A história da última entrevista de Vasco Pulido Valente

Em outubro de 2019 a revista Egoísta publicou a última entrevista de VPV. Filipe Santos Costa conta a história desse derradeiro encontro com o mais genial cronista português das últimas décadas.

A sugestão foi dele. “Se o Filipe quiser uma entrevista, pode ser”, disse-me o Vasco, aquela voz inconfundível do outro lado da linha, e a mesma afabilidade e atenção que me dispensou tantas vezes ao longo de tantos anos.

Tratávamo-nos pelos nomes próprios, Olá Vasco, Olá Filipe, como nos tratámos desde o primeiro dia em que falámos, em novembro de 1996, ele diretor-adjunto d’O Independente, e eu uma vaga promessa do jornalismo, a entrar no gabinete dele, meio a medo, meio fanfarrão, intimamente assombrado por ali estar, a conversar com ele, “o Vasco”!, o mais brilhante da santíssima trindade VPV-MEC-PP com quem descobri o prazer de questionar o país, de amar jornais e de me rir da política.

Não, Vasco, não era uma entrevista que eu queria, mas aceitei, “Claro que sim!”, sem hesitar e sem imaginar que essa seria a sua última grande entrevista.

A Patrícia Reis tinha-me convidado para almoçar e fez-me uma proposta: editar com ela o número de outubro de 2019 da Egoísta. Concordei, como é óbvio. A Egoísta é a revista portuguesa mais premiada de sempre, e deve-o à Patrícia, sua persistente, dedicada e talentosa editora há vinte anos. A proposta era fazer com ela um número sobre Democracia. Razões de sobra para responder “vamos a isso” e, a seguir, “temos de pedir um texto ao Vasco”.

Telefonei-lhe. “Olá Vasco”.

O tema é democracia. Escreva o que quiser, do tamanho que quiser”, disse-lhe. Foi o único autor a quem dei liberdade total, e nem me ocorreu outra hipótese. Ele não fez caso. “Democracia? Ó Filipe, isso é um pouco vago”. Recusou. “Porque é que não fazemos uma entrevista? Se o Filipe quiser uma entrevista, pode ser”.

Assim foi.

Era a segunda vez que o visitava na casa da Avenida de Paris, um primeiro andar onde ele tinha vivido com os pais. Em 2016, da primeira vez que lá fui, para o entrevistar com a Ângela Silva, para o Expresso, o Vasco fez-nos as honras da casa. “Mudei tudo, isto não era nada assim”, e explicou-nos o trabalho feito pela Margarida – a arquiteta Margarida Penedo, sua mulher – na remodelação do apartamento, que durante a ditadura era uma casa segura onde os pais do Vasco ajudavam amigos perseguidos pelo regime. Lembro-me que nessa tarde entrava muita luz pelas janelas da sala, por onde se via o verde das árvores.

Eu não gosto de escrever sobre pessoas. Quando se faz umas memórias tem de se falar dos outros… e eu não gosto de falar sobre pessoas. Acho chato, injusto, complicado…

Vasco Pulido Valente

Três anos passados, numa tarde de abril, a sala estava mais escura, com uma luz soturna, e o Vasco não me foi abrir a porta de casa. Nas mais de quatro horas em que conversámos, nunca se levantou do sofá, o mesmo onde deu todas as entrevistas e tirou todas as fotos dos últimos anos que desde sexta-feira todos os jornais republicaram: o sofá preto de pele, a estante ao fundo carregada de livros, a camisa branca, o cigarro numa mão, o cinzeiro e o copo na mesa de apoio.

Estava de chinelos de quarto. Contou-me que já não saía de casa, cansava-se, tinha dificuldade em andar. Falámos da doença, dos tratamentos, de estar internado, do profissionalismo dos médicos, dos enfermeiros e dos auxiliares que o mantiveram vivo. Quando liguei o gravador do telemóvel, ainda antes de irmos ao assunto da entrevista, o Vasco estava a explicar por que razão desistiu da ideia de um livro de memórias, hipótese de que havíamos falado três anos antes.

Eu não gosto de escrever sobre pessoas. Quando se faz umas memórias tem de se falar dos outros… e eu não gosto de falar sobre pessoas. Acho chato, injusto, complicado… A imagem que eu tenho das memórias é o velho aristocrata francês fechado no seu castelo a zangar-se com o mundo”.

E qual é a parte que lhe desagrada? Estar fechado no castelo ou zangar-se com o mundo?

A parte que me desagrada é não ter castelo…

Rimo-nos.

Rimo-nos bastante ao longo da tarde. Ele tinha aquele humor finíssimo, e uma memória para pormenores, e a capacidade de correlacionar as coisas mais inesperadas, com graça e ironia, e exasperação à vezes.

Falámos da democracia, claro, como era suposto – da sua origem iliberal, da difícil relação entre democracia e liberdade, dos desafios novos e antigos à democracia liberal -, do regresso dos populismos e da reemergência dos nacionalismos, da sua irritação com o “politicamente correto”, do desaparecimento da classe média. Dessa parte da conversa, muito acabou por entrar na edição final da entrevista, que o Observador republicou esta sexta-feira.

