as dores que eu tenho de vez em quando. A política é cada vez mais complicada. Gere-se por padrões de imediatismo. É o imediatismo que interessa e não o médio e longo prazo, nem o porquê de fazer as coisas. Vou-lhe dar um exemplo. A primeira fábrica que fizemos nos Estados Unidos, comprámos uma fábrica velha, tínhamos um sócio e depois comprámos a maioria e refizemos a fábrica, modernizando-a. A fábrica ficou pronta em menos de um ano, desde que começámos o pedido. O Condado, a quem apresentámos os planos, deu-nos um caminho de ferro com cinco quilómetros para ligar à linha normal e podermos ser abastecidos e abastecer.

Em Portugal demoraria muito mais tempo.

Demora muito mais mais tempo. E não é no centro da cidade. Era num sítio que tinha sido industrializado e eles precisavam de ocupar mão de obra e ter indústria. E aqui uma coisa joga com a outra. Nós agradecemos a rapidez e o caminho de ferro e eles agradeceram termos dado emprego a 150 pessoas.

Há aqui um problema, cada vez mais: se eu falo com um ministro, ‘ai Jesus o que é que ele está a fazer?’. Tem que haver relações abertas. O senhor ministro tem que saber o que é que eu quero, o que é que os empreendedores querem. Não é por carta, nem por email.

Em Portugal há também essa vontade de atrair investimento e de criar condições para atrair investimento. Se calhar falta essa agilidade, essa rapidez.

Falta. E depois há aqui um problema, cada vez mais: se eu falo com um ministro, ‘ai Jesus o que é que ele está a fazer?’. Tem que haver relações abertas. O senhor ministro tem que saber o que é que eu quero, o que é que os empreendedores querem. Não é por carta, nem por email.

Falta diálogo.

Eu falo e digo o que quero. Tem que ser uma conversa normal, aberta, um diálogo. Isto que vemos aí na Justiça: ‘ai almoçou e jantou com não sei quem’… É normal. Tudo depende da forma, mas é normal. Eu não digo fazer como o Trump, e estar lá atrás dele a dar-lhe dicas. Mas é normal as pessoas falarem.

Tem de haver diálogo entre os ministros e os empresários.

Tem de haver diálogo. Eu lembro-me quando comprámos a Tabaqueira, íamos em parceria com a Philip Morris. A Philip Morris disse-nos: ‘eu só vou se eu falar com o ministro das Finanças‘. A Tabaqueira era uma boa fábrica, que eles já tinham visitado, mas queriam saber a parte fulcral para eles, que era a questão fiscal. E, portanto, só falando com o ministro das Finanças. ‘O ministro das Finanças não recebe interessados antes da privatização’ [foi a resposta]. ‘Então nós não vamos’. Nós conseguimos que o ministro das Finanças, que eu agora não me lembro o nome, que era de um governo socialista [António Sousa Franco], nos recebesse.

Reunimo-nos à volta do telefone e às tantas toca e eram eles a dizer: ‘vamos embora’. E no dia seguinte desembarcaram aí 30 especialistas e fizemos a proposta e depois acabámos por ganhar [a privatização da Tabaqueira]. Esta conversa [com o ministro] tem de existir.

Como correu?

Foi uma conversa de três horas em que eles explicaram, tintim por tintim, o porquê daquilo. E à saída [o ministro] diz-nos: ‘os senhores têm argumentos muito fortes, mas não sei se me convencem’. Isto foi uma semana antes da privatização [em 1996]. Conversámos à saída do ministério e eles dizem: ‘Nós vamos falar para a América e depois, logo à noite falamos a dizer se sempre vamos para a frente, se esta conversa é suficiente ou não’. Reunimo-nos à volta do telefone e às tantas toca e eram eles a dizer: ‘vamos embora’. E no dia seguinte desembarcaram aí 30 especialistas e fizemos a proposta e depois acabámos por ganhar. Esta conversa [com o ministro] tem de existir. Não é na privatização, mas esta conversa entre o empresário, as suas necessidades, aquilo que ele quer e aquilo que ele necessita, tem que haver. E quem ordena tem que saber que isto existe. Isto é fundamental.

Agora temos, por exemplo, o ministro das Infraestruturas e o ministro das Finanças a receberem os interessados na venda da TAP.

É normal, até porque o Estado português gostaria que a TAP ficasse de uma certa forma ligada ao país, que o hub ficasse aqui.

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