Exclusivo A inflação e os mistérios do Fórum de Sintra

Por muito que custe aos bancos centrais serem os maus da fita, as taxas vão subir e deverão continuar elevadas por bastante tempo. O economista Ricardo Santos identifica seis pistas sobre os juros.

Ainda há pouco tempo os bancos centrais atribuíam um caráter passageiro, ou transitório, ao aumento da inflação. No entanto, mesmo com a desaceleração recente, os principais banqueiros centrais, que se reuniram na última semana em Sintra, e antes em Basileia para a reunião anual do BIS, salientaram agora a natureza persistente da inflação justificando assim taxas de juro (ainda) mais altas, durante mais tempo. Neste artigo, procuro desvendar com a ajuda de seis pistas este “mistério do fórum de Sintra”.

Ora, de facto, as reuniões de Sintra ocorreram num cenário bem menos negativo do que há um ano. Não só a inflação tem vindo a descer, mas também a economia global continua a surpreender pela positiva e evitou-se para já uma recessão.

No entanto, este cenário que parece tão ou mais idílico do que o local onde decorreram as reuniões não está de todo isento de riscos, bastante bem descritos no último relatório anual do BIS, de onde retirei grande parte dos dados para este artigo. Lagarde o os seus colegas preferiram alertar para esses riscos e assim corrigir as estimativas de inflação e de taxas de juro quer do mercado quer dos governos e das empresas e famílias.

O problema é que depois de 15 anos de expansionismo é difícil convencer todos ao mesmo tempo que o mundo mudou, e que desta vez os bancos centrais vão mesmo surpreender restringindo a politica monetária e não aumentando os estímulos.

E a prova desse problema é que mesmo depois das reuniões em Sintra, os mercados continuam a apostar em descidas de taxas no próximo ano. Dai que provavelmente os bancos centrais vão ter de subir as taxas mais do que o que seria à partida necessário para recuperar a credibilidade perdida.

Desvendemos então os mistérios.

Pista 1- Crescimento económico

Conforme se pode ver no gráfico 1, as estimativas de crescimento, ainda que se mantenham relativamente modestas, têm vindo a melhorar, principalmente para 2023. A economia mundial deve conseguir escapar a uma recessão este ano (algo visto como bastante improvável há um ano atrás) principalmente suportada pelo crescimento das economias emergentes, e pelo impacto da reabertura da China.

No entanto, as estimativas de crescimento para a área do euro e EUA continuam bastante baixas, e há cada vez mais sinais de uma recessão na industria, o que normalmente arrasta toda a economia. Ainda assim, parece ter-se evitado o pior, o que dá alguma margem para os bancos centrais continuarem a subir taxas.

Gráfico 1 – Estimativas de crescimento do PIB (%)

Fonte: BIS e cálculos próprios

Pista 2 – Inflação

Já quanto à inflação, de facto, como se pode ver no gráfico 2, tem vindo a descer quando comparada com o final do ano passado, mas está ainda bastante acima dos objetivos dos bancos centrais. Para além disso, a inflação core –- que exclui os componentes mais voláteis — não só desce mais lentamente nos EUA como até continuou a subir na Área do Euro.

Traduzindo: Ironicamente, a descida da inflação, e não a sua subida, pode ser transitória.

Gráfico 2 – Inflação anual nos EUA e na Área do Euro (%)

Fonte: BIS e cálculos próprios

E esta lentidão da descida da inflação é ainda mais evidente quando comparamos o ciclo atual com os episódios anteriores de inflação (gráfico 3). A inflação, agora, não só acelerou mais rapidamente do que na mediana dos ciclos anteriores, mas também está a descer mais lentamente. E, mesmo quando comparamos com a subida inflação dos anos 70 (que atingiu níveis mais altos já que o ponto de partida era também ele mais elevado), vemos que a subida foi mais rápida e a descida esta a ser bastante mais lenta. Na altura, bastaram três meses para que a inflação recuasse tanto como agora em sete.

Gráfico 3 – Evolução da inflação passada e atual antes e após o seu pico (%)

Fonte: BIS e cálculos próprios

Pista 3 – Expectativas de inflação e de taxas de juro

Gráfico 4 – Expectativas de inflação a longo prazo (%)

Fonte: BIS e cálculos próprios

A consequência direta desta persistência da inflação traduz-se naquele que é o maior pesadelo dos bancos centrais: O aumento das expectativas de inflação a médio/longo prazo por parte dos agentes económicos. De facto, com mais crescimento e com a inflação a descer lentamente, mas ainda acima do objetivo dos 2%, as expectativas de inflação quer do mercado, quer, principalmente, dos consumidores subiram, e estão bastante acima dos objetivos dos bancos centrais – isso é ainda mais o caso da área do euro, onde as expectativas dos consumidores estão perto dos 5%, o valor mais elevado de sempre.

Ou seja, mesmo com depois das rápidas subidas de taxas de juro, consumidores e investidores continuam a esperar uma inflação acima dos objetivos dos bancos centrais. E porquê?

Simplesmente, porque depois de tantos anos de politicas tão expansionistas, os bancos centrais passaram a ser vistos como estando mais preocupados com o crescimento do que com a estabilidade dos preços – o melhor exemplo desta alteração de expectativas pode também ser visto com o facto de, mesmo depois desta semana, os mercados de taxa de juros continuarem a esperar descidas no próximo ano, assim que a economia desacelere, e chegaram a descontar descidas até já este ano aquando da falência do Silicon Valey Bank em março passado.

