Vieira da Silva ataca esquerda e diz que chumbo do OE “seria dificilmente compreensível” perante a crise

O ex-ministro do Trabalho dá nota positiva à proposta de Orçamento do Estado e avisa que um chumbo seria "muito pouco compreensível" face à crise que o país atravessa.

A seis dias da votação na generalidade, ainda não está garantida a aprovação do Orçamento do Estado para 2021, no Parlamento. Em entrevista ao ECO, José António Vieira da Silva dá nota positiva à proposta apresentada pelo Governo, elogiando-lhe “o equilíbrio entre a prudência e ambição”. É um OE que “assume a crise” e vai mais longe no apoio ao emprego e às empresas, defende o ex-ministro do Trabalho, avisando, por isso, que seria “dificilmente compreensível” um chumbo.

Para o socialista, seria até “estranho” que a proposta orçamental não fosse aprovada no próximo dia 28 de outubro, já que, caso contrário, o país perderá um “instrumento de estabilidade”, o que só poderia acontecer face a “razões muitíssimos profundas”, que Vieira da Silva diz não encontrar.

Sobre os apoios sociais criados ao longo da crise pandémica e também no Orçamento do Estado para 2021, o ex-ministro do Trabalho e da Segurança Social alerta que não é uma boa solução transformá-los em definitivos e salienta que é sempre preciso ter em conta que o sistema tem por base não um, mas dois pilares: a universalidade e a contributividade. “Não façamos tábua rasa de tudo, como se não houvesse uma distinção“, frisa o político, nesta que é a primeira parte da entrevista ao ECO.

Que avaliação faz da proposta de Orçamento do Estado para 2021 apresentada pelo Governo na Assembleia da República?

Faço, naturalmente, uma apreciação positiva. Este exercício orçamental é, de longe, o mais difícil que existiu em Portugal, desde que temos Orçamentos discutidos no quadro democrático. A dimensão da crise que a pandemia trouxe é inimaginável e o grau de incerteza que ainda existe é também muitíssimo grande. Por um lado, ainda vemos a pandemia a crescer. Em condições um pouco diferentes do que em março ou abril, mas a crescer em todo o mundo e também em Portugal. Por outro lado, não sabemos medir exatamente — ninguém sabe — qual o impacto que vai ter na economia, no emprego e nos impostos todo o período de confinamento que vivemos, todas as medidas que foram criadas, o lay-off simplificado, as moratórias de pagamentos aos bancos, [bem como] a quebra do turismo, a quebra do comércio internacional, a crise do setor da aviação.

Mesmo que não haja necessidade de novas medidas de congelamento da economia e a economia possa continuar a funcionar, não deixam de ter um impacto extremamente forte os fenómenos como, por exemplo, a quebra drástica da procura turística por via das restrições à circulação. Tudo isso tem uma cadeia de efeitos. Das poucas vezes que falei e escrevi sobre isso, manifestei uma visão um pouco pessimista sobre essa cadeia de efeitos, que é global. Os dados que têm vindo a ser conhecidos são menos pessimistas do que eu próprio fui.

Elaborar este Orçamento foi uma tarefa muito difícil, seguramente. Acho que ele [o OE] consegue um equilíbrio muito difícil entre a prudência e a ambição.

É o Orçamento de que o país precisa?

Acho que consegue um equilíbrio muito difícil entre prudência e ambição. Prudência porque, de facto, os riscos são grandes, os riscos de maiores desequilíbrios na economia. A ambição porque é um Orçamento que assume a crise e procura criar as respostas possíveis, no quadro das nossas limitações e tendo também em atenção que a Europa desenvolveu um conjunto de respostas que foram profundamente inovadoras e que a mim, aliás, me surpreenderam pela sua inovação e profundidade.

Será possível que a proposta seja aprovada na generalidade no Parlamento? Estamos a poucos dias da votação e a aprovação ainda não está garantida.

Não tenho nenhuma informação privilegiada sobre isso. Parecer-me-ia muito estranho que isso [a aprovação] não acontecesse. Julgo que todos devem avaliar bem o impacto das decisões nesse domínio. Precisamos dos instrumentos orçamentais, dos instrumentos de política para responder melhor a uma crise. Esta é a crise das nossas vidas.

Os riscos para as sociedades modernas são tremendos. São riscos de recuos civilizacionais muito profundos. Temo esses riscos, no domínio da pobreza, da violência, da discriminação, dos nacionalismos. Esta crise potencia, como nunca aconteceu na nossa história contemporânea, esses riscos. Portanto, retirar ao país um instrumento de estabilidade que é a aprovação do Orçamento é algo que só se pode fazer com razões muitíssimos profundas, que não estou a encontrar.

Chama-se a isto um Orçamento contracíclico. Mais do que discutir se há austeridade ou não… essa não é a palavra exata. Este Orçamento assumiu-se contra o ciclo que é recessivo.

O que explica a dificuldade da negociação deste Orçamento?

