Auditoria pedida pela SATA levantou questões sobre idoneidade de um dos membros do único consórcio admitido à privatização da Azores Airlines. Governo cancelou venda. Agrupamento contesta.
O conselho de administração da SATA Holding pediu à consultora Kroll uma auditoria de investigação aos candidatos à privatização da Azores Airlines, para servir de suporte à escolha do comprador de 51% a 85% do capital da companhia que faz as ligações aéreas internacionais e com o continente. Segundo a SATA, a “investigative due diligence” aponta indícios de falta de idoneidade do grupo angolano Bestfly, que com a New Tour integra o único concorrente admitido na privatização, cancelada pelo Governo Regional. O consórcio rejeita as suspeitas.
O concurso público para a privatização da maior companhia aérea do grupo SATA, que em 2023 transportou 1,45 milhões de passageiros e teve receitas de 286 milhões de euros, terminou com apenas um único candidato, o consórcio New Tour/MS Aviation, depois de o júri ter excluído o Atlantic Consortium por a proposta conter “cláusulas condicionadoras da operação”. Mas mesmo o concorrente validado pelo júri suscitou dúvidas, face às questões levantadas num relatório elaborado pela consultora Kroll.
A New Tour, conhecida por ser ser proprietária da rede de agências de viagens Bestravel ou do operador Soltrópico, detida pelo jurista açoriano Tiago Raiano, é descrita como um grupo que “de uma forma geral goza de boa reputação na indústria do turismo”.
O mesmo não acontece com a angolana Bestfly, criada em 2009 por Nuno Pereira, antigo piloto, e a mulher, Alcinda Pereira, à qual está ligada a MS Aviation, que é detida por Nuno Pereira.
A Bestfly opera uma frota de 27 aviões e reclama uma quota de 80% no mercado angolano, além de ter atividade em vários outros países: Portugal, Cabo Verde, Áustria, Aruba, Congo, Emirados Árabes Unidos, Guiana e Senegal. Um dos seus trunfos é o “monopólio” no transporte de trabalhadores para as plataformas de exploração de petróleo offshore e onshore das maiores produtoras em Angola.
A Kroll encontrou, no entanto, motivos de preocupação. “Ainda que o grupo Bestfly aparente ter uma boa reputação, no decorrer da nossa investigação identificámos alguns comentários negativos de fontes da indústria, sobretudo relacionadas com os supostos acionistas e as suas ligações políticas, assim como alegadas práticas comerciais dúbias”, escreve no relatório a que o ECO teve acesso.
Um dos pontos sublinhados é a “estrutura acionista opaca”. A Bestfly foi associada na imprensa angolana a Augusto Tomás, antigo ministro das Finanças e ministro dos Transportes de Angola, entre 1995 e 2017, durante a presidência de José Eduardo dos Santos. Seria mesmo um dos detentores da companhia aérea. Após deixar a governação foi acusado de apropriação indevida de fundos públicos e condenado, em 2019, a 14 anos de prisão por corrupção. Saiu, entretanto, em liberdade condicional.
Ainda que o grupo Bestfly aparente ter uma boa reputação, no decorrer da nossa investigação identificámos alguns comentários negativos de fontes da indústria, sobretudo relacionadas com os supostos acionistas e as suas ligações políticas, assim como alegadas práticas comerciais dúbias.
Em resposta ao ECO, fonte do consórcio afirma que Augusto Tomás “não é nem nunca foi acionista da Bestfly” e que o grupo “nunca foi beneficiado em qualquer negócio com o Estado”. Citando fontes locais, o relatório da Kroll refere que a companhia aérea não é visada em qualquer caso de corrupção.
As fontes consultadas pela Kroll apontam também ligações ao general João de Matos, falecido em 2017, e a Mário Palhares, chairman e CEO do Banco Internacional de Negócios, dono do BNI Europa em Portugal, que foi também antigo vice-governador do Banco Nacional de Angola e teria facilitado a entrada da companhia em Cabo Verde. Há também ligações, indiretas, ao atual Governo angolano. Nuno Sandão, administrador executivo da Bestfly, é primo de Ricardo de Abreu, que desde 2022 é o titular da pasta dos Transportes.
Fonte do consórcio garante, no entanto, que “Mário Palhares não é, nem nunca foi, acionista nem do grupo BestFly nem da Transportes Interilhas de Cabo Verde (TICV)”.
