30 medidas, 30 comentários
A apresentação da Nova Estratégia para a Habitação veio trazer mais questões e dúvidas, que respostas. Ainda assim, fica a sensação de que muitas das medidas elencadas nada trazem de novo.
Na semana passada, sob a designação “Construir Portugal”, o Governo apresentou a sua Nova Estratégia para a Habitação, um conjunto de 30 medidas que, nas suas próprias palavras, “visa[m] dar uma resposta urgente às dificuldades na aquisição ou arrendamento de casa, sem esquecer o longo prazo de um desafio que é geracional“. Como sempre sucede nestas apresentações, fica muito por conhecer e perceber. E, como sempre sucede também, é nos detalhes que estão Deus e o Diabo.
Ainda assim, arrisco a comentar cada uma das medidas, não deixando de fazer o aviso prévio de que posso não estar a compreender bem o que se propõe.
1. Disponibilização de imóveis públicos para habitação (build-to-rent) com renda/preço acessível, em regime de Parceria Público-Privada
Sou publicamente defensora da existência de um parque habitacional público e considero que essa oferta se deve fazer (também) através dos imóveis que o Estado já tem, designadamente por questões de rapidez de resposta e de sustentabilidade ambiental. Essa é, igualmente, a perspectiva da Lei de Bases da Habitação, que, em vários artigos, refere o recurso ao património imobiliário público. Nessa senda, o Plano de Estabilização Económica e Social, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, previu a identificação dos imóveis públicos disponíveis para a criação de um parque habitacional público de habitação a custos acessíveis, o que foi regulado pelo Decreto-Lei n.º 82/2020. Ficou o IHRU encarregado de elaborar tal inventário e de produzir anualmente um relatório de actualização. Coube-lhe, ainda, a gestão dos imóveis que integrassem a bolsa de imóveis públicos para habitação e que não fossem cedidos para promoção municipal, sendo possível a concessão a entidades privadas (nos termos que foram definidos pela Portaria n.º 290/2020). Mais recentemente, a Lei n.º 56/2023, que aprovou grande parte do pacote “Mais Habitação”, estipula a cedência a privados de terrenos e edifícios públicos desde que destinados a arrendamento acessível. Parece-me, pois, que esta primeira medida é mais uma questão de implementação, de execução do que na legislação já existe, do que propriamente uma novidade. Mesmo que se recorra ao termo “build-to-rent”…
2. Regime legal semiautomático de aproveitamento de imóveis públicos devolutos ou subutilizados por apresentação casuística de projeto de habitação, a executar pelos municípios e, se necessário, com parceiros privados
Como referido no ponto anterior, o Decreto-Lei n.º 82/2020 (bem como a Lei n.º 56/2003) já abre a possibilidade de serem os municípios a aproveitar a bolsa de imóveis públicos (artigo 12.º). O procedimento para tal não me parece complicado, mas admito que se possa simplificar e automatizar de alguma forma. Aguardemos o tal regime legal que deverá ser aprovado no Conselho de Ministros desta semana.
3. Alteração da lei dos solos para permitir o uso de solos rústicos para soluções sustentáveis de habitação (a custos controlados, para arrendamento acessível, para alojamento temporário ou oferta para casas de função para professores, forças de segurança, trabalhadores agrícolas, industriais e setor do turismo)
Questões de ordenamento do território não são a minha especialidade; para elas, existem os engenheiros da área e os urbanistas (e os juristas especializados no tema). Não obstante, faço notar que a actual Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo foi aprovada durante o Governo de Passos Coelho. Na apresentação que fez na Assembleia da República, Jorge Moreira da Silva, então Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e da Energia, falou da “incapacidade de conter a dispersão da construção fora das áreas urbanas” que “originou cidades extensas, com movimentos pendulares constantes, com os inerentes e elevados custos, nomeadamente energéticos“. Reconheço esta descrição e espero que a alteração que se quer fazer não seja um regresso aos tempos de construção desenfreada, sem planeamento.
