A defesa da liberdade de expressão (especialmente daqueles de quem discordo)

Vivemos um tempo em que é cada vez mais fácil exigir a censura daqueles de quem discordamos. São tempos perigosos, nos quais também os jornalistas estão a entrar.

E chegados aos 50 anos do 25 de abril, à celebração da liberdade, está o país a discutir a censura e os que mais evocam a revolução são os que defendem que o Presidente da Assembleia da República deveria mandar calar André Ventura por ter feito comentários xenófobos sobre os trabalhadores turcos, deveria exercer o poder do ‘lápis azul’. Hoje, censurava André Ventura, e amanhã?

O que disse o presidente do Chega? “O aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos. O aeroporto de Istambul… Istambul! Não estou a falar de Veneza: Istambul. Ora, os turcos não são propriamente conhecidos por serem o povo mais trabalhador do mundo”. A afirmação, por sinal, é falsa, coisa pouco sublinhada na discussão pública por estes dias: O PIB por hora trabalhada é superior ao português…

Portanto, a afirmação é, em primeiro lugar, falsa. E em segundo, roça a xenofobia quando faz uma caracterização racial ou étnica (como a que fez Marcelo Rebelo de Sousa quando disse que António Costa, por ter ascendência oriental, é lento, nas decisões, presume-se), embora talvez tenha ganho uma relevância excessiva e uma onde de indignação desproporcionada. A afirmação foi feita em pleno Parlamento, e a líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, tentou pôr o Presidente da Assembleia em dificuldades. Poderia Ventura dizer aquele disparate, ou outro qualquer? Para José Pedro Aguiar-Branco, pode. E bem.

Permitir que terceiros digam os maiores disparates, como os que Ventura repete à exaustão, é mesmo o fator que determina se vivemos efetivamente numa democracia liberal ou se é apenas um regime para a liberdade de expressão formal, à medida das nossas próprias opiniões.

Alguma vez teria subscrever, sem ‘mas’, uma opinião de José Pacheco Pereira, num artigo de opinião no jornal Público: A liberdade de expressão não é um valor absoluto, obviamente, mas é dos que deve ser lido de forma mais ampla, e a sua única limitação não é o disparate, ou até a mais absoluta repugnância, é a lei e a existência, ou não, de crime. E para isso estão os tribunais, não um qualquer Presidente da Assembleia da República que, se abrisse essa porta, passaria a ter de nos dizer, diariamente, o que pode ou não ser dito. Não queremos com toda a certeza viver num país desses.

Os deputados têm particular espaço à liberdade de expressão no exercício das suas funções, ao abrigo do respetivo estatuto e da própria Constituição. A afirmação de Ventura é ofensiva para os turcos, e se fosse para outra qualquer raça ou género? O ponto de partida é sempre o mesmo, uma opinião, por mais asco que nos cause. E se for crime, não um tema que se gira no âmbito da censura, mas dos tribunais.

Cada caso será um caso, e daí que uma generalização sobre a possível intervenção do Presidente do Parlamento é sempre perigosa, sobretudo pelo precedente. Invoca-se o artigo 89º, número 3, do regimento da Assembleia da República, para pedir a intervenção de Aguiar Branco (talvez como fez Augusto Santos Silva num trágico exercício de poder parlamentar). O que diz esse artigo?

  • O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra“.

Percebe-se o espírito do legislador, não estava a pensar em Ventura, mas na forma de relacionamento entre deputados na Assembleia. Mas bastaria consultar os arquivos do Parlamento para se descobrirem intervenções violentas, com uma única diferença, a qualidade da oratória. Raras terão sido as vezes em que um Presidente da Assembleia retirou a palavra a um deputado em 50 anos de Democracia.

Vivemos tempos perigosos, de policiamento e de cancelamento, com uma enorme facilidade, de quem discordamos. Tenta-se calar de uma forma ou de outra o adversário, silenciar o que pensa. Pelos vistos, aos 50 anos do 25 de abril, é necessário proteger os portugueses das opiniões mais radicais — até Ventura considera que uma opinião do Presidente da República é uma traição à Pátria, que ironia.

Particularmente preocupante é ver jornalistas, os que vivem profissionalmente da liberdade de expressão, os que dependem da sua efetiva realização para o exercício pleno da sua missão, a pedir censura, a exigir que Aguiar Branco fosse um censor. É um mau sinal, quando as tentativas de limitar a liberdade de expressão não são apenas património do Chega ou de populistas à esquerda e podem vir de onde menos se espera.

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