Não sou capaz de responder. Só quem está na negociação é capaz de o fazer. Este Orçamento, e o Orçamento Suplementar, têm uma característica que julgo que é preciso perceber bem. Quando há uma crise, normalmente a economia tem aquilo que os economistas chamam de estabilizadores automáticos. Ou seja, há uma crise económica, que normalmente é provocada por situações económicas, financeiras ou até políticas — neste caso, foi uma situação de uma pandemia sanitária — e a economia funciona com os estabilizadores. O que é que são os estabilizadores? É um aumento das despesas sociais — por exemplo, com o subsídio de desemprego — e uma redução da receita com os impostos.

A tendência de muitos governos, como aconteceu na última crise, foi contrariar esses estabilizadores. Por exemplo, diminuindo as despesas sociais, cortando o subsídio de desemprego e pensando com isso se estava a minimizar os efeitos orçamentais dessa crise. Ou aumentando os impostos. Na última crise, aumentaram o IVA e o IRS. Aprofundaram a crise.

Este Orçamento assumiu esses estabilizadores e foi mais longe. Criou medidas de apoio ao emprego, de apoio às empresas. Não aumentou impostos, até fez algumas reduções. Chama-se a isto um Orçamento contracíclico. Mais do que discutir se há austeridade ou não… essa não é a palavra exata. Este Orçamento assumiu-se contra o ciclo que é recessivo. Se falharem os instrumentos de resposta no plano da saúde pública, e espero que tenhamos boas notícias, ou se falharem os instrumentos no plano das políticas económicas e sociais, os riscos que corremos são muito grandes. Não queria parecer catastrofista e a sociedade portuguesa já mostrou um grau de flexibilidade na capacidade de resposta que surpreendeu muita gente, mas esta é uma crise de uma dimensão brutal.

E tirar — até pelo impacto que tem do ponto de vista da imagem do país –, congelar esse instrumento que é o Orçamento, que procura dar resposta à crise, investir em áreas fundamentais, reforça muito o investimento na saúde é muito dificilmente compreensível. Eu, pessoalmente, não compreendo.

Claro que há divergências, claro que não há nenhum partido que tenha maioria absoluta, no Parlamento. Foi o resultado da escolha dos portugueses. Agora, também é preciso respeitar a escolha dos portugueses, que foi certa composição [do Parlamento] e [é preciso que] todos trabalhem para encontrar uma solução de convergência. E todos os que têm responsabilidades políticas devem trabalhar nesse sentido.

Vieira da Silva em entrevista ao ECO - 21OUT20

Falou num reforço dos apoios. Este Orçamento cria um novo apoio social, que tem gerado críticas mesmo nos partidos mais à esquerda. Que lhe pareceu este novo apoio?

Não conheço em detalhe o apoio, além de ter um princípio de não comentar excessivamente áreas políticas sobre as quais tive até há pouco tempo responsabilidade.

Coloco a questão de outra maneira. Teria sido preferível manter os múltiplos apoios que hoje estão em vigor, até para dar alguma estabilidade, em vez de lançar um novo?

Escrevi nos finais de março que uma das exigências seria a de repensar, de forma extraordinária, os nossos instrumentos de políticas de mínimos sociais. Tanto quanto percebi, fizemo-lo com alguns instrumentos existentes, com o subsídio de desemprego, o subsídio social de desemprego. Poderíamos fazê-lo criando outros instrumentos. O que foi feito foi um misto das duas coisas. Criar instrumentos novos é mais exigente do que mexer nos que já existem. Há um cuidado que se tem de ter sempre: temos um sistema de proteção que combina o princípio da universalidade com o princípio da contributividade.

As pessoas recebem proteção em função das suas carreiras contributivas, mas não só. Depois, há o princípio da universalidade, de fazer chegar outros apoios a pessoas que não puderam ter esse esforço contributivo. É bom que o equilíbrio entre as duas partes se mantenha, que não ponhamos em causa a dimensão contributiva, que não façamos tábua rasa de tudo, como se não houvesse uma distinção. Vou falar com toda a franqueza. Há pessoas que não têm carreiras ou esforço contributivo por razões alheias à sua vontade. Há outras que não têm por razões que têm a ver com a sua vontade e isso tem de ser levado em linha de conta.

Não creio que seja uma boa solução transformar instrumentos excecionais em instrumentos definitivos.

Teme que estes apoios excecionais se tornem definitivos?

Não creio que seja uma boa solução transformar instrumentos excecionais em instrumentos definitivos, porque é mais difícil garantir um equilíbrio, uma justiça, uma equidade no tratamento de todos os grupos sociais.

Enquanto a pandemia tiver a força que tem, estamos numa situação de excecionalidade. Depois de voltarmos a uma situação de maior normalidade, teremos de repensar nisso tudo, porque temos de garantir um equilíbrio grande nos sistemas de proteção.

Ainda hoje estamos a viver dificuldades. Por isso mesmo, julgo que seria muito pouco compreensível que, mesmo quem ache que o Orçamento não é o Orçamento perfeito — se é que há Orçamentos perfeitos –, não faça um esforço sério para que o país possa ter… não venham dizer que é com duodécimos. Não é a mesma coisa para Portugal, nem para fora, para a Europa. E hoje a Europa é mais importante do que nunca. Quem nos pode ajudar, a nós cidadãos da Europa, para que a recuperação, quando vier, seja mais rápida, são as instituições europeias e felizmente estão muito mais sensíveis.

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