Um outro aspecto que queria sublinhar é o de que a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo foi alterada há apenas umas semanas, pelo Decreto-Lei n.º 10/2024, o chamado Simplex Urbanístico, que ampliou a noção de “solo urbano”. Ora, indo este ser revisto no prazo de 90 dias (ver medida 18), julgo não fazer sentido que se mexa no ordenamento do território de forma isolada.
4. Criação de bónus construtivo para aumento dos índices e limites de densidade urbanística em projetos de habitação a custos controlados, arrendamento acessível ou alojamento temporário
Esta é uma medida na linha do que advoga Edward Glaeser, especialista em Economia Urbana: a construção em altura permite aumentar substancialmente a oferta de casas e, por essa via, reduzir o seu preço, sendo uma ferramenta para se ter habitação acessível nas cidades. O raciocínio está certo numa lógica em que o objectivo de política pública seja apenas o de baixar o preço da habitação. Ora, eu creio que aquilo que se deseja é garantir o direito à habitação e este, conforme clarifica o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, na sua “Observação Geral n.º 4 sobre o Direito a uma Habitação Condigna”, engloba o respeito pelo ambiente cultural. Isto é, a arquitectura, os vários edifícios e a forma como são construídos, o estilo das ruas e os vários espaços criados fazem parte do património cultural, que é fundamental na construção da identidade. O direito à habitação exige que as dimensões culturais da habitação não sejam sacrificadas e, portanto, quando se aumentam limites de densidade urbanística, temos de garantir que este aspecto é considerado. Ou seja, não adianta muito que o preço baixe se, pelo caminho, a oferta destruir a procura, como expliquei neste artigo. Uma estratégia para a habitação sob o mote “Construir Portugal” cria, confesso, algum receio. Mas, novamente, esta é uma medida que ganha com os comentários de urbanistas.
5. Novas centralidades urbanas na envolvente das zonas de pressão urbanística, com planos urbanísticos sustentáveis e em coordenação com a oferta de transportes
Que os problemas da habitação não se podem desligar dos da mobilidade é algo que tenho afirmado em diferentes ocasiões. E a Lei de Bases da Habitação também o afirma, estipulando que o direito à habitação implica o acesso a uma rede adequada de transportes, que as redes de transportes e comunicações fazem parte do habitat e, ainda, que compete ao Estado garantir a existência de uma rede adequada de transportes. A publicação do INE “O Que Nos Dizem os Censos sobre Dinâmicas Territoriais”, ao mostrar dados relativos aos meios de transporte utilizados e à duração dos movimentos pendulares casa-trabalho, leva-nos a supor que parte do problema da habitação pode estar aqui. Aliás, uma peça de Fernanda Câncio no Diário de Notícias, “Lisboa, a cidade das casas impossíveis”, trazia-nos a história de uma jovem advogada que gastava uma hora no trajecto entre a sua casa em Santo António dos Cavaleiros (Loures) e o seu emprego na Avenida da Liberdade.
Mas o problema dos transportes não pode ser visto unicamente à escala metropolitana, como aludido na conferência de imprensa de apresentação da estratégia. Há que olhar para ele na óptica da coesão territorial, porque termos quase metade da população residente enfiada em Lisboa e Porto e respectivos concelhos vizinhos é capaz de ajudar a explicar “o problema da habitação”.
E também o problema da habitação nas áreas metropolitanas, muito em particular, nas zonas suburbanas, provavelmente não se resume a uma questão de transportes, sendo relevante a disponibilidade de serviços de saúde, de educação, de cultura, de desporto, etc., o tal habitat. As novas centralidades urbanas fazem-se disso. E assim voltámos à importância do urbanismo.
(Por acaso, o ficheiro que o Governo partilhou com o elenco das medidas dá pelo nome de “Evolução do Sistema Aeroportuário de Lisboa”, mas imagino que tenha sido um lapso e que o transporte aéreo não faça parte da solução preconizada neste âmbito.)
