Ex-ministra do Trabalho Maria Helena André alerta que os trabalhadores estão hoje em piores condições do que há apenas uma década: a informalidade aumentou e a desigualdade persiste.
Só uma semana se tinha passado desde a tomada de posse do novo Governo, quando Luís Montenegro deu a conhecer no seu programa a intenção de “revisitar” as mudanças à lei do trabalho que entraram em vigor há apenas um ano. Em entrevista ao ECO, a ex-ministra Maria Helena André reconhece que a Agenda do Trabalho Digno não pode ficar estática, mas atira (ainda que não de forma direta sobre o caso português) que olha sempre com preocupação quando há um “apetite para destruir” aquilo que foi feito por Executivos anteriores.
Numa conversa a propósito do Dia do Trabalhador, a também diretora do departamento para os assuntos dos trabalhadores da Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta que o mercado de trabalho global está hoje em piores condições do que estava há uma década, com uma subida da precarização e da informalidade, salários magros e desigualdades persistentes.
Esta é uma de duas partes da entrevista de Maria Helena André ao ECO. Na outra parte (que pode ler aqui), a ex-ministra fala sobre as regras do trabalho nas plataformas, o teletrabalho e a inteligência artificial.
O mercado de trabalho foi transformado pela pandemia, mas também pela inflação e pela tecnologia. Neste momento, qual a sua maior preocupação em relação ao mundo do trabalho?
Não podemos discutir o mercado de trabalho sem discutirmos aquilo que se passa fora do mercado de trabalho. Estamos confrontados com uma constelação de crises e incertezas a nível mundial: os conflitos que existem no mundo, ainda as ramificações económicas da pandemia, o abrandamento económico, a dívida pública elevada, as taxas de inflação elevadas, uma polarização política e, sobretudo, — algo que é muito preocupante, do meu ponto de vista – uma desconfiança crescente em relação às instituições públicas, tanto a nível nacional como a nível multilateral.
Que consequências tem esse cenário no mercado de trabalho?
As consequências são enormes e visíveis. Se olharmos para aquilo que é hoje a realidade do mercado de trabalho a nível global, assistimos a uma precarização que está a desafiar a eficácia dos nossos sistemas de governação. Vemos também que temos um impacto de digitalização que é acelerado. Vemos que as mudanças demográficas e, provavelmente o mais importante, a ameaça iminente das alterações climáticas estão a alimentar, ainda mais do que aquilo que já existia antes da pandemia, as desigualdades.
Que números concretos é que a OIT tem para pintar esse retrato?
Em 2023, tínhamos 241 milhões de trabalhadores e trabalhadoras a viver em situação de pobreza extrema, ou seja, menos de 2,15 dólares por dia. Tínhamos 207 milhões de pessoas em situação de desemprego, 160 milhões de crianças em situação de trabalho infantil, 50 milhões de pessoas que vivem a situação de escravatura moderna. Estima-se que morram todos os anos dois milhões de trabalhadores e trabalhadoras em consequência de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Outro nó górdio das nossas economias mundiais é o aumento do setor informal.
Os empregos que foram criados no pós pandemia são muito mais no setor informal. Os salários que são pagos hoje são mais baixos. Está tudo um pouco na direção oposta daquilo que precisávamos ter no mercado de trabalho de hoje.
De que modo é que o emprego informal tem evoluído?
Entre 2008 e o início da pandemia, assistimos a uma diminuição dos trabalhadores no setor informal, mas hoje este número continua muito elevado. Passou de 58% antes da pandemia para 63% em 2023. Se olharmos também para o pós-pandemia, o subemprego e a desigualdade salarial, vemos as mulheres a ganharem em média menos 20% do que os homens. Temos um mercado de trabalho que deixa muita gente para trás, que não é capaz de integrar e de contribuir para que o trabalho digno seja a realidade.
Hoje os trabalhadores estão, portanto, numa pior situação do que há cinco anos ou há uma década.
Os trabalhadores estão pior do que estavam há uma década. Os trabalhadores estão pior do que estavam antes da pandemia. A precarização no mercado de trabalho é maior do que era antes. Os empregos que foram criados no pós-pandemia são muito mais no setor informal do que no setor formal da economia. E os salários que são pagos hoje são mais baixos do que aqueles que eram pagos antes da pandemia. Com a pandemia assistimos também a um aumento do trabalho infantil e do trabalho forçado, e a uma diminuição da proteção social a que os trabalhadores têm direito. Está tudo um pouco na direção oposta daquilo que precisávamos ter no mercado de trabalho de hoje.
E o que dizem os dados de que a OIT dispõe especificamente sobre Portugal?
