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A alteração à Lei dos Solos é mesmo necessária?
A necessidade desta alteração resulta, desde logo, do facto de o PS já ter anunciado, no âmbito do processo de apreciação parlamentar em curso, que está disposto a não inviabilizar a manutenção do DL.
Muito se tem dito a propósito da alteração da Lei dos Solos (trata-se do DL 117/2024, de 30.12, que não altera a Lei dos Solos, mas sim o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial).
A alteração centra-se na simplificação de procedimentos de reclassificação do solo rústico em solo urbano (em decorrência do que já havia sido feito pelo anterior governo, no ‘Simplex Urbanístico’).
Opiniões avalizadas vieram defender que não é necessária a alteração porque em Lisboa e no Porto não há solo rural e a crise na habitação resolve-se com promoção pública, como os bairros de Alvalade e dos Olivais (construídos nos anos 50) e Telheiras (construído pela EPUL nos anos 70 e 80). É verdade, mas o país não é só Lisboa e Porto (e nos municípios vizinhos há muito solo rural, face à respetiva classificação legal, que originou todo este problema). E, no que respeita à promoção pública em Lisboa, a Câmara Municipal, então liderada por António Costa, extinguiu a EPUL e centrou o investimento público nas zonas prime da Cidade. A Cidade voltou então costas à sua periferia e, por essa via, à habitação acessível. Ignorou-a e ostracizou-a. Veja-se o vazio urbano em zonas como Chelas, com muito terreno público ainda disponível.
Para além daquelas opiniões avalizadas, a maioria da classe do comentário público foi muito crítica destas alterações, com comentários baseados em alguma ignorância, populismo e demagogia. Ignorância por desconhecimento da origem do problema e do porquê de ser necessário resolvê-lo; populismo e demagogia ao passar-se a ideia errada de que se ia poder construir em qualquer lado, o que não é o caso. E porque nestes temas da construção a crítica é frequentemente bem acolhida (mesmo que possa faltar a coerência a quem a faz, o que aqui pode passar por se ser proprietário de casas onde hoje nunca se poderia construir).
A origem do problema remonta a 2014, quando Jorge Moreira da Silva era Ministro com a pasta do Ordenamento do Território (no governo Passos Coelho) e se encetou a reforma legislativa em que se eliminou a categoria de solos urbanizáveis, passando apenas a existir solo rural ou solo urbano, sendo que apenas é classificado como solo urbano o que já esteja total ou parcialmente urbanizado ou edificado. Caso não seja esse o caso, o solo é classificado como rural, mesmo que não tenha qualquer aptidão agrícola ou florestal. No desconhecimento destes critérios de classificação do solo rural assenta o equívoco de muitos dos que se têm pronunciado sobre estes temas.
Apesar de esta reforma ter sido então muito elogiada (e ainda é hoje), tinha um efeito óbvio: cristalizava os terrenos em que se podia construir, uma vez que apenas se poderia construir em terrenos que já estivessem urbanizados em 2014, ou reabilitar o existente ou demolir para depois construir. Tal situação determinava um aumento exponencial do valor desses terrenos (e do preço da habitação), e inviabilizava qualquer investimento industrial, pois para a reclassificação de um solo rural como urbano era necessário um plano de pormenor, procedimento muito moroso e – em regra – incompatível com investimentos industriais, especialmente do estrangeiro.
Para impor a nova classificação, determinou-se naquela reforma legislativa que todos os planos municipais de ordenamento do território, nomeadamente, todos os PDM, fossem alterados no prazo máximo de cinco anos, determinando-se, nos casos em que os PDM não fossem alterados nesse prazo, a suspensão automática de todas as normas relativas a áreas urbanizáveis e impedindo-se qualquer construção nas mesmas. A alteração dos PDM foi sendo adiada e tal prazo foi sendo sucessivamente prorrogado (assim se evitando o problema), até à data-limite de 31 de dezembro do ano passado, fixada neste mesmo DL 117/2024.
Foi neste contexto que, tanto PS como PSD, coincidiram na necessidade de uma alteração legislativa, que assentou não na reintrodução da categoria de solos urbanizáveis, mas sim na simplificação do procedimento de reclassificação de solos rurais em solos urbanos.
Um importante passo foi dado no início do ano passado, ainda pelo anterior governo, com o ‘Simplex Urbanístico’, em que se veio prever tal regime simplificado de reclassificação, em particular para a instalação de indústria e de habitação.
No entanto, limitou-se a possibilidade de reclassificação de solos rurais para urbanos aos casos em que não existam solos urbanos disponíveis (o que gera que se continue a inflacionar o valor desses solos), e, no que respeita à habitação, estabeleceu-se ainda como requisito: (i) que a propriedade do terreno fosse exclusivamente pública; (ii) que o terreno estivesse situado na contiguidade de solo urbano; (iii) e que se destinasse a habitação a custos controlados ou uso habitacional, desde que previsto na Estratégia Local da Habitação, ou Carta Municipal de Habitação ou Bolsa de Habitação.
É, nomeadamente, nestes pontos que assenta o DL 117/2024. Eliminou-se a exigência de inexistência de solos urbanos disponíveis e, no que respeita à habitação, deixa de existir a limitação de a propriedade do solo ser exclusivamente pública. Por outro lado, eliminou-se o requisito de o solo ter que estar na contiguidade de solo urbano, estabelecendo-se, contudo, que tem que ser assegurada a consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente, o que afasta o cenário que tem sido erradamente comentado de se permitir o surgimento de construção dispersa. Além disso, determina-se que 700/1000 da área de construção tem que ser afeta a habitação pública ou para venda a valor moderado, de acordo com a definição prevista no DL, e não construção para habitação própria ou segundas residências, como também se tentou erradamente passar.
A necessidade desta alteração (e por aqui se responde à pergunta em título), resulta, desde logo, do facto de o PS já ter anunciado, no âmbito do processo de apreciação parlamentar em curso, que está disposto a não inviabilizar a manutenção do DL.
Face às propostas já apresentadas pelo PS, não se pretende reintroduzir o requisito da propriedade dos terrenos ser exclusivamente pública (que, de facto, reduzia muito o efeito prático da alteração introduzida pelo ‘Simplex Urbanístico’), mas pretende-se que: (i) continue a ser exigido que não existam solos urbanos disponíveis (aplicável não só ao uso habitacional, como ao industrial), o que continua a inflacionar o valor do solo urbano e a permitir que, por essa via, se impeça a reclassificação; (ii) se mantenha o requisito da contiguidade com solo urbano, o que pode gerar dificuldades de aplicação, na definição dessa contiguidade; e (iii) se elimine a referência à venda a valor moderado, impondo-se que os referidos 700/1000 de área de construção sejam afetos a habitação pública, arrendamento acessível ou custos controlados, o que, naquela percentagem, poderá tornar os projetos economicamente inviáveis, e não assegurar habitação para jovens e classe média.
Mantém-se assim o desafio, mesmo estando-se ainda no quadro de um regime extraordinário de aplicação caso a caso (que, por essa razão, também pode gerar dificuldades na sua aplicação), e não a reequacionar-se a introdução da classificação nos planos de ordenamento do território da figura de solos urbanizáveis, algo que numa reforma mais profunda ainda se devia ponderar, mesmo que mais limitado do que o que existia no passado.
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