6. Garantia do Estado a crédito para construção de cooperativas com entrega de terreno público
Os Censos mostram, como foi sublinhado no estudo que o INE divulgou a semana passada, “O Parque Habitacional: Análise e Evolução – 2011-2021”, que, entre os alojamentos que não eram casa própria, os que mais cresceram foram os de propriedade de cooperativas de habitação. Depois de terem crescido 48,1% entre 2001 e 2011, aumentaram 177,4% de 2011 a 2021, correspondendo a mais 9700 casas, passando de uma fatia de 0,5% para 1,2%. Continuam, pois, a ser muito minoritários, mas parece estar a ressurgir um interesse nesta forma de propriedade.
A aposta nas cooperativas é algo que encontramos na Lei n.º 56/2023, onde se prevê que tenham acesso à cedência de terrenos e edifícios públicos e a uma linha de financiamento promovida pelo Banco Português de Fomento. No artigo que escrevi sobre a proposta legislativa do “Mais Habitação”, censurei que estas medidas se aplicassem exclusivamente a cooperativas dedicadas ao arrendamento acessível. Os dados do Inquérito à Situação Financeira das Famílias mostram uma clara preferência da população portuguesa por ser proprietária da sua residência: apenas 2% dos agregados que vivem em casa própria afirmam que preferiam ter arrendado, ao passo que 63,5% dos inquilinos gostariam de ter comprado habitação, não o fazendo por ausência de condições financeiras.
Não me parece que esta medida venha alargar os apoios às cooperativas para habitação própria, como preconizo, mas tão-somente envolver o sector bancário privado no financiamento, sendo que considero positivo que se procure criar pontes entre financiadores e quem necessita de financiamento. É, contudo, mais um caso em que teremos de aguardar a densificação.
7. Linhas de crédito para promoção do build-to-rent
O comentário aqui é semelhante ao anterior. As sociedades comerciais que se dediquem à construção civil, em consórcio ou sob outra forma de associação com sociedades comerciais cujo objeto social inclua o arrendamento para habitação e a gestão de património, já são, nos termos da Lei n.º 56/2023, beneficiárias de um apoio à promoção de habitação para arrendamento acessível, o que inclui a tal linha de financiamento. Sem mais informação, creio que se trata de envolver o sector bancário, o que não me levanta objecções. Tenho, porém, a ideia de que o build-to-rent está associado, sobretudo, a investidores que têm liquidez e para quem o imobiliário é um activo onde aplicar os fundos de que dispõem, pelo que não sei se linhas de crédito serão o factor que mais os limita.
8. Pacto com agentes do setor para aumento da capacidade construtiva, envolvendo estabilidade da capacidade produtiva, industrialização do processo, e atração e qualificação de mão-de-obra residente
“Durante o ano de 2023, o Governo desenvolve um plano de reforço da formação e requalificação de trabalhadores e desempregados para o setor da construção civil através da promoção da oferta formativa dos centros de gestão direta e dos centros protocolares do Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P., de forma a prevenir o desemprego, promover a manutenção dos postos de trabalho e estimular a criação de emprego no setor da construção civil”. É esta a redacção do artigo 45.º da lei que aprovou, grosso modo, o pacote “Mais Habitação” (Lei n.º 56/2023). Claro que tendo ela sido publicada em Outubro de 2023, é normal que não se tenha desenvolvido o plano que era suposto desenvolver em 2023. O que agora se propõe não se cinge à formação e refere a industrialização, o aumento de capacidade. Mas, como o próprio Ministro explicou enquanto enunciava a medida, o sector da construção encontrou alternativas. Portanto, estou curiosa para saber quais serão os ingredientes do pacto que farão com que, por exemplo, o índice de emprego na construção e obras públicas, que em Abril de 2023 estava nos 108, volte à casa dos 200, como acontecia na primeira década deste século; ou com que recuperemos as mais de 20 mil empresas do sector (num universo que agora é de 102 mil) que desapareceram face a 2004.