As tendências não são muito diferentes. Por exemplo, as questões relacionadas com a economia das plataformas são hoje uma realidade no mercado de trabalho. Independentemente de Portugal ter avançado nesse sentido já, temos de continuar a trabalhar para que a igualdade seja uma realidade no nosso mercado de trabalho. Temos um nível de desemprego relativamente baixo em Portugal, mas temos muitos desafios em relação à qualidade do emprego, à negociação coletiva, à igualdade entre os homens e as mulheres, à conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, independentemente de termos um quadro legal e regulamentar que é mais avançado do que aquilo que observamos noutros países. A questão está na capacidade dos parceiros sociais também poderem assumir novas responsabilidades em relação à gestão e ao funcionamento do mercado de trabalho, que vão para além daquilo que é o quadro regulamentar.
Temos de continuar a caminhar no sentido de dar mais poder às organizações sindicais e patronais para elas próprias poderem definir aquilo que são os desafios, que não são os mesmos todos os dias nas empresas.
Mas acha que o diálogo entre os parceiros sociais está ou não a funcionar bem em Portugal?
Não vou dar a minha opinião sobre isso. Mas acho que se pode fazer mais. Acho que é possível fazer mais em relação àquilo a que chamamos em Portugal de Concertação Social. Sobretudo, acho que é possível fazermos mais em relação à negociação coletiva. Esse é um esforço que tem que ser feito por todos.
Na prática, como se pode estimular realmente a negociação coletiva?
Penso que é muito importante que a negociação coletiva continue a ser a resposta que se pode dar àquilo que são os desafios das empresas e dos setores. Se não tivermos esta capacidade de olhar de um ponto de vista setorial e de um ponto de vista do funcionamento das empresas, teremos muita dificuldade em adaptar aquilo que são as necessidades das empresas e as necessidades dos trabalhadores. Não podemos achar que falar de uma maior flexibilidade na organização do trabalho é algo que é contrário aos interesses dos trabalhadores. Não podemos deixar de negociar essa flexibilidade e de a ter de uma forma que seja favorável a ambas as partes, porque não há trabalhadores sem empresas e não há empresas sem trabalhadores.
Disse que a flexibilidade pode ser positiva para ambas as partes. Não teme, então, que sirva de máscara para uma desregulação das relações do trabalho, como algumas vozes apontam?
Se for uma flexibilidade negociada, não há razão para ter medo. Se for uma flexibilidade imposta, é um elemento de preocupação. A legislação laboral tem de dar um quadro que auxilie os parceiros a assumir as suas responsabilidades de negociação coletiva. Penso que aí temos de continuar a caminhar no sentido de dar mais poder às organizações sindicais e patronais para elas próprias poderem definir aquilo que são os desafios, que não são os mesmos todos os dias nas empresas.
Estou sempre preocupada quando há mudanças de Governo – e não me estou a referir a Portugal – e há um apetite para destruir aquilo de bom que foi feito.
Já várias vezes falou em trabalho digno. No último ano, a lei do trabalho mudou em Portugal, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno. O novo Governo diz que quer revê-la. Faz sentido fazer essa revisão, neste momento? Está preocupada?
Estou sempre preocupada quando há mudanças de Governo – e não me estou a referir a Portugal – e há um apetite para destruir aquilo de bom que foi feito e fazer outras coisas que às vezes são menos boas. No meu ponto de vista, há muitas matérias progressistas na nossa Agenda do Trabalho Digno, que podem ajudar a enfrentar os desafios do mercado de trabalho. Mas não é uma Agenda que possa ficar estática. É uma Agenda que tem de ter a capacidade também de ir olhando para as evoluções do mercado de trabalho e ir ajustando. Nada melhor do que não termos iniciativas unilaterais da parte dos Governos para discutir estas matérias, mas termos a capacidade de usar o diálogo social. Portugal tem uma prática de diálogo social qualitativa, mas tem uma prática de diálogo social que tem de ir para além do acordo em relação às matérias, na capacidade de também os parceiros sociais contribuírem para a implementação daquilo que é decidido de uma forma tripartida. Não deixemos aos governos exclusivamente a responsabilidade dessas tarefas.
Um apetite para rever o que foi feito pode ser sinónimo de retrocesso?
O que é fundamental é que essa Agenda do Trabalho Digno tenha a capacidade de responder àquilo que são as necessidades das empresas e dos trabalhadores. Não pode nunca ser uma Agenda que só olha para um dos dois elementos fundamentais do mercado de trabalho. No entanto, espero que não seja essa a intenção, mas nunca podemos esquecer que a relação de forças entre trabalhadores e empregadores não é igual. Temos de ter na legislação do trabalho e na Agenda do Trabalho Digno uma capacidade de proteger os mais desprotegidos, nunca esquecendo que também há a necessidade de responder às necessidades das empresas. Não é um equilíbrio simples. Implica negociação profunda e discussões muito profundas.
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“Temos um mercado de trabalho que deixa muita gente para trás”
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