“Seguradores devem passar de pagador a player na Saúde”

José Gomes, administrador da Ageas Portugal, mais diretamente ligado aos ramos Não Vida do grupo segurador, fala dos recentes desafios que a inflação e maior sinistralidade causaram e antevê mudanças.

Para o membro da Comissão Executiva do Grupo Ageas Portugal é precisa uma nova atitude de venda que vá além dos produtos.

O gestor de empresas José Gomes entrou para o Grupo Ageas Portugal em 2016, depois de 25 anos na Accenture e dois na seguradora Açoreana, é atualmente membro da comissão executiva do segundo maior grupo segurador no país. Tendo também a responsabilidade direta pelo negócio Não Vida, José Gomes atravessou os últimos tempos com um cenário de crescimento estável de vendas, mas com muitos desafios para manter as companhias rentáveis. Em entrevista a ECOseguros, descreve os últimos dois anos, faz o retrato do presente e aponta mudanças a fazer para que os seguros permaneçam interessantes para toda a cadeia de valor.

O aumento da sinistralidade em seguros saúde em 2023 foi uma surpresa?

Sentiu-se esse aumento, no primeiro trimestre de 2023, de uma forma completamente inesperada, um disparar enorme da frequência, ao ponto de internamente olharmos os números e calcularmos o pior cenário para o ano 2023. Os números eram fora do comum quanto ao aumento da frequência, da gravidade e também tinha havido, desde logo, um aumento significativo dos preços por parte dos próprios prestadores. Os grandes grupos hospitalares refletiam nos seus preços o resultado de um contexto da inflação e dos aumentos salariais dos seus colaboradores. Isto levou a uma tempestade perfeita que atingiu todo o mercado. Estes três efeitos prosseguiram todos na mesma direção e, no primeiro semestre, com números completamente fora do comum, fomos obrigados a repensar o que projetávamos de resultados até ao final do ano. Naquela altura tomámos uma série de medidas, o setor como um todo e também a Ageas, claramente um ajuste de prémio aos clientes.

Não haveria outras soluções?

Aumento de frequência ou de custo de médio não se resolve senão através do aumento do prémio. Para mim não há outra forma. Isto não tem a ver com a eficiência da companhia, quando é eficiência temos de assumir este tipo de riscos, isso é certo, mas quando estamos a falar de maior frequência e severidade, não há outra hipótese.

Foram aumentos de 12% ou mais…

Mais de 12%, mas também dependeu do segmento. Neste caso, estou a falar do segmento dos particulares que normalmente tinha um determinado tipo de comportamento que mudou completamente e daí o tal impacto importante. Já o segmento das grandes empresas é um mercado muito específico, com elevada competitividade e com outro tipo de desafios de termos de rentabilidade.

A situação tem melhorado?

A partir do verão começou a sentir-se uma volatilidade quanto à frequência e no último trimestre houve variações que não estávamos à espera, até de contraciclo. Mas tudo acabou por ter um impacto significativo dos nossos resultados, embora menor do que tínhamos previsto no final do primeiro trimestre. É um ramo com um desafio enorme pela frente, com os aumentos dos custos dos próprios prestadores, a continuidade do aumento da frequência, este ano não de forma tão grave, mas continua acima da realidade antes do Covid.

Não está a dar lucro técnico?

Anda agora em 70% de taxa de sinistralidade e presumo que seja indicador comum a todas as companhias. Se juntarmos aqui as taxas, comissionamento da distribuição, mais um bocadinho de resseguro e despesas gerais anda-se na linha zero, ou 100% de rácio combinado. Na Médis, como um grandes operadores de seguros em Portugal, estamos mais otimistas em relação a este ano do que aquilo que estivemos no ano passado, mas continua a ser um desafio grande para nós.

O seguro em geral é um negócio que está associado à probabilidade de acontecer um episódio e à perda máxima que pode acontecer nesse episódio. É um negócio. Não é o Serviço Nacional de Saúde. Portanto, as coberturas e os capitais são ajustados aquilo que os clientes estão dispostos a pagar

As pessoas usam mais os seguros de saúde?

Tipicamente o primeiro ano de contrato tinha uma taxa de utilização mais baixa, ou seja, a pessoa comprava seguro e não o usava na sua maior intensidade no primeiro ano. Hoje em dia compra e começa-se utilizar de imediato, há comportamentos claramente diferentes dos nossos clientes em relação ao produto e nós temos viver com isso e adaptar-nos a essa nova realidade.

São apontadas críticas aos capitais seguros e inadequação de seguros a situações graves…

O seguro de saúde, o seguro em geral, é um negócio que está associado à probabilidade de acontecer um episódio e à perda máxima que pode acontecer nesse episódio. É um negócio. Não é o Serviço Nacional de Saúde. Tem claramente um objetivo de lucro. Portanto, as coberturas e os capitais são ajustados aquilo que os clientes estão dispostos a pagar. Claro que se pode rever as coberturas e os capitais, é um exercício que temos vindo até a discutir internamente, perceber a que tipo de soluções podemos chegar além daquela que temos e que cobre oncologia. Em oncologia temos uma oferta da Clínica de Navarra, um parceiro de longa data, que nos permite dar as melhores respostas que podem em oncologia. É evidente que essas situações só estão cobertas na opção mais cara.

