Com o aproximar da data em que os EUA podem ficar sem dinheiro para pagar as contas, conheça os impactos, cenários e opões em cima da mesa se a maior economia do mundo enfrentar um default inédito.
Catástrofe. Pânico. Caos. Cenário absolutamente devastador. Consequências adversas inquantificáveis. Implicações de longo prazo impensáveis. Consequências globais terríveis. Os alertas de políticos, economistas, analistas e gestores sobre a possibilidade de os Estados Unidos entrarem em incumprimento tem vindo a crescer ao longo dos últimos dias e é bem provável que o drama cresça de tom até ao final do mês, altura em que o Governo federal da maior economia do mundo deverá ficar sem recursos para pagar as suas dívidas.
O limite do endividamento público (debt ceiling) dos Estados Unidos, de 31,38 biliões de dólares, já foi atingido a 19 de janeiro. Desde então, o Tesouro tem recorrido a “medidas extraordinárias” para pagar a credores, fornecedores, funcionários públicos e beneficiários de prestações sociais.
Se este teto não for elevado, segundo o Tesouro dos EUA deixará de haver dinheiro para pagar as contas a partir 1 de junho, pelo que a maior economia do mundo arrisca um inédito incumprimento (default) a partir dessa data.
Para evitar esta situação de precipício, a Administração de Joe Biden terá de fechar um acordo com os Republicanos. Decorreu esta terça-feira mais uma ronda de negociações entre o Presidente dos Estados Unidos e os líderes do Congresso. Biden reiterou o otimismo e Kevin McCarthy (líder dos Republicanos na Câmara dos Representantes) considerou possível um acordo esta semana, alertando que há ainda muito trabalho pela frente. Apesar dos progressos, é altamente provável que as negociações se arrastem até à 25.ª hora.
O drama do debt ceiling
Foi na I Guerra Mundial que os Estados Unidos introduziram a legislação do limite ao endividamento público. Antes de 1917, todas as emissões de dívida tinham de ser autorizadas pelo Congresso, o que se tornou insustentável. Mas abriu caminho para que, de tempos em tempos, o país tenha de lidar com o drama das negociações entre Democratas e Republicanos, sobretudo se o partido que estiver na Casa Branca não liderar o Congresso, como se verifica atualmente (Republicanos lideram a Câmara dos Representantes).
Os norte-americanos já estão bem habituados a estes períodos turbulentos, mas até agora nunca deixou de haver um entendimento antes de os cofres ficarem vazios. Desde 1941, o teto do endividamento já foi elevado (ou suspenso) por mais de 80 vezes. O último aconteceu sem grandes problemas em 2021, quando se situava em 28,9 biliões de dólares.
Na última década, o debt ceiling foi levantado por sete vezes, sendo que em duas ocasiões o stress atingiu níveis muito elevados. Em 2011, o Presidente Barack Obama e os Republicanos só fecharam o acordo a escassas horas de ser atingido o momento-chave. Mesmo sem default, a Standard & Poor’s retirou o rating máximo à dívida dos Estados Unidos, um movimento inédito por parte de uma das três maiores agências de notação financeira.
Dois anos depois, ainda com Obama na Casa Branca, o acordo para suspender o limite ao endividamento foi alcançado na véspera da data-limite. 2017, 2018, 2019 e 2021 também foram anos de intensas negociações sobre o debt ceiling, mas os acordos foram fechados de forma atempada.
O querem os Republicanos
Como é habitual neste tipo de negociações, os Republicanos mostram-se para já inflexíveis nas exigências para que seja dado o aval a um endividamento mais elevado. Preocupados com o aumento da dívida pública, pretendem cortes drásticos na despesa.
Kevin McCarthy, líder da câmara baixa do Congresso dos EUA, já fez aprovar uma lei que suspende o limite do endividamento, mas certamente não passará no Senado, que é controlado pelos democratas. As agências federais teriam o orçamento estagnado este ano e com um crescimento máximo de 1% ao ano na próxima década, o que em conjunto com o fim dos créditos fiscais na energia e outras medidas (sobretudo na área social), significaria poupanças totais de 4,8 mil milhões de dólares.
Sendo esta uma luta sobretudo política e que espelha as diferenças ideológicas entre os dois partidos, vários analistas defendem que os Republicanos podem ser tentados a provocar uma recessão económica que dificulte a reeleição de Joe Biden em 2024. Argumentos que foram reforçados pela sugestão deixada por Donald Trump de forçar um default do país se os democratas não aceitarem cortes na despesa.
Contudo, a história mostra que esta pode ser uma jogada de alto risco para os Republicanos. Depois da crise de 2011, os norte-americanos culparam os Republicanos e agora, se os pagamentos de prestações sociais e salários forem adiados, podem voltar a ser os visados.