Vasco Pulido Valente. Egoísta/Gonçalo F. Santos

Falámos da turba nas ruas de Paris a cortar cabeças e da turba nas redes sociais a moldar cabeças. Mas o Vasco conhecia melhor a revolução francesa do que a revolução algorítmica. “Nem sei o que é isso do feed do Twitter”, respondeu-me às tantas. Não se interessou pelas minhas preocupações com o uso da inteligência artificial por parte das máquinas de propaganda (“Sobre inteligência artificial não sabemos nada…”), nem se impressionou com os meus presságios sobre o impacto da robotização nas nossas sociedades e democracias (“Por amor de Deus, robotização? Isso é ficção científica, não tem nada a ver com a realidade...”). Meti a viola no saco. “Este é o momento em que constato que a minha perspetiva é mais pessimista do que a sua, algo de que eu não estava à espera…”, confessei-lhe.

Falámos do Trump, do Orbán e do Bolsonaro, da Alemanha, de Espanha e de Itália, mas também de Portugal, do Costa e do Centeno, do Passos e do Portas, do Sá Carneiro e do Cavaco. O Vasco falava deles todos assim: “o” isto, “o” aquilo. Teorizou sobre o fascínio dos povos em geral por quem lhes garanta ordem e segurança, e do fraquinho dos portugueses em particular por líderes autoritários.

Porque o autoritarismo dá segurança, e as pessoas gostam disso. Por isso é que gostam do Centeno”.

Acha o Centeno autoritário?

Então não é? É o mais autoritário de todos os governantes. Tem um ar de pachola, mas diz no défice não mexam. Nem o António Costa! Há ali uma autoridade firmíssima”.

Via paralelos entre Centeno e Cavaco, os dois homens da calculadora. No caso de Cavaco, o Vasco lembrava-se dele “ostensivamente de máquina de calcular no bolso”, quando era ministro das Finanças no Governo de Sá Carneiro, onde VPV foi secretário de Estado. Topou logo a pulsão autoritária do de Boliqueime, e pelo meio da conversa séria contou-me que um dia lhe fez uma patifaria quando estavam ambos no Governo. O professor Aníbal não gostou e o Vasco respondeu-lhe: “‘Ó Cavaco, você sabe o que é uma filha da putice? Foi o que eu lhe fiz.’ E ele riu-se”.

Não posso dizer o que será a democracia sem jornais. Uma democracia só com televisões? Não sei… E com televisão de bolso ainda menos…

Vasco Pulido Valente

E nós rimo-nos com essa e com mais histórias do tempo em que se governava por papel e a política se fazia nos jornais. Já não nos rimos quando a conversa virou para o que se passa nos jornais.

Os jornais portugueses, leio-os todos”, disse-me ele. “Estão uma miséria. Mas, também, com o que pagam aos jornalistas… é uma das classes onde a proletarização foi mais acentuada”.

Embora considerasse que boa parte da desgraça dos jornais foi “autoinflingida”, o Vasco temia o impacto do seu eventual desaparecimento. Nunca houve democracia liberal sem jornais, e não é certo que possa haver. “Há coisas no mundo em que nós vivemos, no mundo que eu atravessei, que eu não sei como vão acabar, não sei o que significam. E a única coisa que eu posso pensar é a realidade que apreendo. Não posso dizer o que será a democracia sem jornais. Uma democracia só com televisões? Não sei… E com televisão de bolso ainda menos…

A questão, explicou-me, tem a ver com a hierarquia e a disciplina que permitiram aos jornais em papel funcionar como cartas topográficas das democracias. “Os jornais implicam uma disciplina. Eu vi isso quando estive no Observador – os jornais online têm dois infinitos: cabe sempre mais uma notícia e cabe sempre mais uma coluna. É uma infinitude. Isso é um problema, porque não obriga a escolhas. Ninguém selecciona nada. Cabe tudo, por mais disparatado que seja. Os jornais em papel obrigam a uma disciplina e a uma hierarquia: qual é a ordem, qual é a página onde entram, qual o espaço de cada texto. A infinitude de espaço e a falta de limites faz-me desconfiar imenso dos jornais online, porque não obriga a uma hierarquia nem a disciplina do repórter. Se tiver de escolher, se tiver de traçar um mapa, diz às pessoas: é isto que vocês precisam de saber sobre a realidade, por esta ordem”.

Não me imagino a ser informado sobre o mundo sem os jornais e as revistas, sem a Economist, sem o Spectator. Não me consigo imaginar a ser informado só pelos noticiários das televisões, e olhe que eu vejo muitos noticiários das televisões, cinco ou seis horas por dia…” Contou-me que via os noticiários dos canais generalistas portugueses, mais os do cabo, mais os dos canais internacionais: a CNN, a BBC, a CNBC, a Aljazeera… e lamentava não ter acesso à Fox News, só para poder confirmar exatamente o aquilo é. A dieta televisiva também incluía Netflix, e o Vasco confessou o gozo que lhe dava alguma stand up comedy americana. Rimo-nos com isso, e prometi mentalmente ver alguns dos comediantes de que ele me tinha falado e que eu não conhecia. Mas não anotei os nomes, e essa parte da conversa não ficou gravada.

Quando nos despedimos era quase noite. Combinámos que na semana seguinte o Gonçalo F. Santos o iria fotografar. Assim foi, e o Gonçalo encontrou tudo na mesma, como se o tempo não passasse. O Vasco no mesmo sofá, os livros, o cigarro, o copo, os jornais, a camisa branca. Só uma diferença: o Vasco estava descalço e deixou-se fotografar assim. Como quem diz que não tenciona ir a lado nenhum.

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