Como se comportou o negócio no ramo automóvel?

Também foi afetado pelo aumento dos custos de mão de obra e pelo custo das peças. O custo do vidro foi uma delas. Na cobertura de quebra isolada dos vidros, o preço médio por sinistro disparou porque depende muito dos custos de energia e também a tecnologia que está a ser incorporada no vidro já é muito mais mais robusta, e leva ao aumento do próprio preço de custo. Foi um ramo que em 2023 também deu preocupação em termos de rentabilidade do negócio. Se o normal é cerca de 70% de rácio de sinistralidade, calculo que esteja acima dos 100% no rácio combinado para o conjunto do setor.

Só falta voltarem problemas ao ramo Acidentes de Trabalho…

Esse ramo está equilibrado, sem preocupações que sejam relevantes. É sempre um desafio normal, mas não estamos preocupados. O automóvel continua a ser um problema.

Os veículos elétricos e os híbridos já começam a incomodar em valores de sinistralidade?

Não estamos a fazer ainda a tarifação separada do que é o tradicional de um híbrido ou elétrico a 100%, porque representam uma percentagem relativamente pequena na carteira. Mas não há dúvida que vão aumentando e vamos ter de fazer essa diferenciação, porque os custos, nomeadamente custos de reparação, não têm nada a ver com os custos da reparação tradicional. Hoje já começa a haver algumas ofertas de reparação em alguns dos componentes de carros elétricos, mas o mercado ainda não está maduro. Acho que mais tarde ou mais cedo vamos ter de começar o olhar com atenção para esse segmento específico de automóveis.

É evidente que o cliente/consumidor final tem limites e não podemos aumentar os prémios indefinidamente porque o cliente não tem capacidade. O contexto económico não está fácil

Com o aumento dos temporais, como está o Multirriscos?

Viu-se o impacto das intempéries, ou seja, antes havia um grande evento por ano. Já começa a haver vários eventos, alguns deles não tão intensos, mas não deixam de aparecer. Começa a haver picos ao longo do ano que não eram normais e que são resultantes naturalmente, muito provavelmente, daquilo que nós andamos a discutir há muito tempo, as alterações climáticas. Isto levou a que a frequência tenha vindo a aumentar, o custo médio também aumentou, mas eu diria que é um ramo que está balanceado. Estamos a contar com maior frequência de situações de intempéries.

Não haverá limite para a subida dos preços dos prémios?

É evidente que cliente consumidor final tem limites e não podemos aumentar os prémios indefinidamente porque o cliente não tem capacidade. O contexto económico não está fácil. Há pressões no rendimento das famílias portuguesas e todos os outros impactos como o custo do empréstimo e o nível de vida e portanto afeta a sua capacidade de adaptação a este aumento de prémios.

Então como responder?

No Grupo Ageas temos vindo a trabalhar nisso, nomeadamente na área da saúde, em reinventar um bocadinho o nosso próprio negócio. Hoje em dia a seguradora é um payer (pagador) no negócio de saúde. Temos de passar também um player e apostar fortemente nas questões ligadas com os ecossistemas de saúde. Como fazemos na parte dentária com as clínicas Médis.

Então podem existir investimentos do grupo Ageas em unidades de saúde?

Temos vindo a fazer um caminho de verticalização em alguns desses domínios, nomeadamente da saúde. É um caminho que nos faz sentido para termos a tal oferta mais global para a nossa rede de clientes. Agora, vamos comprar o hospital? Depende das oportunidades que apareçam. Nós concorremos à compra do Grupo Lusíadas.

Em relação à rede distribuição, alguma novidade?

Na área de bancassurance temos uma parceria estratégica de distribuição com o Millennium BCP e continuamos a apostar nela. É uma das melhores práticas a nível da Europa em termos de modelo e, em Portugal, claramente a melhor. Tem um foco fortíssimo na área de retalho mas tem vindo a crescer no segmento das empresas. Temos trabalhado no sentido de perceber como dar proteção aos empresários nas suas atividades normais do seu dia a dia porque, ao proteger os empresários, também protegemos o financiamento do banco.

Tem havido uma consolidação forte na distribuição e, no caso dos corretores, uma descida na cadeia de valor, ou seja, trabalhavam muito com as grandes empresas e com os grandes operadores em Portugal e começam a entrar cada vez mais em outros tipos de negócio

Como está a olhar para evolução dos mediadores?

Quando comecei a trabalhar, e comecei há uns anos, dizia-se que os agentes iam morrer, iam desaparecer todos. E não é verdade! Tem havido um caminho de cada vez maior profissionalização e há um mindset diferente por parte dos agentes. Não em todos eles, mas há uma evolução muito positiva, passamos a ver os agentes muito ativos no digital, numa abordagem mais proativa aos clientes e portanto, continuo a acreditar que os agentes vão continuar a ter um espaço importante na rede de distribuição de uma seguradora e até porque são eles que irão fazer a diferença e dão a parte de personalização ao cliente. A componente de confiança e de ter alguém que está lá para nos ajudar não deixa de ser diferenciador independentemente de poder usar meios digitais.