9. Redução de IVA para a taxa mínima de 6% para as obras de reabilitação e construção de habitação, com limites em função dos preços
Algo que se aprende logo numa cadeira introdutória de Economia é que saber quem paga um imposto ou recebe um subsídio depende da força negocial das partes, daquilo a que chamamos elasticidades da procura e da oferta, e que não interessa nada o que diz a lei sobre a incidência. No que concerne ao IVA, o Governo percebe isto, motivo pelo qual esta é uma medida para adoptar até ao fim da legislatura: é que precisam de encontrar um modelo que garanta que a redução do imposto beneficia o lado da procura. E eu percebo que sejam necessários quatro anos para isso. É que, ao contrário do que sucedeu com o cabaz alimentar, que é feito de um conjunto de bens homogéneos para os quais existe um historial de preços, a habitação – como tenho repetido até à exaustão – é um bem com características especiais que levam a que o preço seja definido para cada casa em particular, nas circunstâncias particulares em que foi transaccionada.
10. Desbloqueio de 25.000 casas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) com adoção de termo de responsabilidade das câmaras municipais, de modo a acelerar os processos
À semelhança do que sucede com a primeira medida, também aqui creio que estamos a falar essencialmente de dar seguimento ao que já estava previsto. Não que o lado da execução não seja muito importante, que é. Só não considero que seja uma “nova estratégia”, é mais implementar o antigo programa.
11. Reforço de financiamento para viabilizar o desenvolvimento de milhares de outros fogos candidatos, mas não financiados no PRR
Repito que sou apologista da existência de um parque público de habitação. E se, no curto prazo, isso se faz essencialmente com o recurso aos imóveis que já são do Estado e que já têm uso habitacional ou que facilmente podem passar a tê-lo, num prazo mais longo haverá certamente que desenvolver novos fogos. A promessa do Ministro das Infraestruturas e da Habitação é arranjar, junto do Ministro das Finanças, financiamento adicional para eles. Sobre isto, duas observações. A primeira é que a habitação é um bem extremamente duradouro, pelo que é o tipo de despesa pública que deve ser financiado com dívida: se é um investimento que vai servir várias gerações, devem ser várias gerações a pagá-lo. O problema é que o país está bastante endividado e os contribuintes do futuro já estão sobrecarregados com despesa que foi corrente no passado. A segunda é que espero que esses investimentos sejam feitos depois de a procura, a de agora e a que estima que venha a haver, ter sido devidamente estudada. Ou seja, precisamos de saber que casas (com que tipologia, com que outras características, em que localização) são necessárias.
12. Robustecer a capacidade de promoção do IHRU, através da Construção Pública EPE (antiga Parque Escolar), na realização dos fogos do Programa de Arrendamento Acessível
Em Junho do ano passado, o Decreto-Lei n.º 42/2023 rebaptizou a Parque Escolar. A mudança de nome para Construção Pública, E.P.E., não foi mera operação de marketing, correspondeu a uma alteração do próprio objecto da empresa pública, que passou a ter competências na área da habitação, em articulação com diversas entidades, nomeadamente, o IHRU. Portanto, esta parceria já existe. Mas vamos entender-nos sobre ela: apesar do nome, e de ter engenheiros e arquitectos com know-how, como dito pelo Ministro, a Construção Pública não é uma construtora. Imagino que esta proposta, feita por um Governo ideologicamente mais apologista da iniciativa privada, não é de transformá-la num empreiteiro, ou seja, quando se refere que vai ser ela a executar os 10.000 fogos em concurso, o que se quer dizer é que vai ser ela a gerir esses concursos. Ora, tanto quanto sei, através de notícias, há vários deles a ficar vazios, porque são lançados com custos tão, tão controlados que nenhuma empresa se propõe para a realização da obra.
13. Revogação do arrendamento forçado, em respeito pelo direito de propriedade
Em Fevereiro de 2023, por ocasião da apresentação do pacote “Mais Habitação” e da medida de arrendamento coercivo, a então Ministra da Habitação, Marina Gonçalves, citava os dados dos Censos, segundo os quais existiriam 730 mil casas devolutas em Portugal; mais tarde, em entrevista à SIC, explicava que «devolutas são casas fechadas» e que «uma casa vazia, nos termos legais, é uma casa devoluta». Mas não era assim. O conceito de casa devoluta está estabelecido no Decreto-Lei n.º 159/2006 e exclui da noção várias situações como as casas dos emigrantes ou as que estão em disputa judicial. Um conceito, portanto, bastante longe das tais 730 mil casas vagas dos Censos (das quais quase metade está vazia por se encontrar no mercado, para venda ou arrendamento). Na verdade, bem vistas as coisas, a medida não prometia grande impacto prático, excepto o de ter lançado o pânico entre proprietários, que é mesmo o que não se quer quando se procura alimentar a confiança dos senhorios. Assim, simetricamente, a revogação do arrendamento forçado tem um carácter essencialmente simbólico. Só que não há simetria na criação/destruição da confiança e, como se costuma dizer, leva-se anos a construir a confiança, uns segundos a destruí-la e uma vida a recuperá-la.
14. Revogação da medida do Mais Habitação de garantia e substituição do Estado como arrendatário
Quando esta medida foi anunciada, considerei-a ineficaz. A ideia era a de dar tranquilidade aos senhorios, o que pressupunha que o Estado é um agente em que a maioria confia, hipótese que me pareceu bastante forte. Lendo o artigo 15.º-LA que foi aditado ao Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) para a implementar, mantenho essa opinião. Mas ser ineficaz não é ser contraproducente, pelo que não entendo a urgência da sua revogação, principalmente quando se vai nomear um grupo de trabalho para corrigir as distorções introduzidas nos últimos oito anos no NRAU (ver medida seguinte).
15. Correção das distorções introduzidas ao Regime de Arrendamento Urbano nos últimos oito anos para devolver flexibilidade e confiança ao mercado de arrendamento
Presumo que «Regime de Arrendamento Urbano» não seja uma referência ao Decreto-Lei n.º 321-B/90, mas antes à legislação sobre arrendamento em geral. A nomeação de um grupo de trabalho que a estude é uma decisão que obviamente saúdo. Aliás, gostaria que a primeira medida (e quase única) tivesse sido a realização de um diagnóstico dos problemas da habitação, que não está feito. Imagino que a correcção das distorções incluirá, por exemplo, a eliminação da limitação na fixação de rendas de novos contratos.
(Já agora, não sei onde é que se foi buscar a ideia de que os contratos de arrendamento não podem ser celebrados por apenas um ano, como afirmado pelo Ministro. Podem. O senhorio é que não se pode opor à renovação nos primeiros três anos, mas isso não retira flexibilidade ao inquilino, só lhe dá alguma segurança.)
16. Criação do contrato de investimento para built-to-rent e available-to-let
A criação destes contratos parece-me bem-intencionada, mas, para que se traduzam numa verdadeira sensação de segurança e de confiança, dava jeito que o sistema de Justiça funcionasse.
17. Possibilitar a constituição de um ou mais contratos de seguro através de um prestador que não seja o da preferência do mutuante, promovendo a saudável concorrência no mercado
Se eu estou a perceber esta medida, trata-se de proibir que os bancos obriguem que os seguros associados ao crédito à habitação sejam feitos na companhia de seguros que eles escolhem. Mas devo estar a perceber mal, porque isto já é assim, pelo menos, desde 2018. Transpondo a Diretiva n.º 2014/17/UE, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 já obriga os bancos a aceitar a companhia de seguros que o devedor escolher. No caso do seguro de vida, essa obrigação vem de 2009, do Decreto-Lei n.º 222/2009!
Se a ideia é impedir que os bancos ofereçam condições de crédito diferenciadas consoante se adquiram ou não aqueles produtos junto deles, acho mal. Porque o que vai acontecer – dada a estrutura do mercado, evidenciada pelo comportamento das taxas de juro dos depósitos – é que o spread passa a ser nivelado por cima, desaparece o desconto. O que eu achava bem é que, na Ficha de Informação Normalizada Europeia, fosse explícito se o prémio do seguro de vida proposto é uma média anual para a vigência do crédito ou apenas o valor do primeiro ano. É que, à medida que o tempo passa, duas coisas acontecem: o devedor fica mais velho, aumentando a probabilidade de falecer ou adoecer, o que faz aumentar o prémio de seguro; o montante em dívida, que é o capital seguro, diminui, levando a uma redução do prémio; nos primeiros anos, é o primeiro efeito que prevalece, isto é, o seguro torna-se mais caro, começando depois a ficar mais barato. Daí a importância daquele esclarecimento, que eu entendo que deveria ser obrigatório. Fica a ideia.
18. Revisão do Simplex Urbanístico, com regulamentação, aprofundamento e aperfeiçoamento da legislação de desburocratização e simplificação administrativa urbanística
Avaliar o impacto das medidas adoptadas é uma boa prática, que recomendo para o Simplex Urbanístico e para as demais políticas públicas. Eventualmente, fazê-lo nos próximos três meses para legislação que foi publicada em Janeiro deste ano e que entrou em vigor em Março pode ser prematuro. E, se o objectivo é promover a confiança, eu diria para não mexer, porque constantes alterações são inimigas da segurança, a menos que exista alguma norma claramente problemática.
19. Aprovar o Código da Construção
Uma outra não-novidade. Em Dezembro, foi já apresentada a estrutura do Código da Construção e o Simplex Urbanístico já estipula a sua entrada em vigor a 1 de Junho de 2026, revogando o actual Regime Geral das Edificações Urbanas, sendo as regras de natureza técnica definidas pelas ordens profissionais competentes.
20. Implementação da utilização da metodologia BIM (Building Information Modeling) e aproximação das plataformas municipais de licenciamento de interface com os agentes económicos
E, mais uma vez, fico sem saber como encaixar esta medida numa nova estratégia. O recurso ao BIM já aparece no Simplex Urbanístico. Inclusivamente, este prevê que a sua utilização passe a ser obrigatória a partir de 1 de Janeiro de 2030 na submissão dos projectos para controlo prévio.
21. Adequar o conceito de custos controlados e renda acessível para refletir o segmento de habitação acessível em cada local e momento, gerando maior previsibilidade e perenidade ao mercado
Sobre os valores para a construção a custos controlados, remeto para o comentário feito à medida 12. Já a questão do conceito de renda acessível tem-me merecido diversas reflexões em várias instâncias, explicando algo que disse há uns parágrafos atrás: cada casa tem um preço que é definido por negociação, sendo, por isso, fruto das circunstâncias subjacentes a essa negociação, o que torna a mediana (ou a média) um mau indicador. Além disso, habitação acessível é distinto de acessibilidade (económica) à habitação. O primeiro conceito é o que está associado aos preços da habitação, numa comparação com uma referência. O segundo é uma condição do agregado familiar, que olha, por um lado, para os preços e, por outro, para o rendimento, sopesando-os. É este último que integra o direito à habitação. Assim, mais que rever os valores, há mesmo é que pensar em indicadores alternativos aos que têm sido utilizados.
22. Revogação da Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local (CEAL), da caducidade da licença e transmissibilidade, e da alteração ao coeficiente de vetustez, descentralizando a regulação para os municípios
Também saúdo estas revogações, mas lamento que não se reverta a possibilidade de a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem, ditar o fecho de um alojamento local sem que tenha de fundamentar essa decisão na perturbação que a unidade causa ao prédio. A este respeito, convém salientar a desproporcionalidade face, por exemplo, a algumas pequenas indústrias que o Licenciamento Industrial permite que sejam instaladas em fracções de habitação sem carecer de alteração de uso e, portanto, sem exigir uma deliberação do condomínio.
23. Criação do Portal do IHRU (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana) para acompanhamento dos processos de candidaturas com o objetivo de reforçar a transparência
O IHRU já tem um portal, é o https://www.portaldahabitacao.pt/. E, no dia em que escrevo este artigo, continua a ter informações erradas sobre as condições que alguém tem de reunir para se candidatar ao Porta 65, à semelhança do que sucedia no dia de Fevereiro em que escrevi o artigo “Não é justo as avós dependerem das netas”. Isto depois de ter enviado ao IHRU um e-mail em Janeiro a chamar-lhes a atenção para um conjunto de respostas incorrectas às perguntas frequentes sobre aquele programa. Portanto, não, não é preciso um novo portal, é preciso que os que existem sejam mantidos devidamente actualizados e a dar informações certas. Já no âmbito de outras medidas se havia referido o robustecimento do IHRU: sim, é necessário.