A economia estaria repentinamente numa tempestade económica e financeira sem precedentes. O choque pode levar a uma recessão que destrói muitos empregos e empresas. É possível assistirmos a uma série de quebras nos mercados financeiros.
Impactos “dramáticos”
Se não for alcançado um acordo antes da data-limite (também conhecida por data-x), o impacto poderá ser mesmo devastador, tal como tem alertado a secretária do Tesouro, Janet Yellen. Numa altura em que a economia norte-americana já está a abrandar, um default colocará a economia de imediato numa recessão profunda e o desemprego irá disparar. Jerome Powell já avisou que a Fed não conseguirá proteger a economia do dano de longo prazo.
Estas são algumas das estimativas do que poderá acontecer se os EUA entrarem em incumprimento:
- Economia afunda. A quebra na atividade económica será instantânea, sendo que a dimensão do estrago dependerá do período do default. A Moody’s aponta para uma quebra de 4% no PIB até ao final do próximo ano e um impacto duradouro ao longo da próxima década com a diminuição do potencial de crescimento em um ponto percentual. Os assessores económicos da Casa Branca (CEA) estimam uma contração económica de 0,6% no terceiro trimestre se o incumprimento for curto e 6,1% se for prolongado.
- Desemprego dispara. A perda de emprego também será imediata, desde logo entre os funcionários públicos por o país ficar sem dinheiro para pagar salários, forçando o fecho das agências federais. A Moody’s estima que há sete milhões de postos de trabalho em risco, sendo que podem ser perdidos dois milhões de empregos mesmo num cenário de default curto. No longo prazo, seriam eliminados 900 mil empregos de forma permanente.
- Custos de financiamento disparam. Segundo os cálculos do Brookings Institution, os custos de financiamento dos EUA podem aumentar 700 mil milhões de dólares ao longo da próxima década. Mesmo se as negociações forem concluídas antes da data-x, o impacto pode ser substancial, com os investidores a exigirem juros mais elevados para financiar o país. Em 2011, o drama para elevar o teto da dívida representou um agravamento de 1,3 mil milhões de dólares nos custos de financiamento.
- Perda de credibilidade. É talvez o “ativo” que sofrerá o maior dano, pois aquela que é a maior economia do mundo ficará numa posição de extrema fragilidade se falhar o pagamento aos credores. Um acontecimento que será certamente aproveitado pela China e Rússia numa altura em que os confrontos geopolíticos entre as maiores potenciais mundiais estão ao rubro. Este também pode ser o principal trunfo da Casa Branca para convencer os Republicanos para um acordo que impeça esta humilhação.
- Pagamentos em falta. Se chegar a data-x sem acordo, ficam em risco uma série de pagamentos: 50 mil milhões de dólares a beneficiários de prestações sociais (Segurança Social), 20 mil milhões a prestadores de cuidados de saúde (Medicaid), 12 mil milhões de dólares a militares veteranos, seis mil milhões de dólares em salários de trabalhadores de entidades federais e mil milhões de dólares em apoios a famílias carenciadas. Muitos institutos e entidades públicas do país teriam de fechar portas.
Como vão reagir os mercados?
Sendo uma situação inédita, é difícil avaliar a magnitude da reação dos mercados financeiros a um default dos EUA, embora seja garantido um aumento substancial da turbulência. Ainda assim, há quem arrisque quantificar e as estimativas são negras.
A Moody’s aponta para uma desvalorização de 20% no valor das ações, subtraindo dez biliões de dólares à riqueza das famílias. A agência também estima um forte aumento das yields das obrigações, das prestações do crédito à habitação e outros financiamentos, pelo menos até que o limite do endividamento do Estado seja elevado.
Um estudo conduzido pela Reserva Federal em 2013, ao impacto de um default durante um mês e sem incumprimento no pagamento aos detentores de títulos de dívida estima a seguinte reação: desvalorização de 30% nas ações, aumento de 80 pontos base nas yields das obrigações a dez anos e queda de 10% no dólar. Os efeitos negativos demorariam cerca de dois anos a desvanecer-se.
Apesar do stress estar a aumentar com a aproximação da data-x, os mercados permanecem relativamente calmos, com os investidores confiantes que será encontrada uma solução. Contudo, as repercussões já se sentem em alguns segmentos, sobretudo relacionados com os títulos de dívida. A taxa de juro dos títulos a um mês disparou nos últimos dias para 5,6%, 200 pontos base (dois pontos percentuais) acima do registado há um mês. Os credit default swaps, seguros para protegerem os investidores de um default, atingiram máximos históricos, superando o nível de risco que está a ser atribuído a países como o México e Brasil.
A procura por ativos mais seguros como o ouro também é evidente, com o metal precioso a negociar muito perto de máximos históricos. Apesar de ser paradoxal, há analistas que acreditam que o dólar e as obrigações dos EUA até podem beneficiar com um default do país, por serem dois ativos de refúgio.