Devido à estrutura acionista não registada do grupo Bestfly e à sua presença em países onde a informação disponível sobre a propriedade é limitada, como Angola, não conseguimos estabelecer todas as ligações entre algumas das empresas.
O certo é que a “due dilligence” da Kroll não conseguiu identificar os donos de grande parte das empresas do grupo. “Devido à estrutura acionista não registada do grupo Bestfly e à sua presença em países onde a informação disponível sobre a propriedade é limitada, como Angola, não conseguimos estabelecer todas as ligações entre algumas das empresas”, aponta o relatório. A exceção foi a empresa na Áustria, a MRO Partners, detida por Nuno Pereira, que é proprietária de 100% da MS Aviation.
O consórcio rejeita que exista opacidade. Diz que “apresentou, na sua proposta, a identificação completa de todos os acionistas de todas as sociedades que constituem os grupos económicos que se apresentaram”.
O agrupamento apresentou, na sua proposta, a identificação completa de todos os acionistas de todas as sociedades que constituem os grupos económicos que se apresentaram.
A empresa esteve também envolvida em controvérsia em Cabo Verde, depois de ter sido chamada a substituir a espanhola Binter nas ligações entre ilhas, cujo contrato foi cancelado pelas autoridades locais em plena pandemia de covid-19. Começou por ser um contrato extraordinário de seis meses, mas a Bestlfy acabou por adquirir a TICV, com “recursos próprios”, garante o consórcio. O jornal A Nação levantou dúvidas sobre a transparência e contornos do acordo, mas a Agência de Aviação Civil (AAC) negou a existência de irregularidades, segundo relata a Kroll. O consórcio rejeita qualquer favorecimento e afirma que “o Estado de Cabo Verde não entregou qualquer montante, seja a que título for, à TICV nos últimos 3 anos, período em que a Bestfly Worldwide foi acionista”.
A aposta em Cabo Verde não correu bem. O regulador suspendeu por duas vezes aviões operados pela Bestfly em Cabo Verde, devido a problemas nas aeronaves, em agosto de 2021 e setembro de 2022, levando mesmo à interrupção da operação. Fonte oficial do consórcio alega que “foi a própria empresa que não solicitou a renovação do certificado de aeronavegabilidade”, por não existirem no mercado as peças necessárias para proceder à manutenção do avião.
Já este ano, a companhia angolana viu serem revogados pelo regulador os termos de entrada de um avião que ia permitir retomar os voos. Em abril, a Bestfly decidiu mesmo abandonar a concessão em Cabo Verde, culpando o “ambiente de negócios tóxico e punitivo” criado pelas autoridades.
O relatório assinala também que a Bestfly Aircraft Management, uma empresa do grupo, está impedida de voar para o Reino Unido desde maio de 2023, quando foi incluída na Lista de Segurança Aérea. A proibição abrange, no entanto, outras companhias aéreas certificadas pelo regulador angolano. Faz ainda parte do Anexo A da Lista de Segurança Aérea da União Europeia, podendo operar apenas através do leasing de aeronaves de uma companhia autorizada.
Sem prejuízo de as sociedades que integram o grupo New Tour poderem vender viagens ao grupo Bestfly, não existe qualquer outra relação societária ou comercial entre os grupos.
“A inclusão nas referidas listas decorreu, simplesmente, da circunstância de essa sociedade especifica – uma de entre várias que integram o grupo Bestfly –, operar sob a supervisão da Autoridade de Aviação Civil Angolana que, no entender da Comissão Europeia, não exigia o cumprimento de todas as medidas consideradas necessárias”, justifica fonte do consórcio.
Garante ainda que, além da parceria para concorrer à privatização da SATA, são poucas as relações entre as duas empresas do consórcio. “Sem prejuízo de as sociedades que integram o grupo New Tour poderem vender viagens ao grupo Bestfly, não existe qualquer outra relação societária ou comercial entre os grupos”, afirma ao ECO.
SATA aponta “possíveis falhas de idoneidade”
A privatização da Azores Airlines foi suspensa com a queda do Governo regional e retomada a 15 de março, após as eleições que mantiveram a coligação PSD/CDS no poder. O júri do concurso público, liderado pelo economista Augusto Mateus, teve entretanto acesso à auditoria da Kroll aos candidatos e decidiu incluir no relatório final, entregue no início de abril, uma “conclusão adicional”. Nela, sublinha que “as conclusões do relatório do júri são claras quando atribuem ao agrupamento concorrente New Tour/MS Aviation, uma pontuação global de (46,69) bem mais próxima do nível mínimo suficiente (25) do que do nível máximo possível (100)”.