Pista 4 – Lucros e salários

E quando juntamos este aumento das expectativas de consumidores com a evolução dos salários em termos reais (gráfico 5), percebemos até melhor os comentários de Christine Lagarde sobre a necessidade de controlar os aumentos de salários, só os aconselhando com a redução das margens das empresas, que, ao contrário dos ciclos anteriores, têm continuado a crescer.

Gráfico 5 – Crescimento dos salários em termos reais

Fonte: BIS e cálculos próprios

Se compararmos com os episódios anteriores, os salários em termos reais estão agora cerca de 2.5% mais baixos. Neste ciclo, perderam cerca de 1.5% nos EUA e Área do Euro, tendo estado até a perder perto de 4%. Nos ciclos anteriores, o mais baixo que chegaram foi perto de – 0.5%, estando na mesma fase em que estamos atualmente com um ganho de 1%. Assim, é natural que os trabalhadores exijam agora aumentos salariais mais expressivos, ainda mais com os mercados de trabalho ainda bastante pujante.

Se tal se materializar, podemos ter o segundo pesadelo dos banqueiros centrais: Os efeitos de segunda ordem na inflação, que a tornam ainda mais persistente.

Pista 5 – Taxas de juro

Posto isto, resta então aos bancos centrais usarem o seu único instrumento: As taxas de juro. E neste caso, quando se compara o ciclo atual com os anteriores (gráfico 6), tiram-se duas conclusões, uma sobre o passado e outra sobre o futuro.

Sobre o passado, conclui-se que de facto, as taxas desceram mais rápido do que no passado. Algo pouco surpreendente se pensarmos o que tem sido a política monetária nos últimos anos, mas que nos ajuda a perceber o futuro. Se desceram mais rapidamente e estavam mais baixas, é natural que as taxas tenham que subir mais depressa, como de resto está a acontecer. E quando se tenta olhar mais para a frente, vê-se que, tipicamente, as taxas só pararam de subir um ano depois do pico da inflação – ainda só passaram seis meses atualmente. Portanto, ainda falta algum caminho. A última milha, como lhe chamou o BIS no seu relatório.

Gráfico 6 – Evolução passada e atual das taxas de juro reais antes e após o pico da inflação (%)

 

Fonte: BIS e cálculos próprios

Pista 6 – O impacto de uma maior subida das taxas de juro na estabilidade financeira

E quais as consequências de taxas de juro mais altas durante mais tempo?

O primeiro e mais imediato prende-se com a atividade económica. Mais tarde ou mais cedo, o investimento e o consumo ressentir-se-ão. Mas, como vimos há alguns meses nos EUA e na Suíça, a subida de taxas de juro pode até ter implicações imediatas para a estabilidade financeira, quer por via das eventuais perdas das carteiras dos bancos mas também pelo impacto que estas podem ter na capacidade de cumprimento de dívida de famílias e empresas.

 

Gráfico 7 – Frequência de crises bancarias (%) em caso de….

Fonte: BIS e cálculos próprios

Também segundo o BIS, historicamente, cerca de 15% dos episódios de “aperto” da política monetária estão associados a episódios de crises ou instabilidade no setor financeiro.

E a frequência desses episódios é maior quando o ponto de partida é uma economia mais endividada, com aumentos abruptos da inflação ou rápido crescimento do preço das casas (gráfico 7). Se a dívida privada/PIB estiver no quartil superior da distribuição aquando do início da subida dos juros, 40% dos episódios são seguidos por uma crise bancária em três anos. A probabilidade de uma crise bancária sobe para 25% em episódios de elevada inflação e para cerca de 35% em episódios de rápido crescimento dos preços das casas.

Assim, esta pista justifica também a necessidade de um controlo rápido da inflação. Sendo certo que em alguns países o endividamento é ainda elevado e os preços das casas subiram rapidamente (fruto da politica monetária expansionista), esses factos não mudam por ação do banco central, sendo também certo que se a inflação não descer, o risco de uma crise financeira será ainda maior no futuro.

Conclusão – Custa recuperar a credibilidade e mais vale prevenir que remediar

O maior risco dos banqueiros centrais é declararem vitória cedo demais. Do ponto de vista de gestão de riscos, os bancos centrais têm agora um maior incentivo para subir mais as taxas de juro e mantê-las altas por mais tempo para garantir que a inflação continua a cair e permanece baixa. Caso a inflação saia fora de controlo, os custos das escolhas dos bancos centrais para a trazerem de volta para níveis razoáveis pioram quando a alta inflação se consolida. Tal como se aprendeu nos anos 70, ações “stop-and-go” ou de “para-arranca”, em que os bancos centrais sobem e descem taxas rapidamente, são piores, criando volatilidade que resulta em custos ainda maiores para a atividade.

Por isso, por muito que custe aos bancos centrais serem agora vistos como os maus da fita, depois de 15 anos em que foram os salvadores da economia, têm agora poucas alternativas e não há grande mistério: As taxas vão continuar a subir e deverão continuar elevadas por bastante tempo.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

A inflação e os mistérios do Fórum de Sintra

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião