BCE troca o medo da inflação pelo pânico da deflação

O Banco Central Europeu já não teme os preços a subir para lá da meta dos 2%, mas uma economia a definhar com inflação teimosamente baixa. O BCE virou o jogo, mas o risco de estagnação é real.

O Banco Central Europeu (BCE) inverteu por completo o seu discurso sobre os riscos para a economia da Zona Euro. Depois de anos a combater uma inflação teimosamente elevada, a autoridade monetária europeia mostra-se agora preocupada com o cenário oposto: uma inflação persistentemente baixa que pode comprometer a estabilidade de preços e arrastar a economia para uma espiral deflacionária perigosa.

Esta mudança de paradigma marca uma viragem na política monetária da entidade liderada por Christine Lagarde. Se até recentemente o fantasma da inflação descontrolada dominava as reuniões do Conselho do BCE, hoje são os riscos de uma inflação longe e abaixo da meta dos 2% que tiram o sono aos responsáveis em Frankfurt. A preocupação já não é impedir que os preços subam demais, mas sim evitar que desçam demasiado e por muito tempo.

Uma inflação persistentemente baixa ou mesmo um ambiente deflacionista pode ter consequências devastadoras para a economia europeia. A deflação está associada a períodos de recessão e alto desemprego, criando um ciclo vicioso onde a queda de preços leva à redução do consumo, que por sua vez força as empresas a baixar ainda mais os preços.

Se todos os consumidores adiarem os seus gastos, à espera de preços mais baixos no futuro, as empresas podem ter de reduzir a produção, e algumas poderão falir ou ser forçadas a despedir trabalhadores.

O fenómeno reflete debilidade no consumo doméstico e investimento e é particularmente gravoso, já que uma queda no preço dos ativos, por norma contraídos recorrendo a crédito, gera um desequilíbrio entre o valor dos empréstimos e as garantias bancárias. Se todos os consumidores adiarem os seus gastos, à espera de preços mais baixos no futuro, as empresas podem ter de reduzir a produção, e algumas poderão falir ou ser forçadas a despedir trabalhadores. Além disso, poderá também tornar‑se mais difícil para as famílias pagarem eventuais empréstimos, como o crédito à habitação, que não diminuirão mesmo que o seu rendimento seja menor.

Mário Centeno, governador do Banco de Portugal e membro do Conselho do BCE, tem sido uma das vozes mais assertivas sobre esta inversão de riscos, sublinhando que o principal risco da área do euro já não é a inflação alta, mas sim ficar aquém da meta de 2%. “Se o crescimento económico for fraco nos próximos dois trimestres, se o investimento não aumentar e se a inflação se mantiver próxima de 1%, teremos de fazer alguma coisa”, advertiu Centeno numa entrevista ao serviço noticioso Econostream, sinalizando que o BCE poderá acelerar o ritmo de cortes nas taxas de juro se a economia não mostrar sinais de recuperação.

powered by Advanced iFrame free. Get the Pro version on CodeCanyon.

Nota: Se está a aceder através das apps, carregue aqui para abrir o gráfico.

O governador do Banco de Portugal recorda ainda que “os fundamentos por trás da inflação não mudaram muito desde a pandemia”, referindo-se ao período pré-Covid-19, quando a Zona Euro enfrentava persistentemente uma inflação baixa, muito aquém da meta estabelecida pelo BCE.

“Estamos mais preocupados que a inflação caia do que suba”, confirmou Mário Centeno numa entrevista à Bloomberg, sublinhando que, “com os números atuais, continuaremos a ser restritivos mesmo com a inflação nos 2% se o PIB não recuperar”, e lembrando que “lutar contra a inflação e estabilizá-la nos 2% já não é o mesmo jogo. Por isso, agora temos de ser muito cuidadosos”.

A economia da Zona do Euro não está boa e os riscos de crescimento estão claramente para baixo. (…) As empresas estão a adiar investimentos e as exportações permanecem fracas, com algumas indústrias europeias a lutarem para permanecer competitivas.

Luis De Guindos

Vice-presidente do Banco Central Europeu

Olli Rehn, membro do Conselho do BCE e governador do banco central finlandês, partilha das mesmas apreensões. “Estou bastante preocupado com a inflação ficar abaixo da meta por um período prolongado”, declarou durante o retiro anual do BCE em Sintra deste ano. A sua maior inquietação prende-se com um cenário de uma inflação baixa prolongada que possa “tornar-se persistente e ficar incorporada nas expectativas de inflação”.

“Temos de assegurar que isso não se torne persistente e fique incorporado nas expectativas de inflação”, alertou Rehn, sublinhando que “estamos numa boa posição, mas não há razão para complacência”. O dirigente finlandês reconhece ainda que “a valorização do euro tem de facto ajudado a atingir a meta de 2% por agora”, mas admite que esta apreciação da moeda única também pode contribuir para pressões deflacionárias se se mantiver por muito tempo.

Luis de Guindos, vice-presidente do BCE, apresenta uma visão algo mais otimista, embora não menos vigilante. “A possibilidade de a inflação da Zona Euro cair abaixo da meta de 2% é bem limitada”, afirmou em entrevista à Bloomberg TV. Contudo, De Guindos reconhece que “a inflação ficará claramente abaixo de 2% no primeiro trimestre de 2026, mas depois irá recuperar”.

Apesar desta perspetiva mais moderada, De Guindos não esconde as suas preocupações com o estado geral da economia europeia. “A economia da Zona do Euro não está boa e os riscos de crescimento estão claramente para baixo”, alertou, sublinhando que será necessário “focar em controlar a inflação”.

Membros do Conselho do Banco Central Europeu, entidade responsável pelas decisões de política monetária, da qual fazem parte seis membros da Comissão Executiva e os governadores dos bancos centrais nacionais dos países da área do euro. BCE

Forças estranguladoras da inflação na área do euro

Vários fatores estruturais e conjunturais ajudam a explicar um potencial ambiente de inflação persistentemente baixa na Zona Euro nos próximos meses. O crescimento económico fraco tem sido um denominador comum, com a economia europeia a registar uma expansão de apenas 0,9% projetada para 2025, muito aquém do necessário para gerar pressões inflacionárias significativas.

O investimento empresarial permanece débil, penalizado pela incerteza sobre as políticas comerciais e tensões geopolíticas. “As empresas estão a adiar investimentos e as exportações permanecem fracas, com algumas indústrias europeias a lutarem para permanecer competitivas”, observa Guindos na entrevista à Bloomberg TV.

As tarifas impostas pelo governo dos EUA constituem outro fator deflacionário significativo. Mário Centeno alerta que estas medidas terão um impacto deflacionário nas economias europeias, contribuindo para pressionar a inflação para baixo.

A fragmentação geopolítica e a reestruturação das cadeias de abastecimento globais também exercem pressões deflacionistas, ao mesmo tempo que a digitalização e o uso crescente da inteligência artificial tendem a reduzir custos de produção e, consequentemente, os preços.

Mudanças estruturais como a fragmentação geopolítica e económica e o uso crescente da inteligência artificial tornam o ambiente inflacionário mais incerto.

Christine Lagarde

Presidente do Banco Central Europeu

Um dos pilares do cenário base do BCE é uma retoma sustentada do investimento público, alavancada pelos fundos Next Generation da União Europeia, mas Centeno duvida da sua execução no terreno. “Estamos a um ano do fim do NextGenEU. As despesas têm de estar concluídas até lá e isso parece difícil. Por isso temos de ser cautelosos”. Se esse investimento ficar aquém, a procura agregada pode falhar o impulso necessário para manter a inflação no alvo.

Face a estes riscos, o BCE tem ajustado a sua política monetária, cortando as taxas de juro diretoras em oito ocasiões desde junho de 2024, deixando a taxa de depósitos nos 2%. “Quase por unanimidade”, o Conselho do BCE tem apoiado esta trajetória de alívio monetário. Contudo, a autoridade monetária mantém-se cautelosa quanto ao ritmo futuro de cortes.

Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, tem sido uma das vozes mais audíveis sobre a necessidade de o BCE estar atento para não deixar cair a inflação para níveis muito baixo. "Estamos mais preocupados que a inflação caia do que suba", referiu recentemente.

“Comprometemo-nos a não agir antes de vermos os dados”, garante o governador do Banco de Portugal, indicando que cada decisão será tomada com base na evolução dos indicadores económicos. “Não sei se 25 pontos base serão suficientes”, admite, reconhecendo que “é difícil dizer o montante e o calendário de novos cortes. Tudo depende da evolução do investimento, do mercado de trabalho e, claro, dos preços no final”.

Christine Lagarde enquadra esta mudança de perspetiva do BCE numa transformação mais ampla do ambiente económico global. “Algumas das questões com as quais mais nos preocupávamos em 2021 — incluindo a inflação muito baixa durante muito tempo – tomaram um rumo bastante diferente”, reconheceu durante a apresentação da revisão estratégica da autoridade monetária em Sintra.

O desafio agora é evitar que a Zona Euro caia numa armadilha deflacionária que poderia comprometer o crescimento económico e o bem-estar dos cidadãos europeus durante anos.

“Estamos a 2%, é a meta que temos tido e é a projeção que a nossa equipa indica para o médio prazo”, afirmou Lagarde quando questionada sobre os dados da inflação em junho, que numa estimativa provisória do Eurostat que coloca o índice de preços nos 2%. No entanto, Lagarde alerta que “existe ainda muita incerteza”, notando que o risco de fragmentação está a aumentar e os desenvolvimentos geopolíticos continuam a preocupar as autoridades europeias, tudo elementos que causam “um risco duplo para a inflação, tanto para acelerar como para abrandar”.

A líder do BCE destaca que “mudanças estruturais como a fragmentação geopolítica e económica e o uso crescente da inteligência artificial tornam o ambiente inflacionário mais incerto”. Face a estas transformações, o BCE comprometeu-se a responder de forma “vigorosa” a desvios da meta de inflação de médio prazo de 2%, quer quando a inflação está demasiado alta ou baixa. “Faremos tudo o que for necessário para o cumprir: garantir a estabilidade de preços para a população da Europa”, prometeu Christine Lagarde, reconhecendo que o BCE está “atento a risco de choques de inflação demasiado baixa”.

A mudança de discurso do BCE reflete uma nova realidade económica onde os riscos de inflação baixa superam os de inflação alta. Esta inversão marca um momento histórico na política monetária europeia e obriga a repensar estratégias que durante anos se focaram no combate à inflação excessiva. O desafio agora é evitar que a Zona Euro caia numa armadilha deflacionária que poderia comprometer o crescimento económico e o bem-estar dos cidadãos europeus durante anos.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

BCE troca o medo da inflação pelo pânico da deflação

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião