2023 em seis apontamentos

Do crime sem castigo, passando pelo estado do Estado Social, até às carnificinas, seis pontos que marcaram o ano de 2023.

  1. Crime sem castigo. As consequências da decisão do Presidente de dissolver a AR apenas se verão em 2024. Achei, como acho, que a dissolução foi em erro e um mau serviço à democracia. Em minha opinião o governo era mau, mas tinha apoio parlamentar maioritário sólido, o que em democracia representativa significa um mandato popular até ao próximo julgamento nas urnas. Com a dissolução António Costa escapou impune (e, mesmo, com o prestígio reforçado) a esse julgamento. Não admira que transpareça felicidade.
  2. A política monetária funcionou, mais uma vez. Como os livros ensinam, os apertos monetários levam cerca de dois anos a produzir efeitos nas taxas de inflação. Neste final de ano, a taxa de inflação começa a cair acentuadamente em toda a zona do euro. O BCE conseguiu domá-la, evitando uma recessão. Parabéns para o BCE; apupos para todos naqueles que diziam que este surto inflacionista era diferente e requeria políticas não-ortodoxas.
  3. O estado do Estado Social. O moderno estado social nasceu no Reino Unido no pós-guerra de acordo com um plano delineado por William Beveridge, interessantemente um político liberal (e um devotado eugenista, o que o torna candidato ao “cancelamento”). O objetivo era garantir uma segurança económica básica a todos os cidadãos, protegendo-os dos riscos de mercado associados à velhice, doenças ou desemprego. Em 2023, foram por demais visíveis as profundas brechas nos alicerces de algumas instituições do Estado Social em Portugal, designadamente na saúde e na educação. Não é normal que o SNS faça constantemente, pelas más razões, as páginas de abertura dos principais telejornais. Como não são aceitáveis os resultados “desastrosos” nas provas de aferição de conhecimentos no ensino básico. A ironia é que isto aconteça durante a vigília de um partido que faz da defesa do estado social a sua principal bandeira.
  4. Construir. O acesso à habitação ocupou em 2023 um lugar cimeiro nas reivindicações sociais. Todos concordam: a solução de fundo é construir muito mais e muito mais depressa. Como o fazer não é óbvio. O aligeiramento regulamentar ajuda, mas não resolve. A provisão pública de habitação (por exemplo, com projetos como o da extinta EPUL em Telheiras) terá de fazer parte da solução, mas não se vislumbram os veículos para a pôr em prática. A iniciativa privada é imprescindível, mas não vejo como o possa ser decisiva nos segmentos de mercado que são compatíveis com os rendimentos dos portugueses.
  5. Contas certas. Parecem fazer parte do acquis político-partidário dos principais partidos. Como o Professor Cavaco, não sei bem o que significa. Na literatura de finanças públicas encontram-se referências à “regra de ouro” (ao longo do ciclo económico, o governo deve contrair empréstimos apenas para investir e não para financiar despesas correntes), mas não a contas certas. O significado atribuído por PS e PSD é o muito germânico “black zero”, ou seja, saldo orçamental zero. Em si mesmo este objetivo não é um sumário suficiente da política orçamental. Como é que o vamos atingir? Até aqui tem sido “gastar e tributar” cada vez mais. É isto que queremos? Em vez de se refugiarem por detrás de um slogan, melhor seria se os partidos dissessem onde vão gastar e como pretendem financiar esses gastos.
  6. Carnificinas. 2023 foi devastado por duas guerras de impacto global. Os seus efeitos continuarão a sentir-se por muitos anos futuros. Os detonadores dos conflitos foram vários: uma invasão, o desrespeito continuado pelos direitos dos povos, um atentado brutalmente sangrento, uma retaliação sem freio. Contudo, apesar destas causas aparentes e próximas, não consigo deixar de pensar que os conflitos são, no fundo, erupções de um conflito global entre o “ocidente” (EUA+ aliados da OTAN) e o eixo “China+Rússia” (com o Irão como aliado de ocasião), visando a ordem internacional unipolar do pós fim-da-guerra-fria. Temo que enquanto um novo equilíbrio entre estas duas placas tectónicas não se reestabelecer, os conflitos na Ucrânia e na Palestina não se resolvam e que outros possam eclodir.

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