Os bancos em Wall Street estão a preparar-se para o pior e o JPMorgan já instalou uma “sala de guerra” para lidar com o pânico que deverá atingir os mercados e a economia se o default se tornar uma realidade.
O presidente da Securities and Exchange Commission (SEC), que regula os mercados em Wall Street, comparou o default a um “violento fogo” com consequências “inimagináveis” e “colapsos” em todos os mercados. “Uma confusão dos diabos”, alertou Gary Gensler.
Penso que [o default] não vai acontecer, pois seria catastrófico e quanto mais perto estamos, maior será o pânico. Afeta contratos, colaterais, câmaras de compensão. Afeta clientes de forma diferente em todo o mundo. Temos de antecipar o que as pessoas vão fazer.
Os cenários
Nesta altura são três os cenários plausíveis para o desfecho desta crise, sendo que a possibilidade de um default ainda é vista como a menos provável.
- Subida do limite antes da data-x. Se a Casa Branca garantir um acordo com os Republicanos para elevar o teto da dívida, o drama termina em Washington e esta crise será solucionada como as anteriores. Com stress, mas sem consequências relevantes para a economia e os mercados. Com o relógio já em contagem decrescente, começam as escassear as datas para fechar o acordo. Joe Biden parte esta quarta-feira para o Japão, para participar na reunião do G7 no Japão, mas cancelou a visita à Austrália de modo a regressar a Washington no domingo. Nas duas semanas seguintes haverá um número escasso de sessões para que a legislação seja aprovada na Câmara dos Representantes e depois no Senado, antes de ser assinada pelo presidente dos EUA.
- Limite suspenso antes da data-x. É o cenário mais provável. Um acordo de âmbito limitado alcançado à última hora e que vise impedir um default, ao mesmo tempo que fornece tempo para que seja possível um entendimento mais sólido. O adiamento mais provável será para 30 de setembro (fim do ano fiscal). O problema fica adiado, mas o balão do drama esvazia consideravelmente.
- Sem acordo na data-x. Se falhar o acordo antes da data-limite, o impacto nos mercados será imediato e a Casa Branca terá de ativar o plano de contingência que tem na gaveta para lidar com uma situação inédita e de proporções difíceis de imaginar. A data-x de 1 de junho, que tem sido adiantada por Janett Yellen, tem de ser vista com algum desconto, pois certamente o calendário terá ainda alguma folga para potenciar margem de manobra com vista a um acordo no “prolongamento”.
As opções da Casa Branca
Chegados à data-x sem acordo, a Casa Branca tem opções difíceis pela frente. Garantir o pagamento aos credores, ou pagar as prestações sociais e salários aos norte-americanos e outros compromissos financeiros do Governo federal?
Os economistas têm poucas dúvidas de que a prioridade será dada aos investidores, pois falhar um único pagamento colocará a maior economia do mundo em default técnico, uma situação sem precedentes e que abre caminho para uma crise que poderá suplantar os efeitos da crise financeira de 2008.
O ABN Amro considera este cenário “altamente improvável”. Se o Tesouro ficar sem dinheiro, “esperamos que dê prioridade ao pagamento dos cupões [dos títulos de dívida], em detrimento de outros compromissos financeiros, mesmo que tal signifique cortes tremendos na despesa e um encerramento parcial do governo”.
O banco dos Países Baixos calcula que serão necessários cortes de dez mil milhões de euros por dia nos gastos públicos para que o limite da dívida não seja superado. No espaço de duas semanas, representa 0,5% do PIB. “Isto sem considerar os efeitos multiplicadores, a quebra na confiança e o aperto das condições financeiras, como a queda abrupta dos mercados acionistas”, alertam os analistas do ABN Amro, salientando que neste cenário serão amplificadas as forças recessivas já existentes dos juros elevados e aperto nas condições de crédito, o que “tornará uma recessão moderada numa bem mais severa”.
A Securities Industry and Financial Markets Association (SIFMA), associação de instituições ligadas ao mercado de valores mobiliários, considera que se não existir acordo para o teto da dívida, o Tesouro deverá optar por prolongar a maturidade dos títulos numa base diária, uma solução que permitiria a continuação do funcionamento do mercado.
No cenário mais disruptivo os cupões não são pagos, os reembolsos não são cumpridos e as maturidades não são estendidas. Aquele que é o maior e mais profundo mercado do mundo ficaria congelado, arrastando a negociação de todos os ativos e colocando em causa todos os negócios, financiamentos e outras operações em que os títulos de dívida dos EUA são utilizados como colateral.
Por mais cenários e simulações que possam ser efetuados nesta altura, certamente ninguém estará devidamente preparado para o caos que se avizinha caso o default da maior economia do mundo se torne realidade.
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