24. Garantia pública aos jovens para viabilizar o financiamento bancário na compra da primeira casa
Convém começar por observar que 10% da população entre os 25 e os 34 anos não está empregada (e também não está no ensino ou a fazer formação). Um terço dos que estão empregados tem uma situação laboral precária (tem um contrato com termo) e os salários são mais baixos. Ora, com estas condições acho difícil que algum banco lhes conceda crédito, não me parece que o problema seja a entrada que têm de dar por já não haver financiamento a 100%.
25. Isenção de IMT e Imposto de Selo na compra da primeira casa para os jovens até aos 35 anos nos imóveis até ao 4º escalão de IMT, ou seja, até 316 mil euros
Além do observado no ponto anterior, de que o problema dos jovens estará, sobretudo, do lado dos rendimentos (recorde-se que uma pessoa que não saiba nadar morre afogada se não tiver pé, quer não o tenha por 20 cm ou por um metro), relembro o que disse a propósito da descida do IVA da construção: saber quem suporta o peso da fiscalidade depende das elasticidades da procura e da oferta e isso também é válido para determinar quem beneficia da descida de um imposto (o que o Governo conseguiu reconhecer no âmbito da medida 9).
26. Reformulação do programa de apoio ao arrendamento Porta 65, para colocar a realidade económica do jovem em primeiro lugar, acabando com exclusões em função de limites de rendas
O Governo prepara-se para dispensar a existência de um contrato de arrendamento (ou a promessa de um) como requisito para submeter uma candidatura ao subsídio do Porta 65. Péssima ideia! Porquê? Precisamente por causa do que já referi duas vezes: elasticidade. Se se diz que há escassez de oferta, então o poder negocial está do lado do senhorio. Isto significa que ele muito provavelmente consegue fazer com que o inquilino lhe pague o máximo que está disposto a pagar, o chamado preço de reserva. Imagine um jovem que, com o seu salário, consegue, no limite, pagar X por uma casa; nas actuais condições do mercado, essa vai ser certamente a renda acordada. Se depois de acertadas as condições do arrendamento, lhe for atribuído um subsídio Y, então o custo da casa ficará em X-Y. Mas o que acontecerá se o subsídio for dado a priori? Aí, o preço de reserva dele passa a ser X+Y, logo a renda – porque o senhorio tem poder de mercado dada a falta de casas – passa a ser X+Y. O jovem só paga X do seu bolso, mas ficou na mesma relativamente à situação em que não existe subsídio; este foi parar ao rendimento do senhorio. O que queremos com este programa é apoiar o inquilino, certo?… Então não adoptem esta medida.
27. Programa de Emergência para o Alojamento Estudantil
Com o muito pouco que foi dito (quase nada), não consigo opinar. Vamos ter de aguardar a apresentação do tal programa.
28. Implementação do “Plano Nacional Alojamento 2025-26” para os estudantes, com a oferta de mais 18 mil camas
Não foram dados muitos detalhes acerca desta medida, mas suspeito que o “Plano Nacional Alojamento 2025-26” é o “Plano Nacional de Alojamento para o Ensino Superior”, que foi lançado em 2018 e que apresenta como meta precisamente ter mais 18 mil camas até 2026. Trata-se, pois, aparentemente, de mais uma medida de continuidade.
29. Agilização dos programas de subsídio de renda, eliminando as restrições, designadamente nas caducidades
Reler o comentário feito à medida 26.
30. Criação de regulamento de transição entre as rendas apoiadas e a renda acessível, por forma a garantir a não existência de descontinuidades nos apoios
Mais uma medida em que fiquei sem saber do que se tratava.
Em resumo, e porque o texto já vai bastante longo. A apresentação da Nova Estratégia para a Habitação no passado dia 10 de Maio veio trazer mais questões e dúvidas, que respostas. Ainda assim, a partir do que foi dado a conhecer, fica a sensação de que muitas das medidas elencadas nada trazem de novo. Sobretudo, não houve novidade na forma: continua a não existir um estudo prévio, uma caracterização do problema, devidamente quantificada, que fundamente as opções tomadas. Aguardemos os próximos desenvolvimentos, alguns deles prometidos para breve.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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