O júri sugere ao Conselho de Administração da SATA Holding e ao próprio Governo Regional (…) que procedam a um aprofundamento de informação e análise, nomeadamente no que respeita à idoneidade do agrupamento New Tour/MS Aviation, tendo em vista uma avaliação global das condições de sucesso na prossecução do processo de privatização, por forma a podem tomar as decisões de forma mais adequada e mais segura possível.
O júri recomenda, por isso, que a SATA e o Governo Regional “procedam a um aprofundamento de informação e análise, nomeadamente no que respeita à idoneidade do agrupamento New Tour/MS Aviation, tendo em vista uma avaliação global das condições de sucesso na prossecução do processo de privatização, por forma a poderem tomar as decisões de forma mais adequada e mais segura possível”.
Na conferência de imprensa após a entrega do relatório, Augusto Mateus manteve o tom crítico, assinalando a baixa nota do único candidato admitido e sublinhando que “não se pode ter objetivos exigentes sem ter um nível de exigência e de conforto na decisão”.
Palavras que apontavam já para um cenário de cancelamento do concurso. A 9 de de abril, a CEO da SATA, Teresa Gonçalves, apresentou a demissão com efeitos a partir do final do mês, tal como o administrador financeiro, Dinis Modesto, alegando “motivos pessoais”. Dias depois, citada pela comissão de trabalhadores da companhia, disse que a decisão se prendia com o facto “de o Governo Regional dos Açores não ter oferecido condições necessárias para dar continuidade ao desenvolvimento do projeto“.
O relatório alude a indícios de uma possível falta de idoneidade profissional, operacional e financeira do grupo económico em que se insere um dos membros do agrupamento concorrente New Tour/MS Aviation – o Grupo Bestfly.
Foi ainda com a gestora na liderança executiva, mas demissionária, que o conselho de administração da SATA enviou uma carta ao Governo Regional a pedir uma “orientação específica quanto ao seguimento a dar ao concurso”, mostrando preocupação em relação às “possíveis falhas de idoneidade” registadas pela Kroll. Na missiva datada de 24 de abril e endereçada ao secretário regional das Finanças, Duarte Freitas, e à secretária regional das Infraestruturas, Berta Cabral, a que o ECO teve acesso, é apontado que “o relatório alude a indícios de uma possível falta de idoneidade profissional, operacional e financeira do grupo económico em que se insere um dos membros do agrupamento concorrente New Tour/MS Aviation – o Grupo Bestfly“, referindo as várias situações identificadas.
Acrescenta um outro dado: uma nova avaliação do assessor financeiro, entregue a 9 de abril. “Os parâmetros económicos de avaliação da SATA Internacional sofreram uma clara melhoria relativamente ao verificado no momento do lançamento do concurso para a privatização da companhia, traduzindo-se num valor de avaliação mínimo de 20 milhões, valor este superior aos 6 milhões inicialmente definidos e que ficaram estabelecidos no caderno de encargos como preço mínimo a oferecer pelos concorrentes”, nota a carta. A última proposta do consórcio foi de 5,02 milhões de euros, por apenas 76% do capital.
Embora cite a avaliação baixa no concurso e a necessidade de aprofundar a informação sobre o consórcio New Tour/MS Aviation, é àquela reavaliação que o Governo liderado por José Manuel Bolieiro se agarra para a 2 de maio deliberar a revogação da resolução que ditou a venda do capital da Azores Airlines e dar como “cancelado” o concurso, considerando que “o interesse público só é protegido através de um processo de privatização que tenha como pressuposto e leve em conta essa significativa valorização da SATA Internacional – Azores Airlines”.
Decisão que levou o consórcio a entrar com uma providência cautelar junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, para suspender a anulação da privatização, como avançou o ECO. A providência cautelar foi aceite.
No âmbito do Plano de Reestruturação aprovado por Bruxelas em 2022, que permitiu à Região Autónoma dos Açores injetar 453 milhões na companhia aérea em financiamentos e garantias, foi assumido o compromisso de privatizar a Azores Airlines até ao final de 2025.
O processo não voltou a arrancar e a SATA continua com a administração transitória nomeada em maio, enquanto aguarda por uma nova gestão executiva.
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Suspeita de “falhas de idoneidade” travou candidato à Azores Airlines. Consórcio rejeita acusações
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