“1,2,3 vou nascer outra vez…” – A CESE e a Proposta de Orçamento do Estado para 2021
A CESE nasceu no referido ano de 2014 com propósitos conjunturais, ainda sob a égide do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) e, nesse sentido, como um verdadeiro tributo “de crise”.
A alusão, no início do título deste breve artigo, a uma letra célebre no cancioneiro nacional, parece-nos totalmente apropriada para a realidade anómala e, de certo modo, paradoxal, a que aludiremos.
Efetivamente, anómala e paradoxal é a realidade subjacente à evolução do regime da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), praticamente desde a respetiva criação, por intermédio da Lei do Orçamento do Estado para 2014.
Recorde-se que a CESE nasceu no referido ano de 2014 com propósitos conjunturais, ainda sob a égide do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) e, nesse sentido, como um verdadeiro tributo “de crise”.
Todavia, rapidamente se metamorfoseou num tributo de base estrutural, ancorado numa pretensão de exigir aos respetivos sujeitos passivos o pagamento, pela via fiscal, dos custos associados à dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN).
Logo aí ficou por explicar a razão subjacente à sujeição de entidades que, por mera evidência, não podiam ter qualquer contributo para o surgimento e consequente agravamento daquela dívida, na medida em que, pura e simplesmente, estavam fora do SEN.
Quanto às demais – mesmo as que beneficiassem de algum regime de remuneração garantida que, por essa via, tivessem um impacto incremental nos designados custos de interesse económico geral (CIEG) – facto é que o legislador mais não faz, nestes casos, senão servir-se de prerrogativas atribuídas aos produtores (em especial, e com grave prejuízo, no caso do subsetor das energias renováveis), pelas quais estes últimos pagaram custos elevados, para, em momento posterior, através da cobrança da CESE, vir imputar-lhes o custo (ou sobrecusto) associado a um ou vários regimes que, enquanto decisor público, criou e que estão na base dos respetivos modelos de negócio e financiamento.
Mas a realidade subsequente tratou de incrementar, e muito, a entropia subjacente ao regime jurídico da CESE e, bem assim, à inequívoca ausência de uma ligação entre a sua imposição e os (supostos) objetivos para os quais havia sido instituída, senão vejamos:
Em primeiro lugar, a dívida tarifária do SEN apresenta uma trajetória descendente desde o ano de 2016, num momento em que a própria ERSE salientava a ausência de injeção da receita da CESE consignada à respetiva amortização, situação que só agora, passados mais de cinco anos, parece ter sido retificada.
Em segundo lugar, por intermédio da Lei do Orçamento do Estado para 2019, a CESE passou incidir sobre o setor das energias renováveis, onerando todos os detentores de centros electroprodutores com acesso a regimes de remuneração garantida (com natural destaque para o conhecido regime de “feed-in tariff”) – ou seja, afetando assim a esmagadora maioria das entidades do setor.
Tal afigura-se sobremaneira impressivo quando o setor das energias renováveis é o principal veículo para a prossecução e alcance dos objetivos nacionais no horizonte 2020-2030, em matéria de transição energética e consequente descarbonização da economia.
Mais uma vez, o decisor público preferiu um caminho definitivamente mais fácil, o de retroagir em relação a decisões tomadas há pelo menos uma década, para as quais contribuiu decisivamente (senão mesmo provocou) e com base nas quais as entidades do setor projetaram os seus investimentos e, sobretudo, arquitetarem o output expectável e ponderado para as respetivas produções.
A CESE na Proposta de Orçamento do Estado para 2021
A tudo o que já se referiu acresce o agora conhecido texto da Proposta de Orçamento do Estado para 2021, onde o regime jurídico da CESE volta a ser objeto de uma prorrogação, antecipando-se assim a sua permanência durante o próximo ano orçamental.
Mais impressiva é a inclusão de uma norma, totalmente desprovida de sentido de oportunidade, em cujos termos “[o] Governo avalia a alteração das regras da contribuição extraordinária sobre o setor energético, quer por via da alteração das regras de incidência, quer por via da redução das respetivas taxas, atendendo ao contexto de redução sustentada da dívida tarifária do SEN e da concretização de formas alternativas de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, tendo por objetivo estabilizar o quadro legal desta contribuição e reduzir o contencioso em torno da mesma”.
Para além de uma redação de inteligibilidade questionável, esta norma parece-nos claramente pretender corrigir a “confissão” do legislador, no que se reporta à Lei do Orçamento do Estado para 2020.
Recorde-se que neste último diploma fora consagrada uma autorização legislativa para que o Governo pudesse legislar sobre alterações ao regime jurídico da CESE, nomeadamente alterando as regras de incidência ou reduzindo as respetivas taxas em função da redução da dívida tarifária do SEN e correspondente redução da necessidade de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético.
Se dúvidas existissem, até o próprio legislador reconhece, embora implicitamente, que no respeitante ao seu enquadramento constitucional, a CESE deve ser tratada como imposto, preferindo, como tal, salvaguardar-se com uma autorização legislativa de teor completo que permitiria ao Governo, por Decreto-Lei Autorizado, consagrar as referidas alterações.
Afinal, não se trata de algo substancialmente novo face ao que já procurámos defender no debate académico: sendo a CESE, no plano legal, uma verdadeira “contribuição especial de terceira geração”, é a própria lei que exige a respetiva recondução ao regime constitucional dos impostos.
E, mais importante: com consequências que estão ainda por explorar, nomeadamente ao nível da jurisprudência dos tribunais superiores, com destaque para o Tribunal Constitucional.
Que futuro para a CESE?
Salvo uma decisão do legislar que passasse pela revogação – ou drástica remodelação – do regime jurídico da CESE, o futuro desta contribuição especial de terceira geração passa pela confirmação da sua manifesta contraditoriedade (logo, violação) de vários preceitos constitucionais.
Para tal, será necessário um debate alargado entre os vários interlocutores e, sobretudo, que o Tribunal Constitucional revele a necessária abertura aos novos argumentos tendentes a demonstrar a verdadeira natureza jurídica da CESE, muito mais próxima dos impostos do que das taxas – pois é isso que resulta do refúgio na categoria das contribuições financeira (que se perceberia nos primeiros anos de vigência do regime da CESE e do grau de indefinição daí resultante, mas já não após um tão expressivo número de metamorfoses de que o respetivo regime tem sido objeto, ano após ano).
Caso assim não suceda, para além dos prejuízos para a operacionalidade dos vários subsetores afetados por este tributo (incluindo, mais uma vez, o das energias renováveis), continuaremos a assistir a um paradigma de discussão em que, a cada ano, a CESE (re)nasce e, com ela, permanecem ou surgem problemas que, para todos os interlocutores – sobretudo o próprio Estado – podiam ser evitados e geram mais custos que benefícios.
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