Como olha para os mediadores exclusivos Ageas? É uma rede a aumentar?

São um cartão de visita do grupo e continuamos a apostar nela. São uma rede de agentes que só trabalha connosco, portanto é a nossa marca e fazem parte da proposta de valor da Ageas embora não deixem de ser entidades autónomas. Têm mantido um peso importante a nível de distribuição na rede de agentes, mas tem características próprias e não é fácil aumentá-la, porque obviamente implica uma exclusividade. Isso quer dizer que perde liberdade em colocar produtos de outras companhias, embora tenha outras vantagens por ser exclusivo.

A consolidação nos corretores está a mudar a cadeia de valor?

Tem havido uma consolidação forte e, no caso dos corretores, uma descida na cadeia de valor, ou seja, trabalhavam muito com as grandes empresas e com os grandes operadores em Portugal e começam a entrar cada vez mais em outros tipos de negócio, quer no retalho pela aquisição de alguns agentes da rede das pequenas e médias empresas. No fundo é um mercado em ebulição, que está a mudar, está em transformação e nós temos tentado fazer o nosso melhor no sentido de nos sabermos adaptar e trazer para esse mercado aquilo com que nos podemos diferenciar. Continuamos a apostar fortemente nas parcerias. Aliás, uma das áreas internas da nossa equipa tem a ver com brokers e parcerias, porque acreditamos que há espaço para desenvolver outro tipo de canal de distribuição. Já temos em acordos com as grandes distribuidoras de automóveis, mas acreditamos e os nossos concorrentes também, que se pode ir mais longe.

O canal direto também pode ser visto como um bom canal de experiências para testar a apetência, a adesão, a ação e depois, eventualmente, trazê-las para outros canais

O canal digital não está a ter sucesso de vendas?

Temos a Seguro Directo, uma empresa que tradicionalmente é vista como um canal de distribuição de seguros automóvel. Fizemos uma reflexão estratégica, há uns tempos atrás, e começámos a pensar em que tipo de desafios se pode colocar nela. Uma delas pode passar por um lançamento de novos produtos que podem ser adicionados e vendidos facilmente através do site ou através do canal telefone. Têm de ser todos relativamente simples, porque não se vendem produtos complexos através de um site ou por uma chamada telefónica, mas mesmo assim já temos ofertas que são relativamente fáceis que estamos a introduzir gradualmente no nosso canal. E também para experimentar novas ofertas no mercado. Pode também ser visto como um bom canal para testar a apetência, a adesão, a ação e depois, eventualmente, trazê-las para outros canais.

O que se tem crescido é em seguros obrigatórios e saúde?

É a direção normal e que o tem sido a oferta das seguradoras, mas também temos vindo a complementar a oferta com novos produtos. A cibersegurança é um bom exemplo. Toda a gente fala de cibersegurança, toda a gente sabe que é um problema e é de facto uma preocupação de todos. Lançámos um produto específico na área de cibersegurança para as empresas médias e pequenas empresas e para isso fizemos resseguro. Era uma solução para vender e toda a gente dizia que queria comprar. Não foi assim tão óbvio. Estamos a prever lançar para o segmento individual, não para vender, stand alone, mas dentro de um pacote de coberturas mais abrangentes e esperamos que se permita dar também resposta a algumas necessidades dos clientes.

Então é um novo método de vendas que fará crescer mercado?

Eu devia estar a vender a ideia de “como posso tornar as suas equipas mais produtivas” ou “como é que posso reduzir o seu absentismo” ou “como ter uma boa workforce, muito mais forte, mais estabilizada”. Essa cultura é materializada num conjunto de produtos e serviços e de ativos que temos vindo a desenvolver fortemente, que nos vai permitir dar esse serviço e ajudar a dar respostas a problemas de negócio do setor. Acho que as seguradoras vão ter de seguir esse caminho, se não o fizerem, mais tarde ou mais cedo, serão fábricas de produtos.

O que será essa nova abordagem?

Terá uma lógica muito mais de conselheiro e de consultor de risco junto dos clientes, aplicando esses novos conceitos a empresas e particulares. Por exemplo, a nossa rede Private é uma rede exclusiva, uma rede de alta produtividade, alta rentabilidade e alto profissionalismo. O que é que eles fazem? Fazem venda consultiva, ou seja, não aviam seguros. Sentam se com a pessoa a tentar perceber qual as necessidades da pessoa, o perfil da família e, com base nisso, perceber quais são as lacunas de risco que têm. Curiosamente, este tipo de workforce começa por vender seguros Vida Risco.

Vê esse caminho a ser seguido?

Tipicamente vende-se aquilo que é obrigatório, mas nós estamos a ver crescer o nível de interação da rede tradicional. Ela já anda muito bem em 1,2 ou 1,3 ou 1,4, produtos por pessoa, mas há agentes com um outro nível, com capacidade de vender produtos mais complexos. Não há dúvida que está a acontecer uma mudança significativa no mindset do setor e é também por isso que trabalhar numa seguradora é uma atividade fantástica.

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